quarta-feira, fevereiro 27, 2008

A Questão Social em “O Amante de Lady Chatterley”

Os livros clássicos são os que conseguem atravessar o tempo e os continentes, incorporando-se ao patrimônio cultural da humanidade. Neste caso está o um dia proscrito “O Amante de Lady Chatterley”. Seu autor, o inglês David Hebert Lawrence (1885 – 1930), não viveu o suficiente para vê-lo publicado em sua terra natal. Produzido em 1926, considerado como atentatório a moral e os bons costumes, o livro foi de imediato proibido, só conseguido ter uma edição publicada no Reino Unido 32 anos depois de ter sido parido pela genial imaginação e espírito arguto de seu criador.
O romance tem por cenário o meio rural de uma cidade inglesa no ambiente histórico compreendido entre o fim da década de 10 e o início da década de 20 do século passado. O fio condutor do enredo é o eterno triângulo amoroso que, envolvendo o Pierrô, a Colombina e o Ricardão, coloca a instituição família em xeque.
O Pierrô do trio é Sir Clifford Chatterley, nascido na pequena nobreza e tão nariz empinado quanto infeliz. Entre outras lucrativas propriedades ele é dono de uma mina de carvão na cidade onde está vivendo. A mina de carvão é também uma mina de dinheiro, o que o faz ter a burra sempre cheia de libras. Mas Clifford é também um poço de tristeza. Ele está irremediavelmente inválido, impotente e preso numa cadeira de rodas. A serviço da Pátria, na Primeira Grande Guerra (1914 – 1918), foi gravemente ferido e reduzido àquela angustiante situação.
A Colombina é Constance, a Lady Chatterley, esposa de Sir Clifford.. Tem vinte anos e lá vai pedrada. É meio lá meio cá, nem bonita nem feia, mas uma fêmea cheia de tesão. Ela é uma mulher de vanguarda numa Inglaterra pudica e conservadora recém saída da Era Vitoriana, e onde capitalismo e a industrialização estão em love, navegando de vento em popa. A Lady é marcada por um forte sentimento de liberdade e tem uma intuitiva simpatia pela causa dos trabalhadores. Sua virgindade voou muito antes do casamento. Voou com um namoradinho cujo nome pouco importa, pois sua única função nas páginas do romance de Lawrence foi fazer de Constance, mulher.
O Ricardão é Oliver Mellors. Ele beira a casa dos 40 anos e é um Ricardão de dar dó. Trabalha com guarda-caça de Clifford, tem uma filha adolescente e foi casado com uma megera, de quem está separado. Mellors é muito frustrado. Tem instrução mas fala um patuá, cheio de maneirismos, gírias e palavrões. Mellors é super cafona. Ele gosta de vestir fustão verde-escuro com polainas da mesma cor. Ele vive agarrado em pintos, perus, porcos, faisões, patos e em outros bichos. Devia feder pra cachorro. E a Lady o que tem a ver com isto? Bem, na falta de coisa melhor naquele fim de mundo em que vivia com um marido impotente ela acabou se tornado amante do guarda-caça.. E tantas o tal guarda-caça e a caçadora aprontaram que o buxo da madame cresceu. E agora? Como sair da enrascada? Abrir o jogo? Fosse com um ricaço sabia que o marido segurava, mas com aquele pé-rapado? Nem precisa dizer que deu o maior bafafá. Mas não vamos puxar o fio desta meada que, por sinal, tantos já puxaram. Rumemos em outra direção, aflorando problemas que estão lá, no romance de Lawrence, mas não borboleteando na superfície.
Claro que o muito que se escreveu sobre “O Amante de Lady Chatterley” tem o sexo como centro da reflexão. Sobre o assunto, já li de tudo. Até quem considere o romance uma bomba, algo soporífero, observando que é cansativo e previsível. Chutando o pau da barraca, e visando botar lenha na fogueira das interpretações do mais famoso dos escritos de Lawrence, enveredo por outro caminho. Neste particular sigo a recomendação implícita do grande Monteiro Lobato ao segredar em carta a Godofredo Rangel: “Quase todos vão pela estrada e pouquíssimos vão pelas picadas”.
Embrenhando-me pelas picadas do romance, penso que para além da fogosidade da Lady e da impotência do patrão de Mellors, o casal carrega uma contradição que o corroe por dentro enquanto possibilidade de relacionamento harmônico, feliz e duradouro. Diz a sabedoria popular que “duro com duro não faz bom muro”. É o caso. Personalidades fortes, nenhum dos dois cede. Sir Clifford e Lady Chatterley vêm o mundo por prisma político e social diametralmente opostos.
Não é um mero acaso Lawrence ter situado o romance em momento no qual os principais referenciais históricos eram a Revolução Bolchevique (1917) e a dita 1ª Grande Guerra Mundial (1914 – 1918). Esta, perpassa de ponta-a-ponta as páginas do romance, onde a destruição da virilidade de Clifford e do seu projeto de vida simboliza a situação de incontáveis seres humanos que, como ele, foram vítimas – pela morte ou invalidez - da insanidade de um estado de beligerância na qual suas respectivas pátrias os envolveram, pela ambição de conquista de mercados e monopólios materiais.
Quanto ao bolchevismo e as greves são questões sempre afloradas nos diálogos fabricados pela hábil escrita de Lawrence. Os mais longos, fecundos e ásperos destes diálogos, tendo por protagonistas apenas o casal Chatterley, são encontradiços em várias páginas do capítulo XIII. O qüiproquó vai começar em uma “manhã encantadora” de domingo que inicialmente parece ser apenas um simples passeio pela floresta, para encher lingüiça. Clifford usa um pequeno carrinho motorizado. Constance caminha ao lado dele. No princípio os dois estão de bom humor , coisa rara quando estão juntos. O caldo começa a entornar quando Clifford observa que precisa fazer uns reparos no castelo onde moram e que vai gastar uma baba, considerando que o trabalho “é caro hoje”. A Lady alfineta-o colocando questões relacionadas ao papel das greves e a pindaíba dos trabalhadores. A respeito selecionamos 5 (cinco) passagens de diálogo do citado capítulo que não apenas separam o casal assim como colocam questões que dão panos para mangas.
- 1 -
- Que interesses teriam em mais greves? Arruinariam a indústria, ou o que dela resta, só isso. Eles devem começar a convencer-se que é assim.
- Talvez lhes seja indiferente à ruína da indústria, sugeriu Contance.
- Ah! Não fale como mulher! A indústria é quem lhes enche a barriga, mesmo que não lhes encha o bolso, disse ele no estilo de Mrs. Bolton”.
- 2 -
- E por que não haverá mais greves?
- Porque as greves se tornaram impossíveis.
- Os operários prometeram isso? objetou ela.
- Não lhes pedimos opinião Agiremos enquanto estiveram de costas voltadas – em seu próprio bem, para salvar a indústria.
- E em nosso próprio bem, também, disse ela.
- 3 -
- Acha que os mineiros deixarão que se lhes ditem condições?
- Minha cara, serão forçados a isso – se nos soubermos conduzir.
- Porque não chegar a um acordo?
- Certamente- quando compreenderem que a indústria tem mais importância que os indivíduos.
- Mas será de necessidade que você possua a indústria?
- 4 -
- ... Sempre haverá necessidade de alguém em cima, no comando
- Mas quais os comandantes?
- Os que exploram as indústrias.
Fez-se um longo silêncio.
- Parecem-me bem maus comandantes os que temos, disse ela.
- 5 -
- Não me admira que os mineiros o detestem, atenuou ela.
- ... Não atribua aos outros as ilusões próprias. As massas são e serão sempre as mesmas. Em que diferiam os escravos de Nero dos nossos mineiros ou dos operários da Ford? Em muitíssimo pouco. Falo dos escravos que trabalhavam nas minas, e nos campos. Massa; nada muda. Um indivíduo pode emergir da massa – mas esse fato excepcional não altera coisa nenhuma. Ninguém muda as massas – eis uma das mais importantes verdades da ciência social. Panem et Circenses’.”.
A coisa vai indo, vai indo, até que de repente o tempo ameaça virar, o motor do carrinho de Clifford – para seu desespero - dá para trás e acaba tendo que ser empurrado até o castelo, com ele dentro, pela Lady e pelo Ricardão, que surge providencialmente no meio do sufoco.
No castelo, naquele mesmo dia, a Lady ainda bate-boca com o marido por duas razões: por causa de Proust que ele adora e ela acha um porre, e por causa do guarda-caça, que ela diz ter sido destratado pelo patrão quando tentava consertar o motor do carrinho, para fazê-lo andar. Constance denuncia então que na base dos destratos estava a diferença de classe social que mediava as relações sociais entre os dois homens.
O capítulo termina no cair da noite, quando a Lady, bastante amuada, aproveita, enquanto o marido jogava cartas com a governanta, para pular a cerca e ir ao encontro de seu querido Ricardão, para mais uma noite sonorosa.
Aluízio Alves Filho - Revista Achegas
Imagem - D.H.Lawrence

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1 Comments:

Blogger Unknown said...

Amei a resenha, parabéns!

20 novembro, 2009 22:43  

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