Cátia, Simone e outras Marvadas
"Cátia, Simone e outras Marvadas", o primeiro livro do ex-morador de rua Sebastião Nicomedes
As angústias e contradições da vida na rua, pelo olhar de quem foi sem-teto, agora podem ser lidas em versos. Depois de estrear no teatro com as peças "Bonifácil Preguiça" e "Diário dum carroceiro", esta última encenada no Teatro Fábrica São Paulo, Sebastião Nicomedes, 39 anos, lança seu primeiro livro de poemas."Cátia, Simone e outras Marvadas" é publicado por "Dulcinéia Catadora".
Nicomedes mostra os descaminhos de quem tem o asfalto ou o albergue como morada. Seus textos pisam no registro referencial e poético, apontam para o lugar de construção do próprio narrador. Um lugar em que sua identidade pode ser edificada e reconhecida, pela palavra.
Para os desavisados: nem tudo é autobiografia. "Sou um escritor. Não é porque escrevi algo que isso de fato aconteceu comigo". Igualar sua obra a tão-somente retratação do real é o caminho mais fácil. Mas embreada a escrita - que é experiência e imaginação - o narrador expõe o difícil percurso de um rosto sem nome:
"O cobertor é meu escudo
esconde-me o rosto de todos".
Com exceção de duas personagens que dão título à obra, todas as outras são anônimas.
Em "Ao luar" e "3 anos: a vida", em especial, a passagem entre o exílio no nada e o ingresso no mundo se dá pelo olhar poético. Ele é quem inaugura a experiência de ser. A noite, por sua vez, metaforiza a estréia desse mistério.
Algumas vezes o humor divide espaço com o trágico, para logo depois abandoná-lo. Em "Cumplicidade" os versos andam e dançam como um bêbado equilibrista que cai, mas não deixa a garrafa despencar. E, ao final:
"e se reerguer o mendigo
a indústria da miséria entra em falência
(...)
porque o corpo que bebe
caindo ao chão não incomoda".
Nicomedes mostra os descaminhos de quem tem o asfalto ou o albergue como morada. Seus textos pisam no registro referencial e poético, apontam para o lugar de construção do próprio narrador. Um lugar em que sua identidade pode ser edificada e reconhecida, pela palavra.
Para os desavisados: nem tudo é autobiografia. "Sou um escritor. Não é porque escrevi algo que isso de fato aconteceu comigo". Igualar sua obra a tão-somente retratação do real é o caminho mais fácil. Mas embreada a escrita - que é experiência e imaginação - o narrador expõe o difícil percurso de um rosto sem nome:
"O cobertor é meu escudo
esconde-me o rosto de todos".
Com exceção de duas personagens que dão título à obra, todas as outras são anônimas.
Em "Ao luar" e "3 anos: a vida", em especial, a passagem entre o exílio no nada e o ingresso no mundo se dá pelo olhar poético. Ele é quem inaugura a experiência de ser. A noite, por sua vez, metaforiza a estréia desse mistério.
Algumas vezes o humor divide espaço com o trágico, para logo depois abandoná-lo. Em "Cumplicidade" os versos andam e dançam como um bêbado equilibrista que cai, mas não deixa a garrafa despencar. E, ao final:
"e se reerguer o mendigo
a indústria da miséria entra em falência
(...)
porque o corpo que bebe
caindo ao chão não incomoda".
Marana Borges Terra Magazine
Cátia, Simone e outras Marvadas
Tião escreve prosas e poesias que misturam fragmentos autobiográficos e histórias inspiradas no que vê na rua. Escreve à noite, num bloco de papel, sentado na laje
Só não afundou de vez porque tinha um prazer de se comunicar pela arte, escrevendo poesias e peças. Sabia que um dia seria escritor
Um pedaço da história de vida de Sebastião Nicodemes está na capa do livro que ele vai lançar na próxima sexta-feira. A capa é feita de papelão encontrado na rua, ilustrada por filhos de catadores de papel. "É meu primeiro livro", orgulha-se o ex-catador de papel. Os textos foram escritos em cima de uma laje, onde Tião alugou um pequeno quarto. "Fico olhando o céu, e a inspiração vai aparecendo. É como se eu ainda morasse na rua." Ex-morador de rua, ele já consegue pagar o aluguel daquele quarto porque faz bicos artísticos.
Tião produz bonecos com papel reciclado, com os quais conta histórias para crianças, ajuda em roteiros de filmes e documentários, e já escreveu o texto de uma peça, intitulada "Diário de um Carroceiro", apresentada no ano passado no Teatro Fábrica. Está conseguindo, agora, lançar "Cátia, Simone e outras Marvadas", por causa de uma experiência produzida na última Bienal.
Um grupo de artistas resolveu apoiar a edição de livros produzidos por filhos de catadores de papel e seus filhos - assim surgiu a Edições Dulcinéia Catadora. São sempre cem exemplares, todos artesanais e com desenhos diferentes. "O que queremos é estimular o prazer de criar", diz Lúcia Rosa, uma das artistas envolvidas no projeto.
Tião escreve prosas e poesias que misturam fragmentos autobiográficos e histórias inspiradas no que vê na rua. Escreve à noite, num bloco de papel, sentado na laje acoplada ao cubículo, no Brás. "Eu me sinto maior sentindo o Universo". A sensação de grandeza também tem um motivo concreto: há três meses está conseguindo pagar o aluguel daquele quarto. Até dormia em abrigos públicos, depois de sair da rua. "Não gostava de viver de favor." Tal sensação de grandeza ajudou-o a recordar e colocar no papel suas decepções, inclusive amorosas.
Migrante, Tião tinha emprego em São Paulo. Mas adoeceu e, quando voltou do hospital, nem sequer tinha lugar onde morar. A frustração chamou a bebida e, assim, instalou-se um círculo vicioso. Para sobreviver, viveu nas ruas que cercavam o Mercado Municipal. A dor que manteve guardada foi não ter recebido, no hospital, a visita de amigos. Nem da mulher - uma das "marvadas" - com quem estava noivo e com quem pensava que iria casar. "Parece que tudo desabou em segundos." Tião só não afundou de vez porque tinha um prazer de se comunicar pela arte, escrevendo poesias e peças. Sabia que -mas não sabia quando- um dia seria um escritor. "Só o que não imaginei é que, todas as noites, teria o prazer de adormecer ao ar livre."
Gilberto Dimenstein- Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano em 28/3/2007
Tião escreve prosas e poesias que misturam fragmentos autobiográficos e histórias inspiradas no que vê na rua. Escreve à noite, num bloco de papel, sentado na laje
Só não afundou de vez porque tinha um prazer de se comunicar pela arte, escrevendo poesias e peças. Sabia que um dia seria escritor
Um pedaço da história de vida de Sebastião Nicodemes está na capa do livro que ele vai lançar na próxima sexta-feira. A capa é feita de papelão encontrado na rua, ilustrada por filhos de catadores de papel. "É meu primeiro livro", orgulha-se o ex-catador de papel. Os textos foram escritos em cima de uma laje, onde Tião alugou um pequeno quarto. "Fico olhando o céu, e a inspiração vai aparecendo. É como se eu ainda morasse na rua." Ex-morador de rua, ele já consegue pagar o aluguel daquele quarto porque faz bicos artísticos.
Tião produz bonecos com papel reciclado, com os quais conta histórias para crianças, ajuda em roteiros de filmes e documentários, e já escreveu o texto de uma peça, intitulada "Diário de um Carroceiro", apresentada no ano passado no Teatro Fábrica. Está conseguindo, agora, lançar "Cátia, Simone e outras Marvadas", por causa de uma experiência produzida na última Bienal.
Um grupo de artistas resolveu apoiar a edição de livros produzidos por filhos de catadores de papel e seus filhos - assim surgiu a Edições Dulcinéia Catadora. São sempre cem exemplares, todos artesanais e com desenhos diferentes. "O que queremos é estimular o prazer de criar", diz Lúcia Rosa, uma das artistas envolvidas no projeto.
Tião escreve prosas e poesias que misturam fragmentos autobiográficos e histórias inspiradas no que vê na rua. Escreve à noite, num bloco de papel, sentado na laje acoplada ao cubículo, no Brás. "Eu me sinto maior sentindo o Universo". A sensação de grandeza também tem um motivo concreto: há três meses está conseguindo pagar o aluguel daquele quarto. Até dormia em abrigos públicos, depois de sair da rua. "Não gostava de viver de favor." Tal sensação de grandeza ajudou-o a recordar e colocar no papel suas decepções, inclusive amorosas.
Migrante, Tião tinha emprego em São Paulo. Mas adoeceu e, quando voltou do hospital, nem sequer tinha lugar onde morar. A frustração chamou a bebida e, assim, instalou-se um círculo vicioso. Para sobreviver, viveu nas ruas que cercavam o Mercado Municipal. A dor que manteve guardada foi não ter recebido, no hospital, a visita de amigos. Nem da mulher - uma das "marvadas" - com quem estava noivo e com quem pensava que iria casar. "Parece que tudo desabou em segundos." Tião só não afundou de vez porque tinha um prazer de se comunicar pela arte, escrevendo poesias e peças. Sabia que -mas não sabia quando- um dia seria um escritor. "Só o que não imaginei é que, todas as noites, teria o prazer de adormecer ao ar livre."
Gilberto Dimenstein- Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano em 28/3/2007
Sobre o projeto “Dulcinéia Catadora” informações aqui
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