A voz do escritor
A voz do escritor
A. Alvarez
Ed Civilização Brasileira
É temerário comentar um livro como A Voz do Escritor, uma elaboração teórica sofisticada sobre o ato e a motivação de escrever, o ato de ler e aspectos relativos à confusão que comumente se faz entre a vida do autor e sua obra. É como caminhar na corda bamba, ameaçado pelo risco sempre presente de interpretar de maneira equivocada o que diz autor e utilizar a obra em questão apenas para lustrar as próprias idéias. Portanto, desde já advirto que esta é uma resenha parcial, centrada sobretudo nas duas primeiras partes do livro, que tratam especificamente do que ele entende por Voz.
Já no prefácio, o autor indica o caminho que pretende percorrer: “Meu tema é o escrever imaginativo e como lê-lo: primeiro como um escritor desenvolve uma voz própria e uma presença na página; a seguir, como o leitor aprende a escutar essa voz e reagir a ela, e, finalmente, como a verdadeira voz e a personalidade pública às vezes entram em choque, se confundem e se contradizem”.
Eu diria que há uma linha tênue unindo o último tema aos dois primeiros. Como o material para o livro foi obtido, em sua maior parte, de três palestras proferidas na Biblioteca Pública de Nova Iorque em 2002, penso ser justificada a ligeira sensação de deslocamento do último capítulo em relação aos outros.
A Voz do Escritor não tem a pretensão de um manual de boa escrita. O que Alvarez faz, no fim das contas, é afirmar que um autor só se emancipa quando adquire uma voz própria. Por isso deve buscar esta voz, um tormento que nunca o abandona.
Ele afirma que para escrever bem, a primeira coisa de que se necessita é escutar bem. Quando você lê, o autor está ali, dizendo algo com uma voz peculiar, diferente de todas as outras que você já tenha ouvido. Pode estar falando desde um tempo distante, de séculos atrás. No entanto, você a escuta. Há um pacto: o escritor trabalha para encontrar uma voz que alcance o leitor e este, tocado, apura os ouvidos e presta atenção no que ele tem a dizer.
“O escritor descobre essa relação estranhamente revigorante e libertadora entre a realidade física e o prazer estético quando encontra sua própria voz: é o que destranca cadeados, abre as portas, e lhe permite começar a dizer o que ele quer dizer. Mas para encontrar esta voz, ele precisa antes dominar o estilo; e o estilo, nesse sentido, é uma disciplina que se pode obter por meio do trabalho árduo, como a gramática e a pontuação.
Voz não é estilo
“A voz autêntica pode não ser aquela que você quer ouvir. Como os sonhos, ela fala por partes de você de cuja existência você não se dá conta e pode não gostar. Às vezes ela contraria os princípios que você mantém durante o dia. Entretanto, se você tentar expurgá-la, irá privar de vida o que tem a dizer.”
Citando Virginia Woolf, diz que estilo, por sua vez, é ritmo. Pode ser que o estilo que você tanto trabalhou para adquirir atrapalhe o que você quer dizer. Às vezes, portanto, é preciso deformar o estilo para usar a voz.
Na segunda parte, Alvarez faz uma bela digressão sobre o ato de ler/escrever (um como a imagem em espelho do outro), comparando-o à música. Ele afirma que encontrar uma voz implica que haja leitores que saibam escutar, e escutar é uma habilidade quase tão caprichosa quanto escrever. Diz: “O bom leitor escuta com a mesma atenção com que o escritor escreve, ouvindo tons e subtons, alterações de altura, e tão envolvido e atento como se estivesse numa conversa com o escritor.”
Quem escuta uma peça musical, ouve-a como um processo, uma intrincada conversa entre instrumentos. No entanto, para que essa conversa ocorra e faça sentido, “os músicos devem pensar tanto vertical quanto horizontalmente – em acordes e harmonias, assim como em frases. Os músicos assumem isso sem questionar: ‘Há muitas maneiras de se equilibrar um acorde’, disse Alfred Brendel, ‘e precisamos acabar aprendendo a medir o som de um acorde em nossa imaginação e depois controlá-lo na execução’. Ele parece estar insinuando que o sentimento, o caos que se ergue verticalmente do inconsciente, é posto em ordem pelo fraseado e pelo desenvolvimento horizontal, mas que, sem o caos do sentimento não pode haver música. É a mesma coisa com a linguagem: argumentação, métrica e tom de voz criam ordem, mas tudo depende do peso e da ressonância de cada palavra.”
A última parte trata da confusão que comumente se faz entre a vida do artista e sua obra. Ele afirma: “É absolutamente equivocado acreditar que a arte extremista, ou qualquer outra, tem de se justificada ou sustentada por uma vida extremista, ou que a experiência do artista no limite do intolerável é, de um modo qualquer, um substituto da criatividade. De fato, o oposto é que é a verdade: para criar arte a partir da privação e do desespero, o artista precisa de recursos internos proporcionalmente ricos e um controle proporcionalmente estrito de seu medium. Um artista é o que é não porque viveu uma vida mais dramática do que outras pessoas, mas porque seu mundo interior é mais rico e mais acessível, e também, acima de tudo, porque ele ama e compreende qualquer meio que utilize – a linguagem, a pintura, a música, o cinema, a pedra -, e deseja explorar suas possibilidades e fazer dele algo perfeito. Creio que foi Camus que observou certa vez que a obra de Nietzsche prova que se pode viver uma vida de grandes aventuras sem sequer se levantar da escrivaninha. Quanto mais exposto e doloroso o tema, mais delicado e atento é o controle artístico necessário para lidar com ele.”
Esses são os pontos que julguei importante ressaltar em A Voz do Escritor. Entretanto, cumpre dizer que o livro não se exaure aí, não se resume a uma reflexão seca e intelectualizada como pode parecer a partir de minhas anotações. O texto é leve e de leitura agradável, há fartura de exemplos, o autor empreende, no último capítulo, uma viagem interessante pela literatura através dos séculos. Em suma, trata-se de uma obra indispensável para quem deseja entender um pouco mais os meandros da criação literária, ainda que seja apenas para cumprir as regras de ouro enunciadas pelo cubano José Martí: “Para se sentir realizado, todo homem deve plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro”.
Umberto Krenak
A. Alvarez
Ed Civilização Brasileira
É temerário comentar um livro como A Voz do Escritor, uma elaboração teórica sofisticada sobre o ato e a motivação de escrever, o ato de ler e aspectos relativos à confusão que comumente se faz entre a vida do autor e sua obra. É como caminhar na corda bamba, ameaçado pelo risco sempre presente de interpretar de maneira equivocada o que diz autor e utilizar a obra em questão apenas para lustrar as próprias idéias. Portanto, desde já advirto que esta é uma resenha parcial, centrada sobretudo nas duas primeiras partes do livro, que tratam especificamente do que ele entende por Voz.
Já no prefácio, o autor indica o caminho que pretende percorrer: “Meu tema é o escrever imaginativo e como lê-lo: primeiro como um escritor desenvolve uma voz própria e uma presença na página; a seguir, como o leitor aprende a escutar essa voz e reagir a ela, e, finalmente, como a verdadeira voz e a personalidade pública às vezes entram em choque, se confundem e se contradizem”.
Eu diria que há uma linha tênue unindo o último tema aos dois primeiros. Como o material para o livro foi obtido, em sua maior parte, de três palestras proferidas na Biblioteca Pública de Nova Iorque em 2002, penso ser justificada a ligeira sensação de deslocamento do último capítulo em relação aos outros.
A Voz do Escritor não tem a pretensão de um manual de boa escrita. O que Alvarez faz, no fim das contas, é afirmar que um autor só se emancipa quando adquire uma voz própria. Por isso deve buscar esta voz, um tormento que nunca o abandona.
Ele afirma que para escrever bem, a primeira coisa de que se necessita é escutar bem. Quando você lê, o autor está ali, dizendo algo com uma voz peculiar, diferente de todas as outras que você já tenha ouvido. Pode estar falando desde um tempo distante, de séculos atrás. No entanto, você a escuta. Há um pacto: o escritor trabalha para encontrar uma voz que alcance o leitor e este, tocado, apura os ouvidos e presta atenção no que ele tem a dizer.
“O escritor descobre essa relação estranhamente revigorante e libertadora entre a realidade física e o prazer estético quando encontra sua própria voz: é o que destranca cadeados, abre as portas, e lhe permite começar a dizer o que ele quer dizer. Mas para encontrar esta voz, ele precisa antes dominar o estilo; e o estilo, nesse sentido, é uma disciplina que se pode obter por meio do trabalho árduo, como a gramática e a pontuação.
Voz não é estilo
“A voz autêntica pode não ser aquela que você quer ouvir. Como os sonhos, ela fala por partes de você de cuja existência você não se dá conta e pode não gostar. Às vezes ela contraria os princípios que você mantém durante o dia. Entretanto, se você tentar expurgá-la, irá privar de vida o que tem a dizer.”
Citando Virginia Woolf, diz que estilo, por sua vez, é ritmo. Pode ser que o estilo que você tanto trabalhou para adquirir atrapalhe o que você quer dizer. Às vezes, portanto, é preciso deformar o estilo para usar a voz.
Na segunda parte, Alvarez faz uma bela digressão sobre o ato de ler/escrever (um como a imagem em espelho do outro), comparando-o à música. Ele afirma que encontrar uma voz implica que haja leitores que saibam escutar, e escutar é uma habilidade quase tão caprichosa quanto escrever. Diz: “O bom leitor escuta com a mesma atenção com que o escritor escreve, ouvindo tons e subtons, alterações de altura, e tão envolvido e atento como se estivesse numa conversa com o escritor.”
Quem escuta uma peça musical, ouve-a como um processo, uma intrincada conversa entre instrumentos. No entanto, para que essa conversa ocorra e faça sentido, “os músicos devem pensar tanto vertical quanto horizontalmente – em acordes e harmonias, assim como em frases. Os músicos assumem isso sem questionar: ‘Há muitas maneiras de se equilibrar um acorde’, disse Alfred Brendel, ‘e precisamos acabar aprendendo a medir o som de um acorde em nossa imaginação e depois controlá-lo na execução’. Ele parece estar insinuando que o sentimento, o caos que se ergue verticalmente do inconsciente, é posto em ordem pelo fraseado e pelo desenvolvimento horizontal, mas que, sem o caos do sentimento não pode haver música. É a mesma coisa com a linguagem: argumentação, métrica e tom de voz criam ordem, mas tudo depende do peso e da ressonância de cada palavra.”
A última parte trata da confusão que comumente se faz entre a vida do artista e sua obra. Ele afirma: “É absolutamente equivocado acreditar que a arte extremista, ou qualquer outra, tem de se justificada ou sustentada por uma vida extremista, ou que a experiência do artista no limite do intolerável é, de um modo qualquer, um substituto da criatividade. De fato, o oposto é que é a verdade: para criar arte a partir da privação e do desespero, o artista precisa de recursos internos proporcionalmente ricos e um controle proporcionalmente estrito de seu medium. Um artista é o que é não porque viveu uma vida mais dramática do que outras pessoas, mas porque seu mundo interior é mais rico e mais acessível, e também, acima de tudo, porque ele ama e compreende qualquer meio que utilize – a linguagem, a pintura, a música, o cinema, a pedra -, e deseja explorar suas possibilidades e fazer dele algo perfeito. Creio que foi Camus que observou certa vez que a obra de Nietzsche prova que se pode viver uma vida de grandes aventuras sem sequer se levantar da escrivaninha. Quanto mais exposto e doloroso o tema, mais delicado e atento é o controle artístico necessário para lidar com ele.”
Esses são os pontos que julguei importante ressaltar em A Voz do Escritor. Entretanto, cumpre dizer que o livro não se exaure aí, não se resume a uma reflexão seca e intelectualizada como pode parecer a partir de minhas anotações. O texto é leve e de leitura agradável, há fartura de exemplos, o autor empreende, no último capítulo, uma viagem interessante pela literatura através dos séculos. Em suma, trata-se de uma obra indispensável para quem deseja entender um pouco mais os meandros da criação literária, ainda que seja apenas para cumprir as regras de ouro enunciadas pelo cubano José Martí: “Para se sentir realizado, todo homem deve plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro”.
Umberto Krenak
2 Comments:
Li qdo ainda garota. E o livro me fez sonhar em ser arqueóloga. Uma paixão! Vi hoje que essa edição da Melhoramentos é a 21 !!
Valeu, Claudinei!
beijão.
Ops, errei o post, troquei as bolas.
Uk a tal da Voz vive aos berros na minha orelha. Qdo tento agarrá-la... Pimba... Some.
Eita vozinha escorregadia!
bjs
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