domingo, agosto 13, 2006

O encontro de Monteiro Lobato com Friedrich Nietzsche


Numa primeira aproximação, de comum entre Nietzsche e Monteiro Lobato, não há mais do que uma vaga generalidade: trata-se de autores consagrados, constantemente colocados na ordem do dia. Originalmente a filosofia de Nietzsche foi divulgada no Brasil através de artigos publicados por José Veríssimo, em 1902, no Correio da Manhã. Em 1904, Nietzsche seria objeto de estudos publicados no Almanaque Garnier por Araripe Júnior e João Ribeiro. Logo em seguida proliferava como moda filosófica. Regressaria ao estrelato diversas vezes, como está voltando a ocorrer atualmente. Há um surto de palestras, artigos e livros sobre Nietzsche. Quanto a Monteiro Lobato, desde 1918, ano em que vitoriosamente estreou com Urupês, nunca mais deixou de ser citado. Sua literatura infantil parece resistir à fúria do tempo e dos que, teimosamente, insistem em classificá-la como obsoleta.
Outro paralelo que pode ser feito entre os dois reside nas discordâncias existentes entre os comentaristas de suas respectivas obras. Paradoxalmente, Nietzsche tem sido apresentado como um gênio ou como um louco. Há quem pense seus aforismos enigmáticos e desconexos e há quem os julgue lúcidos e coesos. Ora a obra de Nietzsche é interpretada como um discurso novo, ora como o auge do irracionalismo.
Como ocorre com Nietzsche, a obra de Monteiro Lobato tem sido objeto de incongruentes comentários. Os mesmos aspectos são exaltados ou execrados pelos estudiosos. Sustentam alguns que os primeiros livros de contos de Monteiro Lobato, publicados antes da célebre semana de 1922, se caracterizam pelo rompimento com o linguajar parnasiano. Sustentam outros que estes contos reproduzem o tradicionalismo literário em voga na segunda década do século. Há quem acuse Monteiro Lobato de conservador e há quem o diga revolucionário.
De uma coisa não temos dúvida: Monteiro Lobato participou ativamente, a seu modo, das questões mais candentes do seu tempo. Combateu a ditadura estadonovista, defendeu princípios democráticos e direitos das minorias. Denunciou o truste do petróleo e por isso, quase sexagenário e escritor consagrado, bateu com os costados na casa de detenção. Fundou editoras dando oportunidade a autores nacionais, entre outros a Lima Barreto e a Oliveira Vianna. Tentou entupir o país com uma chuva de livros e de idéias. Nasceu rico, neto de fazendeiro, e morreu vivendo de direitos autorais que lhe rendiam as únicas terras que lhe restaram, as imaginárias, as do Sítio do Picapau Amarelo.
Mas como conseqüentemente situar a vida e a obra de um homem que um dia tentou ingressar na Academia Brasileira de Letras, não conseguindo, e, em outro, virou-lhe as costas, quando as portas pareciam franqueadas? Como compreender este literato que um dia clama contra o Jeca e em outro afirma ser ele o que há de melhor no país? Como entender Monteiro Lobato que após investir contra as tendências modernistas, ao tentar ridicularizar a pintora Anita Malfatti, tenha rendido loas às esculturas de Vitor Brecheret, figura de proa do modernismo? Como entender a trajetória de um homem que teve a coragem de alienar sólido patrimônio da família para aventurar-se como editor - num país onde pouco se lê e, após falir, reúne forças para vir a público no afã de capitalizar recursos para montar empresas de ferro e petróleo, remando de novo contra a maré?
É na tentativa de compreender a trajetória de Monteiro Lobato, objeto de tantas exegeses contraditórias, que o exame da relação do seu pensamento com de Nietzsche ganha relevância. No exame desta relação, acreditamos, está a chave que possibilita posicioná-lo. Postulamos que Friedrich Nietzsche exerce influência decisiva e permanente sobre Monteiro Lobato, questão que, sistematicamente relegada a segundo plano, tem tornado muito problemático situá-lo objetivamente. Com o intuito de projetar um foco de luz sobre esta questão, investigaremos, de forma coloquial, a maneira sui generis pela qual o criador do Jeca Tatu apropriou-se da filosofia nietzschiana e utilizou-a como bússola de sua atividade literária-prática-política.
Após uma vida mentalmente atribulada, Nietzsche, ex-professor de Filosofia da Universidade da Basiléia (Alemanha) falecera tão louco quanto famoso, em Weimar, em 1890. Sempre atualizado, Monteiro Lobato, que importara sua obra da França, em seguidas cartas que, em 1904 envia a Godofredo Rangel, manifestava irrestrita admiração pelo filósofo alemão. Numa carta chama-o “meu Nietzsche”, em outra comenta: “Considero Nietzsche o maior gênio da filosofia moderna e o que vai exercer maior influência. Nietzsche é o nosso primeiro ponto de referência”.
Em 1904, o jovem José Bento Monteiro Lobato lia com sofreguidão tudo o que lhe caía às mãos. Nestas andanças pelo mundo das letras, descobrira Nietzsche como descobrira muitos outros. Entretanto, a nenhum dedicaria palavras tão elogiosas quanto às dedicadas a ele, nem a Machado de Assis, nem a Camilo Castelo Branco, duas de suas maiores paixões literárias. Como explicar tal deslumbramento? Sustentamos que Nietzsche lhe apontou o caminho no momento da ruptura entre sua consciência ingênua e a formação da crítica.
Em 1941, décadas depois de ter descoberto Nietzsche, o então renomado escritor, respondendo a enquête “Testamento de uma geração”, organizada por Edgard Cavalheiro para o Estado de São Paulo, fixou o que significou para ele o contato com o ex-professor da Basiléia. Recordava que ao abandonar o simplismo das explicações caseiras passara a fuçar filósofos em busca de uma visão de mundo mais consistente. Tentou, pelejou, procurou aqui e ali. Nada. Só encontrava sistemas rígidos, camisas-de-força, verdades reveladas. Casualmente, folheando uma brochura de Nietzsche que um colega carregava, leu algumas frases que chamaram sua atenção. Mergulhou no filósofo alemão e tomou a maior bebedeira teórica de sua vida. No auge do porre, segredava em carta a Godofredo Rangel: “Da obra de Spencer saímos spencerianos, da de Kant saímos kantistas, da de Comte saímos comtianos, da de Nietzsche saímos tremendamente nós mesmos”.
Monteiro Lobato encontrava no existencialismo de Nietzsche o que febrilmente procurava: o não sistema, a não rigidez, a ânsia por liberdade. Com Nietzsche, aprendera a escolher, a desconfiar, a construir autonomamente o seu próprio caminho, alheio ao que os outros pensassem, pouco se importando com a lógica dos sistemas filosóficos, com pressões políticas ou com modais escolas literárias. Na enquête de 1941, esclarece que um dos aforismos de Nietzsche marcou-o profundamente, pondo fim à crise mental em que se encontrava. “Queres seguir-me? Segue-te”. Nietzsche era dinamite. Monteiro Lobato também. Ao chocar-se com o louco da Basiléia explodiu. Foi fiel a si mesmo a vida inteira.
Torna-se muito difícil, - quiçá impossível - situar os ziguezagues de Monteiro Lobato sem compreender o encontro que, com pouco mais de vinte anos, ele teve com Nietzsche. Sem perceber o “segue-te” como essência lobatiana, fica-se às tontas, como tantos tem ficado, no esforço improfícuo de tentar reduzí-lo, associando-o a movimentos determinados. O que Monteiro Lobato está fazendo o tempo inteiro é “lobatizando-se”, ou seja, seguindo-se. Por isso, recomenda ao amigo correspondente: “Quanto a programa, Rangel, só conheço um que te sirva, rangeliza-te sempre e cada vez mais”. E em outra missiva que também lhe enviou em 1904: “Você me pede um conselho e atrevidamente eu dou o grande conselho: seja você mesmo, porque ou somos nós ou não somos coisa nenhuma. E para ser si mesmo é preciso um trabalho de mouro e uma vigilância incessante na defesa, porque tudo conspira para que sejamos meros números, carneiros de variados rebanhos - os rebanhos políticos, religiosos ou estéticos. Há no mundo o ódio à exceção - e ser si mesmo é ser exceção”.
Para os nossos propósitos, perda de tempo investigar outras prováveis relações entre ambos. O produto do encontro fora a ruptura (explosão). Nietzsche pegara Monteiro Lobato em estado latente e devolvera-lhe o chão. Daí para frente, cada macaco no seu galho.


Aluizio Alves Filho - Revista Achegas

A versão original deste artigo consta como anexo no livro “As Metamorfoses do Jeca Tatu - a questão da identidade do brasileiro em Monteiro Lobato”. Rio de Janeiro, Inverta, 2003.

5 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Instigante pensar um relação aparentemente tão remota sob uma ótica que nos revela uma relação intelectual de tamanho porte. A escrita sempre convidativa e aprazível do autor também merece destaque. Meus cumprimento ao Prof. Aluízio o ao blog que está cada vez melhor.

13 agosto, 2006 17:33  
Blogger Nina said...

O ofício de ser a si mesmo é a única coisa que faz uma vida valer a pena ser vivida. Obrigada, professor Aluísio por manter vivos os exemplos de Monteiro Lobato e Nietzsche. Vera, você é um outro exemplo de ser verdadeiramente Vera, sempre.
Bj

13 agosto, 2006 23:37  
Anonymous Anônimo said...

texto original e instigante, muito bacana, assim como todo este blog, que sempre proporciona um enorme prazer. VAleu.

14 agosto, 2006 17:36  
Anonymous Anônimo said...

Muito!!! Muito bom.
Gostaria de saber como EU poderia enviar alguma coisa - exatamente de Lobato...
obrigada

16 março, 2009 03:03  
Anonymous Anônimo said...

Muito!!! Muito bom.
Gostaria de saber como EU poderia enviar alguma coisa - exatamente de Lobato...
obrigada endereço:::betty.sanson@bol.com.br

16 março, 2009 03:05  

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