terça-feira, agosto 01, 2006

As Confissões

As Confissões
Jean-Jacques Rousseau

Atena Editora
São Paulo, 2 vol.
1952


Talvez os três maiores símbolos da grande revolução da burguesia francesa contra o poder despótico da dinastia dos Bourbons, ocorrida às vésperas da última década do século das luzes, sejam: a queda da Bastilha, em 14 de julho de 1789; a Marselhesa – o belíssimo Hino francês composto por Rouget de Lisle, em 1792; e o Contato Social – escrito por Jean-Jacques Rousseau (1712 – 1778), em 1762.
Mas o “Citoyen de Genève”, como se autodenomina Rousseau no frontispício da primeira edição de O Contrato Social - um panfleto fantástico que virou o mundo de ponta-cabeça a partir da revolução que trouxe a baila os ideais de “liberté, égualité e fraternité”, – ainda encontrou tempo para escrever outros livros que o passar dos séculos não consegue esquecer. Refiro-me ao “Discurso sobre as Ciências e as Artes” (1750), “A Origem da Desigualdade Entre os Homens” (1753), “O Emílio” (1762) e a “Nova Heloisa” (1761). Com o primeiro e o segundo Rousseau ganhou prêmios da Academia de Dijon. O terceiro é um tratado de pedagogia onde o autor defende a educação como maneira de assegurar a liberdade natural. Nesse livro, faz do jovem “Emílio” o personagem modelar, assegurador de sua utopia educacional. Emílio inspirou o nome da “dadeira de idéias” do Sítio do Picapau Amarelo, de Emília, a boneca de pano que virou gente e que nas estórias do neto do Barão de Tremembé encarna a “independência ou morte”, ou seja: a liberdade de ser. Quanto ao livro “A Nova Heloisa”, acrescenta dizer que Sade, ”O Divino Marquês” - como o qualificou Simone de Beauvoir - considerou que, juntamente com “Manon Lescaut” (1731), de Abbé Prévost, eram romances para todos e sempre.
Mas aqui importa falar de um outro Rousseau, não do mito, mas do mortal que, como qualquer outro, viveu a vida com o sangue correndo nas veias e um coração batendo no peito, às vezes saindo boca afora. Quero falar do suíço, filho de um modesto relojoeiro, do Jean-Jacques Rousseau que jovem veio para Paris e não pensava que poderia ser imortalizado pelo que viria a escrever, mas que simplesmente pretendia ganhar o pão nosso de cada dia vendendo cópias de partituras, inclusive de músicas compostas por ele; músicas que o vento carregou, ninguém sabe para onde.
Recorda o autor de “A nova Heloísa” que foi no ano de 1749, quando convalescia de uma febre que quase o levara dessa para melhor, que: “confirmei a sangue frio as resoluções que tomara durante o delírio. Renunciei para sempre a qualquer projeto de fortuna e ascensão”. E continua: “Determinado a passar na independência e na pobreza o pouco tempo que me restava para viver, apliquei todas as forças de minha alma a quebrar os ferros da opinião, e a fazer com coragem tudo o que me parecia bem, sem me importar absolutamente com o julgamento dos outros”. E conclui: “São incríveis os obstáculos que tive de combater e os esforços que fiz para triunfar deles. E venci tanto quando era possível, e mais do que eu próprio esperava”.
Conta o filho do relojoeiro suíço que uma das primeiras coisas que fez para concretamente assumir as resoluções que tomara em delírio, foi despojar-se daquela geringonça que fazia tic-tac para precisar o passar do tempo, tendo a respeito explicado o alivio que então sentira: “Vendi o relógio, dizendo com uma alegria incrível: ‘Graças ao céu! Não mais precisarei saber que horas são!’.” Comenta também que começou a reforma pelos trajes: “deixei os dourados e as meias brancas; passei a usar uma peruca redonda, abandonei a espada”. Os que o cercavam pensavam que ainda era o delírio da febre que o levava a proceder de maneira que achavam, no mínimo, extravagante e pressionavam-no: “Está maluco? Está maluco?” – e ele firme na sua resolução.
Quando soube que Denis Diderot, seu melhor amigo, havia sido trancafiado na torre de Vincennes em 24 de julho e 1749, um frio há de ter corrido pela sua espinha. Preso pela edição de “Letres sur les aveugles”. Preso pelo crime de escrever coisa que não agradara os olhos de poderosos. “Imaginei-o preso para o resto da vida”. Dessa vez sim, Rousseau quase ficou maluco, quase enlouqueceu. Assim que soube, agarrou um papel e, entre indignado e alucinado, escreveu uma carta a Mme. Pompadour, pedindo que mandasse soltar Diderot ou então que obtivesse que fosse preso com ele, por cumplicidade. O “Citoyen de Genève” observa que nunca recebeu resposta a esta missiva.
Dias depois da prisão, uma boa notícia. Rousseau soube que Diderot havia saído da Torre, continuava preso mas podia ser visitado em Vincennnes. Assim que pode correu para lá. Diderot estava com outros presos também vítimas do Absolutismo. Entre estes se encontrava o filósofo D’Alembert, que juntamente com Diderot dirigiu durante boa parte de tempo o que viria a ser a primeira Enciclopédia que circulou na Europa. D’Alembert era filho bastardo de pai endinheirado, abandonado numa Capela próxima a Notre-Dame de Paris, e criado pela mulher de um pobre vidraceiro. Coração aos piparotes, Rousseau entrou voando no recinto e nem viu D’Alembert. Só viu Diderot. “Momento indescritível” - é como se refere ao acontecido. “Dei um salto, um grito; colei meu rosto ao seu, apertei-o estreitamente sem lhe falar senão com as minhas lágrimas e meus soluços”. Rousseau achou que Diderot estava abatido demais na prisão, observando que as Torres lhe haviam feito muito mal.
Durante os quatro meses em que Diderot esteve preso, Rousseau visitou-o amiúde. Sendo sua grana muito curta, não tendo dinheiro para pagar passagens, caminhava cerca de duas léguas – de Paris a Vincennes - para ver e confortar o amigo. O calor era sufocante e às vezes, exausto de tanto andar, descansava deitando-se no chão. Nunca deixava de levar alguma coisa para ir lendo no caminho. Explica Rousseau que: “Um dia, levei o Mercúrio de França, e enquanto caminhava e o percorria, vi aquela questão proposta pela Academia de Dijon para o prêmio do ano seguinte: ‘Se o progresso das ciências e das artes contribuiu para corromper ou apurar os costumes’.”
Quando chegou a Vincennes estava em estado de euforia que se aproxima do delírio. Sua cabeça não parava de girar, pensando sobre como desenvolver a questão proposta no concurso da Academia de Dijon. Gesticulando muito, explicou ao amigo o que se passava e Diderot discutiu algumas idéias com ele, incentivando-o a concorrer ao prêmio. Foram muitas as noites que Rousseau passou em claro, trabalhando no manuscrito, até que o “Discurso sobre a Ciência e as Artes ficou pronto”. Embalou o texto e enviou-o para os promotores do concurso. Depois, chegou até a esquecer-se dele. Muita água passou por baixo da ponte até que um dia foi comunicado que seu texto fora o premido pela Academia de Dijon. Após a sensação agradável dos primeiros momentos, Rousseau refere-se a este acontecimento como “uma verdadeira desgraça”, considerando que: “enquanto vivi ignorado pelo público, fui amado por todos os que me conheceram, e não tive um único inimigo; mas assim que tive um nome, não tive mais amigos”. Acrescenta que com o sucesso do “Discuso...” vieram os invejosos e o fim da tranqüilidade e da paz que vivia como “ilustre desconhecido”. Em relação ao sucesso imediato que o laureado texto de Rousseau obteve, escreveu-lhe Diderot – um dos raros amigos que manteve ao longo de sua travessia – o seguinte bilhete: “subiu as nuvens; não há exemplo de um êxito igual”.
São coisas vividas, umas alegres, outras tristes e, em regra, marcadas por paradoxos, como os presentes nos textos acima destacados e comentados que compõe “As Confissões” de Jean-Jacques Rousseau; confissões originalmente publicadas em francês e em dois volumes (1781 e 1788), sendo que o primeiro chegou às livrarias três anos após a morte do autor.
Rousseau principia “As Confissões” chamando a atenção para o pioneirismo do manuscrito que estava escrevendo: “Dou começo a uma empresa que não há exemplos, e cuja execução não terá imitadores. Quero mostrar aos meus semelhantes um homem em toda verdade de sua natureza; eu serei esse homem”. Prossegue: “Sinto meu coração e conheço os homens. Não sou feito como nenhum dos que já vi; e ouso crer que não sou feito como nenhum dos que existem. Se não sou melhor, sou, pelo menos, diferente. E só depois de me haver lido é que poderá alguém julgar se a natureza fez bem ou mal em quebrar a forma que me moldou”. Em seguida, como quem está concluindo: “Soe quando quiser a trombeta do juízo final: virei, com este livro nas mãos, comparecer diante do soberano Juiz. Direi altivo: ‘Eis o que fiz, o que pensei o que fui. Disse o bem e o mal com a mesma franqueza’.”
José Brito Broca (1903 – 1961), paulista nascido em Guaratinguetá, autor do clássico A vida literária no Brasil em 1900, e um dos nossos mais argutos críticos literários, estabeleceu uma importante distinção entre livro de “memórias” e de “confissões”. Distinção que nos ajuda a compreender o pioneirismo contido no referido livro de Rousseau. Escreveu Brito Broca: “Nas ‘memórias, às vezes escritas com furioso part pris, como nas de Saint-Simon, o autor não empenha toda a personalidade”. Portanto, a preocupação de quem escreve memórias é a de não se expor, resguardando a privacidade. Ora, ocorre o inverso com quem escreve confissões. Nestas: “o autor vem a público realizar uma espécie de desnudamento moral”. Brito Broca considera que no caso se enquadram “As Confissões” de Jean-Jacques Rousseau e o Diário Íntimo de André Gide.
Pioneiro no gênero, Rousseau se desnuda por inteiro em “As Confissões”. Fala abertamente de suas amantes, de suas práticas sexuais, de suas relações com Teresa – uma mulher simples que foi sua companheira durante décadas e com quem se casou no fim da vida -, dos cinco filhos que com ela teve, todos entregues a Casa do Expostos, e das razões de tão inacreditável conduta. Fala também de seus amigos e inimigos, da maneira como odiava Voltaire (que o humilhara), das jovens que sem razão difamou e de outros deslizes que cometeu, dos ofícios exercidos, de literatura, filosofia, ciências, poder e arte, e de muitos outras questões, sempre passando a idéia de que está colocando forte dose de emoção em tudo o que está confessando.
Por fim, vale dizer que há uma sutil diferença entre o Rousseau do Emilio e o de “As Confissões”. Se no primeiro, o autor, com base no seu princípio filosófico maior, ou seja, “o homem nasce bom e a sociedade o corrompe”, escreve sobre os cuidados que o educador deveria ter para que a “bondade natural” do educando (Emílio) fosse mantida, nunca sendo maculada pela sociedade; no segundo, se apresenta como um produto da vida social e despe o “mito” diante do mundo.
Visitar ou “As Confissões” do “Citoyen de Genève”, mais de dois séculos após a sua morte é como viajar por dentro da alma humana.

Aluizio Alves Filho. Prof. de C. Política da UFRJ - Achegas

4 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Mais uma resenha oportuna, necessária, que não se encontra na grande mesquinha imprensa. Esse livro e seu criador para mim são tão importantes que transcrevi duas linhas dele, como epígrafe do meu romance Os Corações Futuristas: "E o que prova que não era uma paixão tola é que meu coração formava meu espírito". Esse pensamento caiu e cai como uma luva para a paixão política, que faza todo o ser, dos jovens militantes contra a ditadura em 1970.

02 agosto, 2006 08:39  
Blogger Vera do Val said...

Concordo com Urariano e acrescento: é um livro que expõe o homem que existe atrás do gênio.
Bjs Aluízio e parabens.

02 agosto, 2006 11:13  
Anonymous Anônimo said...

Olhar o mesmo que outros olharam e ver aquilo que ninguém antes viu. É isso que muitas vezes chamamos de conhecer, de ciência, de descobrimento, chamem como quiserem. É precisamente isto que o texto de Alves Filho nos incentiva a fazer: através do escrutínio preciso e audaz, podemos vislumbrar um Rousseau que se mostra ausente de muitas salas de aula e textos adotados nas universidades. Apresenta-se um Rousseau humano, irremediavelmente humano com suas mazelas, suas emoções, seus sentimentos. Sua vida reflete-se em sua obra. Nem ele (nem qualquer outro pensador) conseguiria dissociar sua reflexão de seu tempo, de sua experiência, embora, por negligência (intencional ou não), muitas vezes isso não seja exposto de maneira clara na para os recém chegados à academia. O Professor Alves filho nos alerta desse perigo; nos convida suprir esse lacuna, a olhar para aspectos ainda “ocultos” e a ver aquilo que ainda não vimos. Seu texto se trata de uma muito bem-vinda chamada ao aprofundamento dos olhares sobre uma figura histórica impar como foi Rousseau. Parabens Professor!

05 agosto, 2006 19:42  
Anonymous Anônimo said...

A verve de escritor e a perspicácia aguda do crítico dos nossos tempos, tornam este extrato uma delícia de leitura. Aluizio ,ao mostrar essa face de Rousseau - o homem não o mito - nos proporciona um saudável desconforto e nos induz a refletir, questionando: no que este homem, absolutamente humano e por vezes atormentado, se parece com este dos tempos atuais?
Parabéns, professor, um belo momento de inspiração!

09 agosto, 2006 10:30  

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