A Correspondência entre Monteiro Lobato e Lima Barreto
A Correspondência entre Monteiro Lobato e Lima Barreto
Edgar Cavalheiro (org.)
Rio de Janeiro
Ministério da Educação e Cultura – Serviço de Documentação
71 págs.
1955
Livros são como pessoas. Há os que são amados e os que são desprezados. Os primeiros têm boa apresentação, são conhecidos, moram em estantes ilustres e nas vitrines das livrarias - esgotando sucessivas edições. Os segundos, coitados, usam sapatos cambaios, roupas bregas e amarelecidas pelo tempo, têm cara de fome e permanecem encalhados em sebos, sem que ninguém se interesse em acariciá-los, pegando-os nas mãos, folheando-os, ou flertando com eles, lendo um pedaço aqui e outro acolá. Livros assim, fazem lembrar moças feias que nos bailes ficam tristonhas e semi-escondidas, tomando chá-de-cadeira.
Mas o mundo das letras, como o mundo dos homens, tem os seus mistérios. Sucesso e fracasso – em ambos os mundos – nem sempre são produtos da competência ou da falta dela, respectivamente, e talvez em muitos casos não sejam. Há livros que nunca deveriam ter sido publicados, de tão bisonhos que são. Há o caso inverso, dos livros que são bons mas, sem padrinhos, não encontram condições para nascer. Existe também o caso de importantes livros que são publicados, fazem sucesso, depois caem no vazio do mercado, ficam aguardando uma segunda edição que não vem, sem que ninguém entenda direito por quê. Este é o caso do livro que dá margem as presentes considerações.
Porque não reeditam A correspondência entre Monteiro Lobato e Lima Barreto? Trata-se de livro composto por 42 cartas trocados ente Monteiro Lobato (1882 – 1948) e Lima Barreto (1881 – 1922); cartas reunidas e comentadas por Edgar Cavalheiro e que se configuram como um documento básico, tanto para um melhor entendimento da vida e da obra de dois grandes vultos das letras nacionais quanto para o resgate de aspectos substantivos do nosso passado literário.
O pontapé inicial da correspondência é dado por Monteiro Lobato em 1918 – ano em que o escritor paulista não apenas estreou no mundo das letras com Urupês, com retumbante sucesso, mas também que adquiriu a Revista do Brasil, tornando-se um editor que abriria espaço para autores nacionais até então desconhecidos, entre outros: Oliveira Vianna, Lima Barreto e Godofredo Rangel – e termina em 1922, ano em que faleceu o romancista de O triste fim de Policarpo Quaresma.
Leitor inveterado, Lobato lia tudo que caia em suas mãos. Um dia, antes de tornar-se o editor que, nas décadas de 10 e 20 do século passado, revolucionou a indústria do livro no país, deparou-se “na Águia” com dois contos de Lima Barreto. Leu-os avidamente e, com Godofredo Rangel, em carta datada de 1/10/1916, após comentar que se inteirara nos jornais sobre o sucesso do “Policarpo Quaresma”, vaticinara a respeito de seu autor: “bacoreja-me que temos pela frente o romancista brasileiro que faltava” (M. Lobato. A Barca de Gleyre, O.C., v. 2, SP, Brasiliense, 1959, pág.108).
Foi para convidar Lima Barreto para colaborar na Revista do Brasil que Lobato escreveu para ele em 2/9/1918. Após elogiar seu estilo solto e sem rapapés, Lobato observa: “A confraria é pobre mais paga, pois isso não há razão para Lima Barreto deixar de acudir ao nosso apelo” (Correspondência ML/LB, pág. 14). O autor de Bruzundangas não apenas colabora como envia o manuscrito de Vida e Morte de M.J. Gonzaga de Sá solicitando que Lobato o examinasse e dissesse se tinha interesse em editá-lo. A resposta não tarda, está datada de 15/10/1918. O editor informa que sendo trabalho de Lima Barreto nem tinha necessidade de ler, ia publicá-lo. Propunha uma edição de 3.000 exemplares e bons cobres sobre o lucro. Lima Barreto ficou perplexo: era a primeira vez que recebia uma proposta dessas. Até então, nenhum editor o havia procurado, com semelhante oferecimento. Todos os seus romances tinham sido publicados por sua própria iniciativa, pedindo, oferecendo, ou pagando ele mesmo a edição” ( Francisco de Assis Barbosa. A vida de Lima Barreto. RJ, José Olympio, 1952, pág. 260).
Em 1922, empolgado com o sucesso literário, não só de Urupês mas de seus primeiros livros, Lobato candidatou-se a Academia Brasileira de Letras. O resultado deixou-o decepcionado e durante algum tempo amargou a dor da recusa. Lima Barreto, em 1919, também tentara obter a chamada “imortalidade acadêmica”, não tendo êxito. Décadas mais tarde, após a queda do Estado Novo (1945) ocorreu um movimento para convencer Lobato, então no auge da fama, a candidatar-se novamente a ABL. Inclusive acadêmicos lhe enviam documento a respeito. O pai do Jeca, que fora perseguido e preso na vigência da ditadura de Getúlio Vargas, referindo-se ao pai dos pobres, ironizou: “Convidaram-me para entrar lá, mas sou muito coerente comigo mesmo. Só serei imortal se puserem esse grande gênio para fora de lá, a pontapés” (Lobato. Prefácios e Entrevistas). E Lima Barreto? Ora, era praticamente impossível que uma sociedade marcadamente racista elegesse um negro pobre que escrevia textos de forte crítica social e residia num subúrbio do Rio de Janeiro (Todos os Santos) para ocupar uma cadeira na refinada Academia. Além, disso, na ABL, os acadêmicos tomam chã toda quinta-feira e Lima Barreto tomava cachaça todo dia – como observou H.Pereira dos Santos em Lima Barreto Escritor maldito (1981).
A irreverência, o não ter papas na língua e o bem saber escrever são traços comuns que estão presentes na literatura dos amigos, o paulista José Bento Monteiro Lobato, neto do barão de Tremembé, e a Afonso Henriques de Lima Barreto, filho de um modesto funcionário público. Traços comuns e cada vez mais raros nos dias correntes.
Oxalá que a correspondência entre os dois escritores, que há meio século veio a lume volte a encontrar morada na claridade das livrarias e estantes contemporâneas.
Aluízio Alves Filho
Aluizio Alves Filho é professor e pesquisador do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Leciona também na Pontifícia Universidade Católica - RJ. É mestre em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, centro de excelência que faz parte da Universidade Cândido Mendes. É também doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília e em Estudos Comparativos entre a América Latina e o Caribe pela Facultad Latina-Americana de Ciencias Sociales, cuja sede fica em San Jose da Costa Rica. O primeiro livro que publicou – O Pensamento Político no Brasil : Manoel Bomfim um ensaísta esquecido (Achiamé,1979) – hoje é referência nacional. Publicou também o romance-fábula Os Bichos na Pós-Revolução ‘A Perereka’ (Obra Aberta, 1994), uma sátira da queda do chamado socialismo real na antiga União Soviética, ocorrida em 1991. Este texto foi premiado com Menção Honrosa no Concurso Nacional de Romances – 1993, da Secretaria de Estado da Cultura do Paraná. Outra publicação do autor que, pela originalidade, merece ser destacada é o ensaio As Metamorfoses do Jeca Tatu: a questão da identidade do brasileiro em Monteiro Lobato (Inverta, 2003). Aluizio que também é autor de diversos artigos acadêmicos, freqüente colaborador de alguns do mais importantes diários do país e analista político de programas de rádio e TV, já foi diversamente premiado em concursos de contos. Juntamente com Leonardo Petronilha edita a revista de ciência política Achegas, uma das mais consultadas publicações eletrônicas na área das ciências sociais.
A partir de hoje Aluizio Alves Filho passa a fazer parte do quadro de colaboradores permanentes do Rosebud-Livros.
Edgar Cavalheiro (org.)
Rio de Janeiro
Ministério da Educação e Cultura – Serviço de Documentação
71 págs.
1955
Livros são como pessoas. Há os que são amados e os que são desprezados. Os primeiros têm boa apresentação, são conhecidos, moram em estantes ilustres e nas vitrines das livrarias - esgotando sucessivas edições. Os segundos, coitados, usam sapatos cambaios, roupas bregas e amarelecidas pelo tempo, têm cara de fome e permanecem encalhados em sebos, sem que ninguém se interesse em acariciá-los, pegando-os nas mãos, folheando-os, ou flertando com eles, lendo um pedaço aqui e outro acolá. Livros assim, fazem lembrar moças feias que nos bailes ficam tristonhas e semi-escondidas, tomando chá-de-cadeira.
Mas o mundo das letras, como o mundo dos homens, tem os seus mistérios. Sucesso e fracasso – em ambos os mundos – nem sempre são produtos da competência ou da falta dela, respectivamente, e talvez em muitos casos não sejam. Há livros que nunca deveriam ter sido publicados, de tão bisonhos que são. Há o caso inverso, dos livros que são bons mas, sem padrinhos, não encontram condições para nascer. Existe também o caso de importantes livros que são publicados, fazem sucesso, depois caem no vazio do mercado, ficam aguardando uma segunda edição que não vem, sem que ninguém entenda direito por quê. Este é o caso do livro que dá margem as presentes considerações.
Porque não reeditam A correspondência entre Monteiro Lobato e Lima Barreto? Trata-se de livro composto por 42 cartas trocados ente Monteiro Lobato (1882 – 1948) e Lima Barreto (1881 – 1922); cartas reunidas e comentadas por Edgar Cavalheiro e que se configuram como um documento básico, tanto para um melhor entendimento da vida e da obra de dois grandes vultos das letras nacionais quanto para o resgate de aspectos substantivos do nosso passado literário.
O pontapé inicial da correspondência é dado por Monteiro Lobato em 1918 – ano em que o escritor paulista não apenas estreou no mundo das letras com Urupês, com retumbante sucesso, mas também que adquiriu a Revista do Brasil, tornando-se um editor que abriria espaço para autores nacionais até então desconhecidos, entre outros: Oliveira Vianna, Lima Barreto e Godofredo Rangel – e termina em 1922, ano em que faleceu o romancista de O triste fim de Policarpo Quaresma.
Leitor inveterado, Lobato lia tudo que caia em suas mãos. Um dia, antes de tornar-se o editor que, nas décadas de 10 e 20 do século passado, revolucionou a indústria do livro no país, deparou-se “na Águia” com dois contos de Lima Barreto. Leu-os avidamente e, com Godofredo Rangel, em carta datada de 1/10/1916, após comentar que se inteirara nos jornais sobre o sucesso do “Policarpo Quaresma”, vaticinara a respeito de seu autor: “bacoreja-me que temos pela frente o romancista brasileiro que faltava” (M. Lobato. A Barca de Gleyre, O.C., v. 2, SP, Brasiliense, 1959, pág.108).
Foi para convidar Lima Barreto para colaborar na Revista do Brasil que Lobato escreveu para ele em 2/9/1918. Após elogiar seu estilo solto e sem rapapés, Lobato observa: “A confraria é pobre mais paga, pois isso não há razão para Lima Barreto deixar de acudir ao nosso apelo” (Correspondência ML/LB, pág. 14). O autor de Bruzundangas não apenas colabora como envia o manuscrito de Vida e Morte de M.J. Gonzaga de Sá solicitando que Lobato o examinasse e dissesse se tinha interesse em editá-lo. A resposta não tarda, está datada de 15/10/1918. O editor informa que sendo trabalho de Lima Barreto nem tinha necessidade de ler, ia publicá-lo. Propunha uma edição de 3.000 exemplares e bons cobres sobre o lucro. Lima Barreto ficou perplexo: era a primeira vez que recebia uma proposta dessas. Até então, nenhum editor o havia procurado, com semelhante oferecimento. Todos os seus romances tinham sido publicados por sua própria iniciativa, pedindo, oferecendo, ou pagando ele mesmo a edição” ( Francisco de Assis Barbosa. A vida de Lima Barreto. RJ, José Olympio, 1952, pág. 260).
Em 1922, empolgado com o sucesso literário, não só de Urupês mas de seus primeiros livros, Lobato candidatou-se a Academia Brasileira de Letras. O resultado deixou-o decepcionado e durante algum tempo amargou a dor da recusa. Lima Barreto, em 1919, também tentara obter a chamada “imortalidade acadêmica”, não tendo êxito. Décadas mais tarde, após a queda do Estado Novo (1945) ocorreu um movimento para convencer Lobato, então no auge da fama, a candidatar-se novamente a ABL. Inclusive acadêmicos lhe enviam documento a respeito. O pai do Jeca, que fora perseguido e preso na vigência da ditadura de Getúlio Vargas, referindo-se ao pai dos pobres, ironizou: “Convidaram-me para entrar lá, mas sou muito coerente comigo mesmo. Só serei imortal se puserem esse grande gênio para fora de lá, a pontapés” (Lobato. Prefácios e Entrevistas). E Lima Barreto? Ora, era praticamente impossível que uma sociedade marcadamente racista elegesse um negro pobre que escrevia textos de forte crítica social e residia num subúrbio do Rio de Janeiro (Todos os Santos) para ocupar uma cadeira na refinada Academia. Além, disso, na ABL, os acadêmicos tomam chã toda quinta-feira e Lima Barreto tomava cachaça todo dia – como observou H.Pereira dos Santos em Lima Barreto Escritor maldito (1981).
A irreverência, o não ter papas na língua e o bem saber escrever são traços comuns que estão presentes na literatura dos amigos, o paulista José Bento Monteiro Lobato, neto do barão de Tremembé, e a Afonso Henriques de Lima Barreto, filho de um modesto funcionário público. Traços comuns e cada vez mais raros nos dias correntes.
Oxalá que a correspondência entre os dois escritores, que há meio século veio a lume volte a encontrar morada na claridade das livrarias e estantes contemporâneas.
Aluízio Alves Filho
Aluizio Alves Filho é professor e pesquisador do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Leciona também na Pontifícia Universidade Católica - RJ. É mestre em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, centro de excelência que faz parte da Universidade Cândido Mendes. É também doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília e em Estudos Comparativos entre a América Latina e o Caribe pela Facultad Latina-Americana de Ciencias Sociales, cuja sede fica em San Jose da Costa Rica. O primeiro livro que publicou – O Pensamento Político no Brasil : Manoel Bomfim um ensaísta esquecido (Achiamé,1979) – hoje é referência nacional. Publicou também o romance-fábula Os Bichos na Pós-Revolução ‘A Perereka’ (Obra Aberta, 1994), uma sátira da queda do chamado socialismo real na antiga União Soviética, ocorrida em 1991. Este texto foi premiado com Menção Honrosa no Concurso Nacional de Romances – 1993, da Secretaria de Estado da Cultura do Paraná. Outra publicação do autor que, pela originalidade, merece ser destacada é o ensaio As Metamorfoses do Jeca Tatu: a questão da identidade do brasileiro em Monteiro Lobato (Inverta, 2003). Aluizio que também é autor de diversos artigos acadêmicos, freqüente colaborador de alguns do mais importantes diários do país e analista político de programas de rádio e TV, já foi diversamente premiado em concursos de contos. Juntamente com Leonardo Petronilha edita a revista de ciência política Achegas, uma das mais consultadas publicações eletrônicas na área das ciências sociais.
A partir de hoje Aluizio Alves Filho passa a fazer parte do quadro de colaboradores permanentes do Rosebud-Livros.
6 Comments:
Bravo mesmo, complementando Uraniano. Minhas boas vindas a Aluízio. Estava ansiosa para ler este artigo. Valeu a espera, excelente.
Abraços.
Bem vindo, Aluízio. Tê-lo conosco é um gde prazer.
Que prazer ler esse texto! Vou ficar de olho para ver quando sai o seu próximo!
Hey what a great site keep up the work its excellent.
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Grande texto! De escrita leve, fluida e desenvolta, a contribuição do Profº Aluízio nos oferece uma oportuna lembrança das lições (de cunho ético, político ou literário) de nossos antigos mestres. Como as cartas demonstraram, escritores de sensibilidade se reconhecem... Lobato reconheceu Barreto, Aluízio reconheceu a importância de ambos e alguns dos comentários acima já demonstram o reconhecimento do trabalho de uns e outros como Aluízio que nos incitam a (re)pensar e criticar muitas das formas pelas quais agimos e pensamos nossa sociedade e literatura. Esperamos novas e sempre bem-vindas escritas.
O professor pediu e o livro foi publicado ontem, 7 - 7 - 2017. Parabéns!
Peça agora a republicação de "Monteiro Lobato: Vida e obra", também de Edgard Cavalheiro, um dos melhores e mais vendidos livros de 1955, a biografia não superada do velho Lobato.
Obrigado, parabéns pelo belo texto.
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