quinta-feira, junho 29, 2006

Memórias póstumas de Brás Cubas

Machado de Assis
S.A.Editora


Por conta de um trabalho, dei uma passeada pelo livro.
É imbatível na lista das dez melhores coisas que já li. Aliás, para faciltar a construção da lista, conto Memórias Póstumas, Quincas Borba e Dom Casmurro como um só livro...
Das notas para o trabalho resultou o texto que segue.

Memórias Póstumas de Brás Cubas é um livro surpreendente. Do título à última frase. A maneira como o livro é construído, em pequenos capítulos que mais parecem crônicas que podem quase ser lidas ao acaso; o tom crítico e irônico; a própria idéia de fazê-lo narrado por um morto; Tudo isso faz dele um livro moderno em pleno século 19!
Um exemplo dessa "modernidade" é o diálogo sem palavras, puramente gráfico, que Machado de Assis constrói só com pontos, interrogações, exclamações e reticências para representar a conversa de dois apaixonados no capítulo LV, O Velho Diálogo de Adão e Eva.
Ao eliminar as palavras e mostrar a extensão das frases (os pontos) e o tom em que são ditas (as exclamações e interrogações), ao mesmo tempo que ressalta a importância da oralidade na construção dos sentidos, Machado cria um diálogo que parece feito de olhares e gestos mais do que de vozes.

Capítulo LV - O Velho Diálogo de Adão e Eva

Brás Cubas . . . . . ?
Virgília . . . . . .
Brás Cubas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Virgília . . . . . . !
Brás Cubas . . . . . . .
Virgília . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Brás Cubas . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Virgília . . . . . . .
Brás Cubas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ! . . . . . . . . !
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . !
Virgília . . . . . . . . . . . . . . . . . ?
Brás Cubas . . . . . . . !
Virgília . . . . . . . !

Em outro momento, Machado deixa um capítulo em branco, para expressar o sentimento "inexprimível" que foi perder a indicação de ministro que tanto esperava. Duas formas hábeis de usar a "ausência de palavras" para expressar com mais precisão o que se quer dizer.
Machado é sempre engraçado, encantador, genial em sua simplicidade. Não é à toa o título de "O Mago do Cosme Velho".
Essa habilidade fica evidente na quantidade de "grandes frases" que há no livro: dá pra se dizer que há ao menos uma "grande frase" por capítulo. Só para citar algumas, de cabeça: "Ao vencedor, as batatas". "O menino é o pai do homem". "Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis". "Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria".
A narrativa se alterna de forma incessante e inesperada, ora descritiva, ora crítica, ora quase indulgente, ora ácida e mordaz, avançando e recuando na biografia de Brás segundo
as digressões e citações que aparentemente lhe ocorrem ao acaso, numa construção típica das conversas íntimas onde "um assunto puxa outro...". Esse clima de intimidade é certamente um dos segredos do sucesso de Machado.
E ele nos envolve de tal modo em sua fabulação que quase nem reparamos em outro aspecto surpreendente do livro: nada de grandioso de fato acontece na vida de Brás que merecesse um romance.
Nesse sentido, mais do que realista, Memórias Póstumas chega a ser anti-romântico.
A melancolia de Brás/ Machado, temperada pelo humor, resulta em ironia que se espalha por todo o livro - implacável e, ao mesmo tempo, indulgente com o ridículo humano em seus sonhos de poder e grandeza. Sem mais compromissos com a carcaça que deixou para trás, Brás fala de si e nos aponta: suas ilusões, fantasias, egoísmos, fraquezas são universalmente verdadeiras, reais, humanas. O contraste "realista" entre a sonsa grandiloqüência das intenções e a má vontade e flacidez dos gestos ressalta o egoísmo e a fraqueza do humano "desidealizado" de Machado. De certo modo, a pobreza dos resultados se não nos redime, ao menos, nos torna veniais.
Ainda que não case nem gere filhos, Brás não é um marginal, um outsider - ao menos quando vivo. Todo seu esforço é sempre de se ajustar para melhor satisfazer seus desejos. Não há maldade nele, mas um egoísmo "selvagem" - no sentido de infantil - em sua inocência perversa:
"Virgília era o travesseiro do meu espírito, um travesseiro mole, tépido, aromático, enfronhado em cambraia e bruxelas. (...) Cinco minutos bastaram para olvidar inteiramente Quincas Borba; (...) cinco minutos e um beijo. E lá se foi a lembrança do Quincas Borba. (...) que me importa que existas, que molestes os olhos dos outros, se eu tenho dous palmos de um travesseiro divino, para fechar os olhos e dormir?".
Em Machado, ninguém é de todo mau e ninguém é decididamente bom. Todos parecem viver ao sabor de suas paixões, inteiramente alheios a tudo que foge ao âmbito delas. Tudo corre sob uma aura de ilusão, seja auto-engano ou fingimento.
Realismo..? E os manuais acrescentam, para que não haja dúvida: realismo psicológico - querendo dizer explicitamente que é assim a alma humana.Aliás, ser o narrador uma alma - ou um desencarnado - ainda ressalta o "exame de consciência" que é o livro.
Mas certamente não é um realismo no sentido naturalista ou mesmo materialista, mas no sentido da "real motivação" das ações humanas. O homem não é mais romanticamente visto como um ser movido por ou contra princípios, nem por sentimentos radicais e grandiloquentes. É a paixão, o desejo, a vaidade que regem o comportamento humano, sim - mas em Machado ninguém mata ou morre por isso. De fato, morre-se de muita má vontade em Machado - a começar por Brás Cubas - que, apesar do pessimismo, não hesita em nos legar suas memórias.
Memórias Póstumas de Brás Cubas foi publicado em 1881, quando Machado estava com 42 anos e era já um escritor consagrado. Obra da maturidade, mas que não deixou de surpreender a todos os seus contemporâneos, pela ruptura que representa na linha de produção do autor: nada antes permitia prever um "desvio criativo" de tal ordem na obra de Machado. Claro, todas as características dele - a ironia, a inventividade, o pessimismo, a habilidade com as palavras - estão lá, mas concentradas e bem articuladas entre si - e quando se diz "obra da maturidade", não se pensa tanto na idade do autor à época, mas exatamente nessa confluência de forças internas..

O último parágrafo do livro resume a visão que Machado/ Brás tem de si e da vida em geral:
"Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de Dona Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que sai quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria."

Antonio Caetano – Café Impresso

5 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Excelente comentário, Antonio Caetano.

30 junho, 2006 23:46  
Blogger Leila Silva said...

Antonio Caetano,

Parabéns pela resenha, muito boa mesmo. Adorei.
Abraços

04 julho, 2006 09:53  
Anonymous Anônimo said...

Very best site. Keep working. Will return in the near future.
»

19 julho, 2006 22:52  
Blogger Unknown said...

otimo comentario...
Antonio Caetano.
parabens e sucesso.
abraços e beijos.

03 junho, 2008 20:18  
Anonymous Rodrigo said...

Otima resenha, muito boa, parabéns

10 setembro, 2009 18:37  

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