Literatura e jornalismo
Ficar ou não ficar
Tom Wolfe
Ed Rocco.
"Ficar ou Não Ficar", de Tom Wolfe é um livro para quem gosta de polêmica, disputa de idéias e boas reportagens. Indispensável para jornalistas e pretendentes. No final dos anos setenta, Wolfe já era um jornalista consagrado como um dos criadores do New Journalism americano e eu nem ouvi sequer falar dele na universidade. Duvido que esteja sendo lido hoje. Questões ideológicas, presumo.
O Novo Jornalismo foi o nome que se deu ao uso de técnicas literárias na narrativa jornalística. Não é exatamente uma novidade e dito assim pode produzir equívocos tais como leads engraçadinhos. No caso de Wolfe, Novo Jornalismo significa um modo próprio de misturar densidade intelectual, investigação primária e uma linguagem agressiva - quase marrom, às vezes, de tão irreverente. O resultado é devastador: armado de argumentos, Wolfe chega a ser malévolo. Em alguns momentos, lembra Mike Tyson: não consegue parar de bater. O melhor exemplo são os dois artigos que fecham o livro, escritos com a única intenção de demolir a aura oracular da tradicionalíssima revista "New Yorker". Minto: há também o artigo que antecede esses dois, "Meus Três Patetas", onde Wolfe responde com ferocidade às críticas que dois "monstros sagrados" da literatura americana contemporânea, Mailler e Updike, lançaram contra seu segundo romance, Um Homem Por Inteiro.
Esta é outra marca de Wolfe. Munido de um arsenal de fatos, boa argumentação e gosto pelo escândalo, ele investe sempre contra a unanimidade - sempre. No mínimo, buscando um ângulo nem exatamente novo, mas "esquecido".
Um exemplo: quem poderia imaginar que toda essa "nova filosofia administrativa" americana - esse papo de descentralização, organização vertical, delegação de poder, trabalho em equipe, etc - a boa nova que ainda faz a fortuna de tantos gurus e consultores empresariais - não é uma novidade saída das grandes universidades do Leste, mas a simples transposição para o mundo dos negócios da rígida ética calvinista promovida por um único homem, um caipira genial?
Essa "surpresa" nos é revelada no melhor de todos os artigos, "Dois Rapazes a Caminho do Leste", que narra a história do Vale do Silício a partir da biografia daquele que foi seu fundador e inspirador, o "caipira" Bob Noyce.
Lê-se o texto como um conto - a custo nos dando conta de que aquilo tudo são fatos e não ficção. Não só pela escritura em si, mas pela novidade, para a maioria provável dos leitores, de todos os nomes. Para quem gosta de Informática, História, Nova Economia, etc. é um prato cheio e já justificaria a compra do livro.
Bob Noyce foi, nada menos, do que o inventor do circuito integrado, do microchip, um dos pioneiros do Vale do Silicio e o fundador da Intel, a célula-matriz da qual todos os demais concorrentes e fornecedores saíram. Uma figura lendária. E esquecida.
Aliás, não é uma tese explícita de Wolfe, mas pode-se depreender do artigo seguinte que, se Bob Noyce é o pai mítico da Era Digital, Teilhard de Chardin, foi seu profeta. Sim, ele mesmo, Teilhard de Chadin, o esquecido teólogo jesuíta francês que sua tia católica vivia insistindo para que você lesse...
É surpreendente, não?
Outra coisa a se destacar: fundar a história do Vale do Sicílio na biografia de um homem, é tomar partido por uma abordagem da História francamente anti-marxista, que privilegia a ação humana individual à luta de classes e contra todo determinismo histórico.
Quero dizer com isso o óbvio: que há um pensamento que sustenta o texto de Wolfe, onde nada é portanto fortuito. Óbvio porque ele mesmo, muitas vezes, faz a defesa de sua estética.
Suas teses sobre Cultura e História o aproximam, entre outros, de Alain Bloom - e suas críticas ao relativismo e ao multiculturalismo (O Declínio da Cultura Ocidental) - e de Arthur Schelsinger Jr. - e sua resposta a interpretação marxista da história americana (Os Ciclos da História Americana) - dois livros, aliás, muito interessantes, ainda mais nestes tempos de Bush.
Wolfe crê na América como o paradigma da Democracia e é sob essa perspectiva assumidamente imperial que sua crítica deve ser entendida. Para ele, os EUA são os herdeiros do legado civilizatório passado de mão e mão ao longo dos séculos, desde a Atenas de Péricles até a Nova York dos dias de hoje.
É dessa prespectiva que ele tece sua crítica à América. Não há culpa, nem tampouco "desconstrução do discurso tirânico". Há, sim, uma "chamada" cáustica à responsabilidade, uma cobrança explícita de coerência entre a realidade e o projeto americanos.
Nesse sentido, o desdém que consagra a Foucault e Derrida não é mera "originalidade" ou "conservadorismo", mas resultado de uma "tomada de posição" alinhada à tradição anglo-saxã de apreço aos fatos e à capacidade da língua de representá-los adequadamente. Wolfe decididamente não está contaminado por essa "desconfiança da linguagem" que resulta no que poderíamos chamar de "pânico do compromisso", expressão que me ocorre agora e remete ao título do livro "Ficar ou Não Ficar". (Trata-se do artigo de abertura, onde Wolfe, à maneira de um memorialista do futuro, fala de um distante ano 2000 com algum espanto. É engraçado - me lembrou outro "esquecido", Kurt Vonnegut). Num ambiente dominado pelo "relativismo" qualquer compromisso soa como uma opção herética pela Verdade.
Aparentemente, Wolfe contrapõe a esse "neoespiritismo franco-germânico", que tem em Heidegger seu pai-de-santo, o neoevolucionismo, uma espécie de perversão hiperrealista que reduz tudo à genética. Fotos do cérebro? Bergson, em Matéria e Memória, já oferecia, há quase um século, argumentos interessantes contra essa tese ou qualquer outra que reduzisse o pensamento às funções cerebrais. Logo no prefácio, ele cria uma imagem que ilustra bem sua posição: "Que haja solidariedade entre o estado de consciência e o cérebro, é incontestável. Mas há solidariedade também entre a roupa e o prego onde ela está pendurada, pois, se retirarmos o prego, a roupa cai. Diremos por isso que a forma do prego indica a forma da roupa ou nos permite de algum modo pressenti-la?".
Wolfe, no entanto, aposta suas fichas na evolução tecnológica que daria suporte às teses da neurociência monista ou antidualista, que nega a existência de qualquer coisa como alma, mente, ego ou que nome se dê a essa "outra" entidade que "parece" agir às vezes junto, às vezes contra, às vezes em paralelo ao corpo.
Eu, por precaução até, fico com o senso comum, e permaneço dualista.
Do mesmo modo, o realismo literário preconizado por Wolfe tem raízes na tradição empirista anglo-saxã: de Roger Bacon a Newton, de Hume a Russell, o racionalismo inglês - cético, realista e lógico - não pode sentir senão desprezo pela "leitura" francesa do racionalismo alemão, um racionalismo tão impregnado de... romantismo!?
No entanto, negar, em contraponto, todo experimentalismo literário baseado apenas nesse "gosto realista" me parece excessivo e inútil como argumento. Lê-se Fogueira de Vaidades com o mesmo prazer com que se lê Esperando Godot, de Beckett. Porque não será jamais a forma ou o engajamento nesta ou naquela "escola literária" que irá garantir a qualidade de um texto.
Concordo que seja tolice dizer que já não se pode escrever segundo os cânones realistas de Zola ou Flaubert - os romances de Wolfe foram sucessos estrondosos. Mas incorrer na tese oposta, de que só o romance realista faz sentido, é igualmente tolo.
Enfim, são inúmeras as questões que o livro põe em discussão. Pode-se concordar ou discordar - aliás, deve-se. Mas a briga é dura e exige argumentos fundados em fatos. Argumentos sólidos, portanto. Sem eles, melhor não se arriscar: é morte certa.
Antonio Caetano é jornalista e publica o Café Impresso
Tom Wolfe
Ed Rocco.
"Ficar ou Não Ficar", de Tom Wolfe é um livro para quem gosta de polêmica, disputa de idéias e boas reportagens. Indispensável para jornalistas e pretendentes. No final dos anos setenta, Wolfe já era um jornalista consagrado como um dos criadores do New Journalism americano e eu nem ouvi sequer falar dele na universidade. Duvido que esteja sendo lido hoje. Questões ideológicas, presumo.
O Novo Jornalismo foi o nome que se deu ao uso de técnicas literárias na narrativa jornalística. Não é exatamente uma novidade e dito assim pode produzir equívocos tais como leads engraçadinhos. No caso de Wolfe, Novo Jornalismo significa um modo próprio de misturar densidade intelectual, investigação primária e uma linguagem agressiva - quase marrom, às vezes, de tão irreverente. O resultado é devastador: armado de argumentos, Wolfe chega a ser malévolo. Em alguns momentos, lembra Mike Tyson: não consegue parar de bater. O melhor exemplo são os dois artigos que fecham o livro, escritos com a única intenção de demolir a aura oracular da tradicionalíssima revista "New Yorker". Minto: há também o artigo que antecede esses dois, "Meus Três Patetas", onde Wolfe responde com ferocidade às críticas que dois "monstros sagrados" da literatura americana contemporânea, Mailler e Updike, lançaram contra seu segundo romance, Um Homem Por Inteiro.
Esta é outra marca de Wolfe. Munido de um arsenal de fatos, boa argumentação e gosto pelo escândalo, ele investe sempre contra a unanimidade - sempre. No mínimo, buscando um ângulo nem exatamente novo, mas "esquecido".
Um exemplo: quem poderia imaginar que toda essa "nova filosofia administrativa" americana - esse papo de descentralização, organização vertical, delegação de poder, trabalho em equipe, etc - a boa nova que ainda faz a fortuna de tantos gurus e consultores empresariais - não é uma novidade saída das grandes universidades do Leste, mas a simples transposição para o mundo dos negócios da rígida ética calvinista promovida por um único homem, um caipira genial?
Essa "surpresa" nos é revelada no melhor de todos os artigos, "Dois Rapazes a Caminho do Leste", que narra a história do Vale do Silício a partir da biografia daquele que foi seu fundador e inspirador, o "caipira" Bob Noyce.
Lê-se o texto como um conto - a custo nos dando conta de que aquilo tudo são fatos e não ficção. Não só pela escritura em si, mas pela novidade, para a maioria provável dos leitores, de todos os nomes. Para quem gosta de Informática, História, Nova Economia, etc. é um prato cheio e já justificaria a compra do livro.
Bob Noyce foi, nada menos, do que o inventor do circuito integrado, do microchip, um dos pioneiros do Vale do Silicio e o fundador da Intel, a célula-matriz da qual todos os demais concorrentes e fornecedores saíram. Uma figura lendária. E esquecida.
Aliás, não é uma tese explícita de Wolfe, mas pode-se depreender do artigo seguinte que, se Bob Noyce é o pai mítico da Era Digital, Teilhard de Chardin, foi seu profeta. Sim, ele mesmo, Teilhard de Chadin, o esquecido teólogo jesuíta francês que sua tia católica vivia insistindo para que você lesse...
É surpreendente, não?
Outra coisa a se destacar: fundar a história do Vale do Sicílio na biografia de um homem, é tomar partido por uma abordagem da História francamente anti-marxista, que privilegia a ação humana individual à luta de classes e contra todo determinismo histórico.
Quero dizer com isso o óbvio: que há um pensamento que sustenta o texto de Wolfe, onde nada é portanto fortuito. Óbvio porque ele mesmo, muitas vezes, faz a defesa de sua estética.
Suas teses sobre Cultura e História o aproximam, entre outros, de Alain Bloom - e suas críticas ao relativismo e ao multiculturalismo (O Declínio da Cultura Ocidental) - e de Arthur Schelsinger Jr. - e sua resposta a interpretação marxista da história americana (Os Ciclos da História Americana) - dois livros, aliás, muito interessantes, ainda mais nestes tempos de Bush.
Wolfe crê na América como o paradigma da Democracia e é sob essa perspectiva assumidamente imperial que sua crítica deve ser entendida. Para ele, os EUA são os herdeiros do legado civilizatório passado de mão e mão ao longo dos séculos, desde a Atenas de Péricles até a Nova York dos dias de hoje.
É dessa prespectiva que ele tece sua crítica à América. Não há culpa, nem tampouco "desconstrução do discurso tirânico". Há, sim, uma "chamada" cáustica à responsabilidade, uma cobrança explícita de coerência entre a realidade e o projeto americanos.
Nesse sentido, o desdém que consagra a Foucault e Derrida não é mera "originalidade" ou "conservadorismo", mas resultado de uma "tomada de posição" alinhada à tradição anglo-saxã de apreço aos fatos e à capacidade da língua de representá-los adequadamente. Wolfe decididamente não está contaminado por essa "desconfiança da linguagem" que resulta no que poderíamos chamar de "pânico do compromisso", expressão que me ocorre agora e remete ao título do livro "Ficar ou Não Ficar". (Trata-se do artigo de abertura, onde Wolfe, à maneira de um memorialista do futuro, fala de um distante ano 2000 com algum espanto. É engraçado - me lembrou outro "esquecido", Kurt Vonnegut). Num ambiente dominado pelo "relativismo" qualquer compromisso soa como uma opção herética pela Verdade.
Aparentemente, Wolfe contrapõe a esse "neoespiritismo franco-germânico", que tem em Heidegger seu pai-de-santo, o neoevolucionismo, uma espécie de perversão hiperrealista que reduz tudo à genética. Fotos do cérebro? Bergson, em Matéria e Memória, já oferecia, há quase um século, argumentos interessantes contra essa tese ou qualquer outra que reduzisse o pensamento às funções cerebrais. Logo no prefácio, ele cria uma imagem que ilustra bem sua posição: "Que haja solidariedade entre o estado de consciência e o cérebro, é incontestável. Mas há solidariedade também entre a roupa e o prego onde ela está pendurada, pois, se retirarmos o prego, a roupa cai. Diremos por isso que a forma do prego indica a forma da roupa ou nos permite de algum modo pressenti-la?".
Wolfe, no entanto, aposta suas fichas na evolução tecnológica que daria suporte às teses da neurociência monista ou antidualista, que nega a existência de qualquer coisa como alma, mente, ego ou que nome se dê a essa "outra" entidade que "parece" agir às vezes junto, às vezes contra, às vezes em paralelo ao corpo.
Eu, por precaução até, fico com o senso comum, e permaneço dualista.
Do mesmo modo, o realismo literário preconizado por Wolfe tem raízes na tradição empirista anglo-saxã: de Roger Bacon a Newton, de Hume a Russell, o racionalismo inglês - cético, realista e lógico - não pode sentir senão desprezo pela "leitura" francesa do racionalismo alemão, um racionalismo tão impregnado de... romantismo!?
No entanto, negar, em contraponto, todo experimentalismo literário baseado apenas nesse "gosto realista" me parece excessivo e inútil como argumento. Lê-se Fogueira de Vaidades com o mesmo prazer com que se lê Esperando Godot, de Beckett. Porque não será jamais a forma ou o engajamento nesta ou naquela "escola literária" que irá garantir a qualidade de um texto.
Concordo que seja tolice dizer que já não se pode escrever segundo os cânones realistas de Zola ou Flaubert - os romances de Wolfe foram sucessos estrondosos. Mas incorrer na tese oposta, de que só o romance realista faz sentido, é igualmente tolo.
Enfim, são inúmeras as questões que o livro põe em discussão. Pode-se concordar ou discordar - aliás, deve-se. Mas a briga é dura e exige argumentos fundados em fatos. Argumentos sólidos, portanto. Sem eles, melhor não se arriscar: é morte certa.
Antonio Caetano é jornalista e publica o Café Impresso
2 Comments:
Bela pidida. É assunto que me interessa...
Ai, ai, como se disse aqui mesmo nete blog um dia desses, jamais teremos tempo para ler tudo o que gostaríamos de ler. Este livro me pareceu bem interessante - de Tom Wolfe li apenas A fogueira das vaidades, ótimo livro que deu um péssimo filme. Aliás, o filme foi um prodígio de miscasting; até Tom Hanks, num papel nada adequado a ele, chega a ser patético.
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