quarta-feira, janeiro 03, 2007

Advertência

"Os livros de que mais gostas acabarão primeiro". A frase me surge, súbita. De fato, "200 crônicas escolhidas" e "A borboleta amarela", de Rubem Braga, se desfizeram, encardidos e ressecados; "Obras completas", de Fernando Pessoa, perdeu a capa de couro e as páginas de papel arroz estão salpicadas de manchas escuras; "Trópico de Câncer", de Henry Miller, e "Jogo de amarelinha", de Julio Cortázar, dois livros que li mais ou menos na mesma época e me serviram de estímulo e refúgio naqueles tempos obscuros, os dois estão caindo aos pedaços já...
Falo apenas dos que estão agora bem diante dos meus olhos, quase ao alcance das mãos. Mas vou lembrando de outros livros que também estão quase destruídos pelo uso e pelo tempo e que, por isso, foram aposentados das estantes e hoje vivem sossegados em um armário daquele desvão da memória a que ainda chamamos de "quarto de empregada": "Fim de caso", "Os comediantes", "O cônsul honorário", entre outros de Graham Greene; "Sob o vulcão", de Malcom Lowry, "Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres", de Clarice Lispector, "Primeiras estórias", de Guimarães Rosa... São tantos...
"Os livros de que mais gostas acabarão primeiro", a frase continua ressoando, bíblica, como que trazida, de repente, por um anjo flamejante, cruel e realista.
"Os livros de que mais gostas acabarão primeiro". Há certamente nisso não sei que lição de vida que me seria muito importante guardar. Mas sua exata profundidade teima em me escapar. Pressinto-lhe a ironia, a aparente contradição que lhe confere ares de paradoxo e de onde se poderia extrair sem dificuldade conclusões untadas de niilismo. Sim, sim, vejo que, lá do fundo da frase, me acena discretíssimo desespero.
Os livros que mais gosto acabarão primeiro, claro, por força de manuseá-los mais, de emprestá-los mais; de levá-los por aí em viagens, passeios, mal-acomodados em bolsas, malas e sacolas; de largá-los nos ladrilhos frios do banheiro ou no chão, ao pé da cama. Sim, e daí?
Porque gosto deles - exatamente porque gosto mais deles - não têm a vida fácil dos livros que jamais serão lidos ou emprestados, aqueles que foram esquecidos antes de sequer serem abertos, que foram comprados pelo impulso vulgar de possuir apenas, mera posse sem desfrute, ter pelo simples prazer de ter, pelo medo de perder, luxo ostentatório do tiranete barroco que sobrevive quase esquecido em alguma ilha da minha alma, mas a quem às vezes ainda satisfaço um capricho.
Afinal, o que de tão absurdo pode haver nisso de os livros que mais gosto se acabarem antes? É uma conseqüência natural da vida dos livros, uma limitação deles que é preciso aceitar como tantas outras perdas, algumas até verdadeiramente irreparáveis.
E nem é assim tão claro que acabem porque os amo mais que os outros. Acabam porque acabam. Acabam porque acabar é próprio de tudo que é mundano. O resto são falsas metafísicas produzidas pela insônia associada ao vício de buscar perplexidade em tudo.
Mas ainda assim, que triste ver se acabarem esses livros tão amados! De uns, haverá certamente novas edições no mercado. De outros, nem isso. Talvez um ou outro exemplar pouco melhor conservado ainda sobreviva em algum sebo, mas são animais em extinção.
"Os livros de que mais gostas acabarão primeiro", repete o anjo realista a advertência em tom de despedida. E se alguma lição há nisso, vai com ele.

Antonio Caetano -
Café impresso

1 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Ah os livro caindo aos pedaços mas que teimamos em conservar... esses eu não lamento, estão bem abrigados, quietinhos em suas prateleiras. Alguns já comprei velhinhos mesmo, em algum sebo, ou herdei do meu pai.
Lamento, sim, os que já não tenho, queria tê-los aqui pertinho de mim: Minha biblioteca infanto-juvenil, que guardei por tantos anos para os filhos que um dia teria - até que, por questão de espaço, fui obrigada a me desfazer deles. Quando eu tiver filhos, pensei, eu compro tudo de novo. Só que muitos deles saíram de catálogo, e meus filhos crescerem sem ler Beau Geste, por exemplo. Lamento os tantos emprestados e nunca devolvidos. Hoje só empresto livros a gente confiável, que provou em ocasiões anteriores que pertence à nobre classe dos que devolvem os livros que levam de empréstimo. Dói fundo a ferida de várias centenas de livros extraviados durante uma mudança interestadual de residência. Os favoritos entre esses eu procuro em sebos e nos camelôs que vendem pelas esquinas. Mas nunca encontrei, em sebo ou caemlô algum, Sparkenbroke, de Charles Morgan, que faz parte da minha lista de livros mágicos. Atenção, eu disse livros mágicos e não os melhores que já li.
Minha história com Sparkenbroke foi acidentada. Livro do qual eu jamais ouvira falar e que pouca gente já leu, veio às minhas mãos por acaso. Eu passava uns dias na casa de praia de uma amiga; chovia sem parar, e o único livro que encontrei para ler foi Sparkenbroke, amarelado, sem capa, caindo aos pedaços. Foi amor à primeira vista, mas tive que deixá-lo lá na casa de sua dona. Anos depois encontrei num sebo um exemplar em ótimo estado, capa dura e tudo. É um dos que se perderam na tal mudança, mas faço fé que ainda hei de conseguir outro exemplar.
Tenho outra mania no que se refere a livros. Não gosto de dobrar o pescoço prum lado e pro outro quando procuro algum na estante. Então guardo-os com os títulos todos na mesma direção, mesmo que o livro tenha que ficar de cabeça para baixo.
Durante muitos anos evitei ler livros emprestados. Sou possessiva em relação aos livros, eu preferia comprá-los. Hoje, com as finanças lá em baixo e livros pelo preço que estão, leio mais o que me emprestam, o que nem sempre é o que eu desejaria ler naquele momento. Em compensação, livros que eu talvez não comprasse se revelaram gratas surpresas. Por exemplo, um romance de autor canadense de quem eu jamais ouvria falar, no original, em francês. Nome do livro e do autor? Não lembro, minha memória sempre foi péssima para esse tipo de coisa. Essa é uma das desvantagens do livro emprestado: não há como ir à estante verificar nome do autor e/ou da obra quando se gostaria de mencioná-los, como agora. Ou em busca da frase que gostaríamos de citar.Outra desvantagem do livro emprestado é que não podemos sublinhar trechos ou fazer comentários.
Acho que passei da conta no comentário quase crônica. Mas quem mandou me provocarem?

04 janeiro, 2007 23:56  

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