quarta-feira, outubro 31, 2007

Literatura de memória


"Quando esgotar a fonte, paro de escrever."

Minha literatura é de memória. Quando esgotar a fonte, paro de escrever, afirma o escritor amazonense Milton Hatoum (57), que participa da 12ª Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo. Autor dos romances Relatos de um Certo Oriente, Dois Irmãos e Cinzas do Norte, integrou o debate Arte, Moral e Erotismo, ao lado de Elisa Lucinda, Miroslaw Bujko e André de Leones.
Arquiteto, formado pela Universidade de São Paulo (USP), e professor universitário aposentado, concedeu entrevista enquanto degustava um fumo de palha em uma fria tarde ensolarada no norte gaúcho.

Com quantos anos escreveu seu primeiro livro e porque publicá-lo aos 37 anos?
Hatoum — Meu primeiro livro, poucos sabem, publiquei aos 25 anos. Não é um livro inesquecível. É um livro esquecido. Ainda bem. Trata-se de um livro de três fotógrafos que fotografaram na Amazônia. Escrevi alguns poemas e prosas. Era um livro artesanal. Na época, anos 70, foi um livro artesanal, feito na faculdade de arquitetura da USP. Eu queria ser poeta. Gosto de poesia. Meu primeiro romance, o Relatos de um Certo Oriente, foi inspirado pela poesia. Depois escrevi alguns contos, mas acho que não deu certo. Joguei tudo fora. Porém percebi que tinha matéria para escrever um romance. Levei anos, para fazê-lo. Eu tinha uma mania de ler muita coisa antes de começar a escrever. Não é bem assim. O primeiro livro você escreve com a experiência de leitura que se possui. Porém li Dostoievski, Tolstói, os russos. Li muita coisa por obrigação, que eu considerava uma chatice. Hoje, depois dos 50 anos, não me obrigo a mais nada.

Quantos anos você precisou entre a elaboração das primeiras escritas e a consolidação do primeiro livro?
Hatoum — Comecei a escrever Relatos quando morava em Paris. Depois continuei-o em Manaus, por quatro anos. Fui para a Espanha e voltei para Manaus, onde trabalhei como professor da universidade. Terminei o livro em 86. Ficou esquecido até um editor do Rio de Janeiro descobrir que eu tinha o manuscrito. Aí o editor saiu da editora e ao final o livro foi publicado somente em 1989. Nunca tive pressa em publicar.

Começou a escrever o Relatos na França. A escrita como saudades de casa foi a origem do primeiro livro?
Hatoum — Tentei, muito, escrever um romance político, antes do Relatos. Não exatamente um romance político. Saí do Brasil, não exilado, mas por opção. Eu tinha experiência no movimento estudantil. Porém joguei o texto fora. O Relatos foi um mergulho na memória. Tinha muita coisa que meu avô contava. Havia as histórias narradas pelos mais velhos, o tema da relação da província com metrópole, Manaus com São Paulo e com a Europa, pois o livro é uma carta que o narrador escreve para o irmão, que mora em Barcelona.

Então o distanciamento foi muito importante para escrever sobre Manaus?
Hatoum — Ter saído de Manaus foi muito importante, mas ao mesmo tempo um trauma, para mim. Saí de Manaus aos 15 anos. Peguei não um ônibus, mas um avião. Lá em cima, no avião, você sabe que tão cedo não irá voltar. Fiz uma viagem de idade. Hoje penso que foi uma loucura, isso que eu fiz. Trabalhei com esse trauma nos meus romances. Cinzas do Norte é essa angústia da separação, da permanência, da ruptura.

Como você trabalha seu texto? Você falou sobre sua formação como poeta. Roberto Bolaño, considerado novo paradigma da literatura latino-americana, foi primeiro poeta. E você, como trabalha sua linguagem, na narrativa?
Hatoum — Meu primeiro romance é o mais lírico dos três. Tem uma visão poética, ali. É o poeta frustrado. Depois comecei a depurar a linguagem. Foi uma espécie de amadurecimento. Vi que nos livros posteriores não havia espaço para trabalhar com a linguagem poética. No livro que estou terminando, agora, meu texto está mais depurado. Será um livro de cento e poucas páginas.

Qual será o tema de seu próximo livro?
Hatoum — Chama-se Órfãos do Eldorado. É um mito da cidade encantada, amazônica. Pessoas acreditam nisso. É um mito universal de uma cidade ideal dentro de um rio onde as pessoas podem bem viver.

Será sua primeira incursão pela não-memória?
Hatoum — É a memória de meu avô. Ouvi essa história quando eu tinha doze ou treze anos de idade. Meu avô escutou essa história de outras pessoas. Depois fui atrás do narrador original. Encontrei-o, mas ele não contou mais essa história, pois já tinha mais de cem anos. Não sabia mais nem quando tinha nascido. Contou essa história ao meu avô em 1955. Meu avô me contou em 1965. Procurei o narrador original entre 74 e 75. Foi uma transmissão de vozes e memórias. Reinventei essa história a partir da narrativa contada pelo meu avô.

E como lidar com a espera de 32 anos entre o encontro com o narrador original e escrever o livro sobre o tema?
Hatoum — A literatura espera. A literatura também é a arte da espera, da paciência. Quando um editor escocês propôs esse livro ao meu editor, o Luis Schwartz, já tinha a história do mito pronta. Foi uma encomenda anunciada. Senão não teria escrito o livro.

Você precisa desse estimulo interno para escrever, pois muitos dizem que a arte existe quando tem origem interna e não com intenção de agradar.
Hatoum — Só consigo escrever assim. No dia em que a fonte secar, paro de escrever. Aí não fará mais sentido escrever sobre coisas que estão longe da minha vida, de minhas inquietações, da minha memória. Acho que seria muito forçado. Muitos conseguem escrever sobre temas que não vive. Eu não consigo. É uma limitação minha.
Leandro Dóro - Cronopios
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