quinta-feira, setembro 20, 2007

Nobel 2006 - Pamuk destrincha a arte de escrever


O escritor turco explica diante da Academia Sueca as dificuldades e a grandeza da literatura

A descrição às vezes dramática do trajeto da criação literária, num ambiente e num tempo em que a arte de escrever e a cultura em geral não eram estimadas nem estimuladas, concentrou o discurso pronunciado pelo prêmio Nobel de literatura Orhan Pamuk (nascido em Istambul em 1952) na Academia Sueca. Trata-se de uma tradição que se repete todo ano com expectativa renovada, porque cada escritor traz consigo uma experiência intransferível.
Orhan Pamuk diz que escrever é uma tarefa que exige doses de paciência e de esperança
"A mala do meu pai" foi o título que o escritor turco deu a sua dissertação, uma mala com seus textos que o pai lhe entregou dois anos antes de morrer - há quatro -, como quem deixa algo sem maior importância, e que acompanhou de palavras ditas como que de passagem: "Você verá se alguma coisa que está aí serve para algo. Talvez você possa fazer uma seleção e publicar".
O pai havia sido um homem culto, inclinado a viver bem com seus amigos, com os quais compartilhava pontos de vista sobre quase todas as coisas, o que lhe permitia escapar de controvérsias. Em busca de seu bem-estar pessoal, havia sacrificado sua relação com a família, a qual abandonava por longos períodos para viajar a Paris - entre outros lugares -, onde adquiria livros, assistia a espetáculos, encontrava-se com pessoas interessantes. Não era só a fuga do mundo familiar, mas de um ambiente, o de Istambul, que significava isolamento. Fruto dessas viagens, segundo comprovou seu filho mais tarde, era o conteúdo dessa mala de couro preto, com um perfume peculiar que evocava os tempos de sua infância e juventude, e que o confrontava com a relação com seu pai, uma longa relação de atração e rejeição.
Pamuk lembrou então a grande biblioteca de seu pai, sua vocação inicial para se transformar em poeta, suas traduções de Valéry para o idioma turco, em um país pobre onde a profissão de literato não justificava o esforço que esse caminho exigia. Foi isso, a dureza do ofício, o que acabou por dissuadi-lo de perseverar em sua vocação e o fez optar pelos negócios, seguindo uma tradição herdada do pai.
Os temores de abrir a mala eram diferentes. Podia acontecer que o conteúdo não fosse de seu agrado, mas também podia ser que ele descobrisse que seu pai havia sido um bom escritor. Se isso ocorresse, Pamuk se encontraria diante de uma faceta do pai que não conhecia e que lhe causava certa inquietação.
A partir dessas anedotas, Pamuk descreveu o processo de criação literária. "Depois de muitos anos de trabalho, creio que ser escritor significa descobrir a pessoa secreta que abrigamos e o mundo interno que torna possível essa pessoa." "A literatura não evoca em mim inicialmente nem romance nem poesia", afirmou Pamuk, "mas uma pessoa que na solidão de seu quarto empreende a tarefa de reconstruir seu mundo interior com palavras, e que pretende torná-lo visível para os outros."
E comparou essa tarefa à de um pedreiro que, tijolo a tijolo, pedra sobre pedra, constrói uma ponte ou uma cúpula. Uma tarefa que exige enorme dose de paciência e também de esperança. Algo que representa muito bem, segundo o escritor, uma expressão popular turca: "cavar um poço com uma agulha".
E que de alguma maneira resgata em seu romance, "Meu Nome É Vermelho", com a descrição dos pintores persas de miniaturas. Para poder descrever a própria vida, assim como a de outros, e sentir a força da criação, o escritor deve pacientemente dedicar todos os seus esforços a essa tarefa. A literatura se transforma então, segundo Pamuk, em um conjunto das coisas mais valiosas criadas pelo homem para compreender a si mesmo.
O escritor que inicia essa viagem compreende, com o passar dos anos, que escrever é a arte de apresentar sua história como se fora a dos outros, e a destes como se fora a sua. Essa vinculação da literatura com os melhores valores da humanidade indica que a queima de livros e o desprezo aos escritores são presságios de tempos obscuros e irracionais.
Aos 23 anos, Pamuk decidiu dedicar sua vida à criação literária. Não foi estranha a essa escolha a complexa relação com seu pai, que, ao contrário da mãe, o incentivou a ser fiel a sua vocação. Talvez para ver realizada no filho a aventura que ele não se animou a empreender. Depois que o escritor lhe mostrou o manuscrito de seu primeiro romance, porque confiava em seu julgamento, mas ao mesmo tempo o temia, disse-lhe, depois de abraçá-lo, que um dia receberia o Prêmio Nobel. Não porque acreditasse nisso, contou Pamuk, mas falou como um pai turco diz a seu filho, para lhe dar confiança, que um dia vai receber o título de paxá. "Gostaria que meu pai estivesse hoje entre nós", finalizou o escritor.

Ricardo Moreno - El País
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

1 Comments:

Blogger Alexandre Kovacs said...

Um autor fabuloso e um texto que é pura literatura. O discurso completo de Pamuk pode ser consultado na página do prêmio Nobel: http://nobelprize.org/nobel_prizes/literature/laureates/2006/pamuk-lecture_en.html

24 setembro, 2007 21:35  

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