domingo, março 30, 2008

A grande arte da luz e da sombra

A grande arte da luz e da sombra
Arqueologia do cinema

Laurent Mannoni,
Unesp/Senac

Apesar de tão jovem, mal acabou de completar pouco mais de cem anos de idade, a arte cinematográfica possui uma considerável quantidade de estudos historiográficos, biográficos, analíticos e até filosóficos. Apesar disso, considerada a arte do século XX mesmo que muitas vezes cotada a desaparecer principalmente por conta do aparecimento da televisão, ela abriu o século XXI com toda a pujança e força de uma adolescente feroz. Este enorme número de materiais de estudo acaba nos levando a alguns perigos: primeiro, a de nos conduzir a um falso sentimento de conhecimento e tranqüilidade; é como se já soubéssemos tudo o que pudesse ser sabido. Por outro lado, faz-nos desconsiderar alguns temas considerados “marginais”, “sem muita importância”.
Exemplo claro dessa ambivalência é o nosso posicionamento geral perante os primeiros passos do cinema. É comum considerar o cinema mudo e preto-e-branco (os charles-chaplins e harold-loyds da vida) como os antecessores imediatos, e infantis, do “verdadeiro” cinema, sério, bem construído e estruturado. Esta é uma falácia comum que ultimamente está sendo destruída passo-a-passo. É até chocante perceber o quanto este cinema “infantil” não tem, na verdade, nada de primário e que muito da arquitetura dramática de todo o cinema atual já existia desde o começo, totalmente estruturada e conscientemente utilizada.
O que dizer então da Pré-História do Cinema? Aliás, qual é mesmo o sentido desta frase? Vejamos: a base da existência do Cinema é a Fotografia, não é mesmo? Se o Cinema em si é uma ilusão de ótica provocada pela rápida sucessão de fotografias fixas, sua “pré-história” seria o desenvolvimento da própria arte fotográfica, certo? Pois é... Não! A Fotografia é um dos fatores fundamentais, sem dúvida, mas não é o único.
O que Laurent Mannoni faz é descortinar um imenso universo de uma história fantástica. “A Grande Arte da Luz e da Sombra” resgata a história dos homens preocupados em construir aparelhos que projetem imagens. Em movimento. É uma relação impressionante de aparelhos, experimentações, pesquisas. É uma história empolgante e fascinante, narrada com uma simplicidade e fervor que atiçam ainda mais a leitura.
Essa preocupação pela projeção da imagem é muito antiga, vai alem do final do século XIX, passa do XVIII. Mannoni começa sua história ali pelo século XIII! Mais: se formos sérios podemos regredir até à Antiguidade... Afinal, o princípio da Câmara Escura é conhecido por Aristóteles.
CAMARA ESCURA. Lição de Física Básica Escolar. ÓTICA: Tome-se um ambiente completamente vedado à luz, uma sala ou uma caixa. Faça-se um pequeno orifício em algum ponto do ambiente. No lado ou parede opostos ao do orifício, ficará refletida a imagem do ambiente exterior. Se a parede estiver coberta com um material apropriado, tela branca por exemplo, a imagem ficará mais nítida. Este simples experimento ainda hoje impressiona, imagine-se então para um Aristóteles. Com um agravante, um detalhe que fez muito cientista perder o sono pelos séculos afora: a imagem refletida estará de ponta-cabeça e invertida, isto é, da esquerda para a direita e vice-versa. Fenômeno curioso mas facilmente explicável pela Ótica atual.
Lembremos que a imagem não está, por natureza, fixa e sem movimento. Se o ambiente fechado for uma sala e o ambiente externo for uma rua, a imagem captará toda a movimentação.
Isso leva diretamente a duas preocupações: por um lado, a da fixação desta imagem; e por outro, um problema óbvio, o da luz, já que não é sempre que existe luz natural do Sol. Por exemplo: à noite! Uma vela então é um bom substituto, mas muito provisório. Uma lanterna, lampiões, são bem melhores, mas precisam ser bem construídos para que não pegue fogo na caixa, na tela ou no próprio projetista. Jogos de espelhos e vidros, com lentes invertidas, ajudam ainda mais. Com uma projeção familiar, tosca e simples, e ao mesmo tempo tão eficiente leva-se à questão de O Quê ser projetado: um desenho pintado em um vidro transparente, amplia as possibilidades ad infinitum. Será uma imagem parada, mas há um truque muito simples e prático: mexa a vela ou o lampião de um lado para o outro! Ou então faça vários orifícios e aí então mexa na vela.
Veja-se bem: estamos falando dos séculos entre o XIII e o XIX, onde a Câmara Escura, ricamente trabalhada, pesquisada, renomeada como Lanterna Mágica é um sucesso popular absoluto. E se tudo isso parece á primeira vista muito bobo, então é porque o leitor nunca foi a um circo ou um parque de diversões e assistiu a um show de transformações da Monga, a mulher-macaco. Os lanternistas, os mascates com um caixa de lanterna-mágica nas costas que percorriam a Europa com suas projeções populares e “miraculosas”, só desapareceram completamente nos primeiros anos do Século XX!
Minuciosa, detalhada e pacientemente, Mannoni nos revela todos os detalhes, todos os passos, todos os percalços, máquina por máquina, experimento por experimento, pesquisador por pesquisador, cientista por cientista.
Este lado da projeção e da iluminação é um viés. Outra vereda histórica é o da fixação da imagem. Que se liga, embora não seja uma relação direta, a uma pequena característica do organismo humano, especificamente o da retina, conhecida como “persistência retiniana” ou “persistência da visão”. Todos sabemos o que é isso. Se olharmos fixamente para a luz de uma vela ou lâmpada, continuaremos “enxergando” um pequeno ponto luminoso, mesmo que fechemos o olho. O grande físico Isaac Newton foi um dos pioneiros na explicação deste fenômeno. Ele olhava para o Sol e anotava quanto tempo a iluminação permanecia em sua vista. Obviamente, quase ficou cego: durante meses, não conseguiu se livrar de um círculo negro que embaçava seus olhos.
A retina retém por um certo tempo a imagem de um objeto. Se substituirmos rapidamente esta imagem por uma outra parecida, mas com uma certa posição diferente e mais outra imagem e outra... voilá! A impressão que teremos é que estas imagens (que sabemos serem fixas) darão a ilusão de estarem se mexendo. Portanto, se juntarmos este principio da persistência retiniana, com o desenvolvimento da fotografia ou o daguerreotopia, em uma sala escura e com uma iluminação apropriada... teremos o Cinema, certo?
Ainda não. Resta o grande problema de fazer com que estas fotografias se sucedam de uma forma harmônica para que a ilusão seja perfeita. É necessário um aparelho que a) pegue a foto (ou o desenho), b) coloque-a devidamente no foco de luz, c) substitua-a no tempo exato para que a imagem não se perca ou seja “esquecida e d) tudo isso precisa ser manobrado do modo mais eficiente para que tudo não fique embolada,a fita não se quebre, a lâmpada não se apague ou provoque uma explosão e taque fogo na sala, na máquina, no projetista, etc e tal.
Uma grande sacada foi fazer pequenos furos nas margens das fotos, coloca-las em um mecanismo de roldanas com varetas que penetram nos furos, puxando-as e movimentando-as, com um motor que imprime um ritmo regular.
Mannoni descreve cada um destes aparelhos, sua sucessão e seu desenvolvimento: o coreutoscópio giratório, o estereoscópio, o bioscópio, o fantascópio, o fotobioscópio, passando pelas fantasmagorias e os polioramas, a fundamental zoopraxografia, a cronofotografia, o fonoscópio, o praxinoscópio, desembocando no quinetoscópio e no quinetógrafo. Isso só para citar alguns dos mais importantes.
Pois bem, com o quinetoscópio de Thomas Edison temos que quase praticamente os filmes tais quais como os conhecemos hoje em dia. Este aparelho era uma caixa individual com um visor onde cada pessoa mediante o pagamento do ingresso aproximava o rosto e via uma sucessão de imagens, às vezes até com um certo enredo.
Filmes, sim. Cinema...? Ainda não. Isto se concretiza de verdade quando em 1895, dois irmãos, os Lumiere (que nome magnífico para tais pessoas!, impossível ser mais apropriado), promovem com o seu cinematógrafo uma sessão aberta para várias pessoas ao mesmo tempo, em uma mesma sala, em uma mesma tela, onde todos sentem o impacto da imagem-que-se-mexe.
A emoção, a paixão, e o amor que Laurent Mannoni consegue passar para sua narrativa é o ingrediente indispensável para que o seu livro não seja uma simples sucessão de relatórios de maquinas de nomes exóticos. Lemos “A Grande Arte da Luz e da Sombra” como um verdadeiro romance de suspense, palpitante, misterioso e instigante. A bela edição das editoras Senac e Unesp respeita a farta iconografia original: o livro é recheado de desenhos, fotos e ilustrações. Nada menos que o necessário para tal obra.

Claudinei Vieira – Desconcertos

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