A viagem de Machado de Assis na Barca de Gleyre
A literatura mundial não registra outra troca de cartas entre escritores que durasse tantos anos como a ocorrida entre José Bento Monteiro Lobato e Godofredo Rangel. Os dois se corresponderam com assiduidade durante 45 anos, de 1903 a 1948. Eles foram colegas na Faculdade de Direito de São Paulo, na famosa escola do largo de São Francisco. A correspondência começou quando Lobato, formado, regressou a Taubaté, sua cidade natal, e se estendeu ao longo da estrada da vida, só sendo silenciada com a morte do criador do Jeca Tatu, ocorrida na cidade de São Paulo, em 4 de julho de 1948.
Coube a Edgar Cavalheiro, já então escolhido por Lobato para ser o seu biógrafo, a primazia de prefaciar, em 1944, a primeira edição de A Barca de Gleyre, título que Lobato deu ao grosso volume[1] que enfeixa as inúmeras cartas que enviou ao seu amigo Godofredo Rangel, autor de romances como Vida Ociosa e Os Bem Casados. Romances que embora nunca tivessem alcançado boa vendagem são considerados como de primeira linha por renomados críticos literários.
A Barca de Gleyre, como quase tudo que Lobato escrevia e publicava, vendeu como água, tendo o livro sido best seller tempos a fio. O título deriva de uma carta que endereçou a Rangel em 15/11/1904: “Nunca vistes reprodução de um quadro de Gleyre, Ilusões Perdidas? Num cais melancólico barcos saem. E um barco chega, trazendo á proa um velho com o braço pendido largadamente sobre uma lira – uma figura que a gente vê e nunca esquece. (...) Em que estado voltaremos, Rangel, desta nossa aventura de arte pelos mares da vida em fora? Como o velho de Gleyre? Cansados, rotos? As ilusões daquele homem eram as velas da barca – e não ficou nenhuma. Nossos dois barquinhos estão hoje cheios de esperanças novas e arrogâncias, atadas ao mastro da nossa petulância. São as nossas ilusões. Que lhes acontecerá?”.
O navegar pelas páginas de A Barca de Gleyre é deveras fascinante. É uma viagem pela história da primeira metade do século XX; viagem pelo que vai acontecendo e sendo reportada na astuta ótica lobatiana. Mas é também um singrar pelos revoltos mares do mundo das letras, tantos são os autores e livros que Lobato vai examinado e comentando com o correspondente. Mormente nas cartas anteriores a 1914 – quando Lobato passou a assinar coluna em O Estado de São Paulo e, em decorrência, a desfrutar de certa notoriedade - o propósito dos comentários era nitidamente a aprendizagem da arte de pensar e escrever com propriedade.
Ler A Barca de Gleyre, por outro lado, é praticar uma espécie de voyerismo literário. É como abelhudar uma conversa ao pé do fogo, conseguindo escutar só um dos lados. Sim, um dos lados, pois Godofredo Rangel - mineiro de Três Corações, professor, contador, promotor público e juiz de Direito em Santa Rita do Sapucaí (MG), falecido em Belo Horizonte em 1951, autor de romances, contos e de um punhado de traduções primorosas - nunca quis, autorizou ou permitiu que as suas cartas viessem a lume. E olha que Lobato – que considera Vida Ociosa como “o único livro nosso que pode ser colocado numa estante entre Brás Cubas e Dom Casmurro” – pelejou com Rangel para que publicasse a sua metade no todo da correspondência. Em 1943, lhe escreveu: “Estou datilografando minhas cartas, e espero que estejas fazendo o mesmo”. E pouco tempo depois insistia: “Já bateu na máquina revistas e podadas?”. O mineiro nada, Godofredo Rangel deixou em testamento que suas cartas jamais poderiam ser publicadas. Por quê?
Machado de Assis, autor que vira-e-mexe freqüenta A Barca de Gleyre, de quando em vez lá aparece nos comentários de Lobato. Na fase de aprendizagem, bem antes da estréia, Lobato escreve sobre ele: “Estilo, estilos... Eu só conheço uma centena na literatura universal e entre nós só um, o de Machadão. E, ademais, estilo é a última coisa que nasce num literato – é o dente do siso. Quando já está quarentão e já cristalizou uma filosofia própria, quando possue uma luneta só dele e para ele fabricado sob medida, quando já não é suscetível da influenciação por mais ninguém, quando alcança a perfeita maturidade da inteligência, então, sim aparece o estilo. Como a cor, o sabor e o perfume duma fruta só aparecem na plena maturação. Repare no Machado. Quando lhe aparece a cor, o sabor, o perfume? No Braz Cubas, um livro quarentão. Que estilo tem em Helena ou Yayá Garcia? Uma bostinha de estilo igual ao nosso” (15/7/1905).
Três anos mais tarde, teoriza: “Estou lendo Dom Casmurro. Já notaste como o Machado do Essau e Jacob, pelo fato de muito requintar o seu modus, prejudicou a obra e obscureceu-a? Machado de Assis tem três fases: uma romântica (Helena, Yayá Garcia, etc), insignificante como o que mais o seja – ilegível, outra fase do optimum absoluto, onde surge a sua maneira famosa – Braz Cubas, Dom Casmurro, Quincas. E outra, a última, começada com Essaú e Jacob , em que sua maneira passa além de optimum e entra a degenerar” (8/1/1908).
No ano seguinte, acrescenta o seguinte “p.s.” numa carta a Rangel: "Li também Memorial de Aires o livro mais difícil de ser feito de quantos livros difíceis se fizeram no mundo. Do que nós chamamos nada, Machado de Assis tirou tudo – tirou uma obra prima. Mas quantos compreenderão a beleza do livro?” (1/3/1909).
Há passagens na A Barca de Gleyre, em que Lobato demonstra estar desanimado com a possibilidade de tornar-se um escritor profissional, em virtude da baixa potencialidade do mercado editorial na sociedade brasileira. É com tal estado de espírito que, em 1911, tendo a obra de Machado de Assis como referencial, recomenda a Rangel: “Quanto a ganhar dinheiro com livro, e essas esperanças de criar um ‘nome vendável’, uma marca de fábrica que tenha saída , varra isso da cabeça! Tão cedo o livro não será negócio no Brasil. Sabe que o pior negócio da Granier foi a edição completa do Machado de Assis? O Paulo, gerente da livraria Alves em S. Paulo, disse-me que ‘o Alves não quer a obra do Machado de Assis nem de graça porque não passa dum entulho de prateleiras’ – tão divorciadas andam entre nós a glória e o valor comercial”. (2/4/1911).
Mas, sem dúvida, para além de Flaubert, Camilo Castelo Branco ou do seu amigo Godofredo Rangel, autores que Lobato tanto admira e seguidamente elogia, Machado de Assis foi a sua grande paixão literária. Com tal sentido, em 30/8/1909 escreveu: “Machado de Assis é o clássico moderno mais perfeito e artista que possamos conceber”. E, anos mais tarde, em 3/6/1915: “Não pode haver língua mais pura, água mais bem filtrada, nem melhor cristalino a defluir em fio de fonte. E ninguém maneja melhor tudo quanto é cambiante. A gama inteira dos semitons da alma humana. É grande, é imenso, o Machado. É o pico solitário das nossas letras”. Lobato termina o parágrafo com uma espécie de brado, onde rende loas ao bruxo do Cosme Velho:“Os demais nem lhe dão pela cintura”.
[1] A partir da 1ª edição das obras completas de Monteiro Lobato (1946), A Barca de Gleyre passou a ser publicada em dois volumes.
Coube a Edgar Cavalheiro, já então escolhido por Lobato para ser o seu biógrafo, a primazia de prefaciar, em 1944, a primeira edição de A Barca de Gleyre, título que Lobato deu ao grosso volume[1] que enfeixa as inúmeras cartas que enviou ao seu amigo Godofredo Rangel, autor de romances como Vida Ociosa e Os Bem Casados. Romances que embora nunca tivessem alcançado boa vendagem são considerados como de primeira linha por renomados críticos literários.
A Barca de Gleyre, como quase tudo que Lobato escrevia e publicava, vendeu como água, tendo o livro sido best seller tempos a fio. O título deriva de uma carta que endereçou a Rangel em 15/11/1904: “Nunca vistes reprodução de um quadro de Gleyre, Ilusões Perdidas? Num cais melancólico barcos saem. E um barco chega, trazendo á proa um velho com o braço pendido largadamente sobre uma lira – uma figura que a gente vê e nunca esquece. (...) Em que estado voltaremos, Rangel, desta nossa aventura de arte pelos mares da vida em fora? Como o velho de Gleyre? Cansados, rotos? As ilusões daquele homem eram as velas da barca – e não ficou nenhuma. Nossos dois barquinhos estão hoje cheios de esperanças novas e arrogâncias, atadas ao mastro da nossa petulância. São as nossas ilusões. Que lhes acontecerá?”.
O navegar pelas páginas de A Barca de Gleyre é deveras fascinante. É uma viagem pela história da primeira metade do século XX; viagem pelo que vai acontecendo e sendo reportada na astuta ótica lobatiana. Mas é também um singrar pelos revoltos mares do mundo das letras, tantos são os autores e livros que Lobato vai examinado e comentando com o correspondente. Mormente nas cartas anteriores a 1914 – quando Lobato passou a assinar coluna em O Estado de São Paulo e, em decorrência, a desfrutar de certa notoriedade - o propósito dos comentários era nitidamente a aprendizagem da arte de pensar e escrever com propriedade.
Ler A Barca de Gleyre, por outro lado, é praticar uma espécie de voyerismo literário. É como abelhudar uma conversa ao pé do fogo, conseguindo escutar só um dos lados. Sim, um dos lados, pois Godofredo Rangel - mineiro de Três Corações, professor, contador, promotor público e juiz de Direito em Santa Rita do Sapucaí (MG), falecido em Belo Horizonte em 1951, autor de romances, contos e de um punhado de traduções primorosas - nunca quis, autorizou ou permitiu que as suas cartas viessem a lume. E olha que Lobato – que considera Vida Ociosa como “o único livro nosso que pode ser colocado numa estante entre Brás Cubas e Dom Casmurro” – pelejou com Rangel para que publicasse a sua metade no todo da correspondência. Em 1943, lhe escreveu: “Estou datilografando minhas cartas, e espero que estejas fazendo o mesmo”. E pouco tempo depois insistia: “Já bateu na máquina revistas e podadas?”. O mineiro nada, Godofredo Rangel deixou em testamento que suas cartas jamais poderiam ser publicadas. Por quê?
Machado de Assis, autor que vira-e-mexe freqüenta A Barca de Gleyre, de quando em vez lá aparece nos comentários de Lobato. Na fase de aprendizagem, bem antes da estréia, Lobato escreve sobre ele: “Estilo, estilos... Eu só conheço uma centena na literatura universal e entre nós só um, o de Machadão. E, ademais, estilo é a última coisa que nasce num literato – é o dente do siso. Quando já está quarentão e já cristalizou uma filosofia própria, quando possue uma luneta só dele e para ele fabricado sob medida, quando já não é suscetível da influenciação por mais ninguém, quando alcança a perfeita maturidade da inteligência, então, sim aparece o estilo. Como a cor, o sabor e o perfume duma fruta só aparecem na plena maturação. Repare no Machado. Quando lhe aparece a cor, o sabor, o perfume? No Braz Cubas, um livro quarentão. Que estilo tem em Helena ou Yayá Garcia? Uma bostinha de estilo igual ao nosso” (15/7/1905).
Três anos mais tarde, teoriza: “Estou lendo Dom Casmurro. Já notaste como o Machado do Essau e Jacob, pelo fato de muito requintar o seu modus, prejudicou a obra e obscureceu-a? Machado de Assis tem três fases: uma romântica (Helena, Yayá Garcia, etc), insignificante como o que mais o seja – ilegível, outra fase do optimum absoluto, onde surge a sua maneira famosa – Braz Cubas, Dom Casmurro, Quincas. E outra, a última, começada com Essaú e Jacob , em que sua maneira passa além de optimum e entra a degenerar” (8/1/1908).
No ano seguinte, acrescenta o seguinte “p.s.” numa carta a Rangel: "Li também Memorial de Aires o livro mais difícil de ser feito de quantos livros difíceis se fizeram no mundo. Do que nós chamamos nada, Machado de Assis tirou tudo – tirou uma obra prima. Mas quantos compreenderão a beleza do livro?” (1/3/1909).
Há passagens na A Barca de Gleyre, em que Lobato demonstra estar desanimado com a possibilidade de tornar-se um escritor profissional, em virtude da baixa potencialidade do mercado editorial na sociedade brasileira. É com tal estado de espírito que, em 1911, tendo a obra de Machado de Assis como referencial, recomenda a Rangel: “Quanto a ganhar dinheiro com livro, e essas esperanças de criar um ‘nome vendável’, uma marca de fábrica que tenha saída , varra isso da cabeça! Tão cedo o livro não será negócio no Brasil. Sabe que o pior negócio da Granier foi a edição completa do Machado de Assis? O Paulo, gerente da livraria Alves em S. Paulo, disse-me que ‘o Alves não quer a obra do Machado de Assis nem de graça porque não passa dum entulho de prateleiras’ – tão divorciadas andam entre nós a glória e o valor comercial”. (2/4/1911).
Mas, sem dúvida, para além de Flaubert, Camilo Castelo Branco ou do seu amigo Godofredo Rangel, autores que Lobato tanto admira e seguidamente elogia, Machado de Assis foi a sua grande paixão literária. Com tal sentido, em 30/8/1909 escreveu: “Machado de Assis é o clássico moderno mais perfeito e artista que possamos conceber”. E, anos mais tarde, em 3/6/1915: “Não pode haver língua mais pura, água mais bem filtrada, nem melhor cristalino a defluir em fio de fonte. E ninguém maneja melhor tudo quanto é cambiante. A gama inteira dos semitons da alma humana. É grande, é imenso, o Machado. É o pico solitário das nossas letras”. Lobato termina o parágrafo com uma espécie de brado, onde rende loas ao bruxo do Cosme Velho:“Os demais nem lhe dão pela cintura”.
[1] A partir da 1ª edição das obras completas de Monteiro Lobato (1946), A Barca de Gleyre passou a ser publicada em dois volumes.
Aluízio Alves Filho Revista Achegas
Imagem - Charles Gleyre - Ilusões perdidas
2 Comments:
A Barca de Gleyre é mesm fascinante. Daqueles livros que lemos de um só fôlego, sem interrupções. Nele descobrimos as mais diversas facetas, até mesmo um precoce Lobato ecologista, preocupado com a saúde de pinguins machucados.
É "pule de dez" para quem que ler um bom livro, ou melhor, dois livros.
Olá meu nome é Cristiane !
Tenho um exemplar desse livro publicado em 1944 .
Teria como me.dizer quanto o valor ?
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