sábado, agosto 26, 2006

A ressurreição de Machado De Assis e o garoto que veio de barca


Euclides da Cunha definiu como “tímidas” as pancadas que escutou sendo dadas na porta de entrada da vivenda de número 18, na rua Cosme Velho, no bairro do mesmo nome, no Rio de Janeiro, ao cair da noite de 28 de setembro de 1908. Abriram a porta. Surpresa! Era um garoto, um jovem que não aparentava ter 18 anos. Desculpou-se meio sem jeito e disse que desejava saber como estava o dono da casa. “Você é vizinho ou parente dele?” - alguém indagou. O garoto balançou a cabeça para dizer que não, e mais do que isso, deixou claro que ninguém o conhecia ali, acrescentando: “sou apenas um leitor”. Em seguida, encheu-se coragem e perguntou se podia ver Machado de Assis. Houve um certo constrangimento, ou pelo menos nenhum dos membros da Academia Brasileira de Letras que ali estavam – Coelho Neto, Graça Aranha, Raimundo Correia, José Veríssimo além de Euclides e outros – tomou a dianteira para autorizar ou negar a entrada do estranho. Foi o enfermo que estendido numa poltrona almofadada num quarto ao lado da sala de visitas e reunindo forças sabe-se lá vindas de onde, balbuciou para que deixassem a voz que perguntava por ele vir vê-lo.
O encontro entre ambos foi breve. Não trocaram palavra. O rapazinho morava do outro lado da Baía de Guanabara. Não avisou aos seus familiares onde pretendia ir. Saíra de casa com o sol ainda reinando e chegara ao Cosme Velho já com a fria noite adentrada. Viera de Niterói para o Rio de Janeiro na barca da Cantareira – empresa que na época fazia o transporte marítimo ligando as duas cidades irmãs. Saltara no Cais Pharoux, na Praça XV, e como a grana era curta utilizou a chamada “viação canela”, e foi caminhando, caminhando, até o Cosme Velho. Agora estava ali, na presença do escritor que tanto admirava e que antes nunca vira pessoalmente. Então era verdade o que lera nos jornais, o doente estava muito abatido, seu estado de saúde aparentava ser da maior gravidade. O garoto permaneceu em silêncio, pensativo durante uns bons minutos, de repente ajoelhou. Tomou entre as suas as mãos de Machado de Assis, que faleceria poucas horas depois, e as beijou. O acontecimento deve ter marcado profundamente aos poucos que o presenciaram. Um deles, Euclides da Cunha, reportando-se ao fato, escreveu “A Última Visita”, artigo originalmente publicado Jornal do Commercio, em 30 de setembro de 1908, do qual retiramos algumas das informações aqui contidas.
Quando o garoto partiu, José Veríssimo, que o acompanhara até a porta, quis saber o seu nome. Ele o disse baixinho no ouvido do acadêmico. A seguir sumiu na calada da noite.
Apesar de ser um expoente literário, durante décadas pesou sobre Machado de Assis a acusação de ter ser limitado a fazer a chamada arte pela arte, fechando os olhos à realidade existente. Tais críticas se avolumaram e depois da sua morte atingiriam o auge. Com o triunfo dos modernistas, na década de 20 do século passado, o padrão estético e literário sofreu uma autêntica transmutação que significava um rompimento radical com os valores precedentes. Em decorrência, Machado de Assis, símbolo maior da velha arte de escrever, foi cada vez mais sendo estigmatizado à luz do paradigma “obcecado nas letras / alheado do mundo”. E o autor de O Alienista foi tratado por críticos, lustros a fio, como se fora um alienado, como alguém cujas intenções e palavras girassem apenas em torno das letras, sem manifestar qualquer preocupação com os imbricados problemas da sociedade envolvente. Costumava-se dizer que poderia o mundo desabar que Machado de Assis, indiferente, permaneceria enclausurado na torre de marfim.
Caberia ao jornalista Astrogildo Pereira que, em 1922, no mesmo ano da Semana de Arte Moderna, participou da fundação do Partido Comunista Brasileiro, a glória de haver quebrado o encanto das versões existentes sobre o pretenso “alheamento” de Machado de Assis. Com o ensaio “Machado de Assis romancista do 2º Reinado”, redigido em 1939 e publicado como capítulo de livro cinco anos mais tarde (ver “Interpretações”, RJ; Livraria São José, 1944), Astrogildo Pereira fazia justiça ao autor de “ O Alienista”, dando-lhe as devidas dimensões. Ele não fora um beletrista inconseqüente como muitos haviam propugnado e desavisados ainda insistem. Fina ironia combóia suas linhas e embora estas visassem apreender a natureza humana em dimensão universal, sua literatura invariavelmente incide sobre o cotidiano da antiga capital brasileira e sobre a multiplicidade de tipos sociais que nela viviam ou que, provenientes de todos os rincões do país, para o Rio de Janeiro convergiam. Nas páginas de Machado de Assis é o Brasil que vibra, respira e pulula, pois é sempre a realidade nacional e o homem brasileiro que estão postos em questão. Além de outras situações, mil vezes ele descreve as artimanhas da elite em luta pela conquista de poder, riqueza e prestígio; o autoritarismo do patriarca em sua fúria escravocrata; o padecimento dos negros; as profissões, os namoros, as pessoas simples, seus valores e suas agruras para sobreviver; assim como as circunstâncias estruturais onde o casamento por interesse sobrepunha-se ao por amor. Ao fazê-lo, Machado e Assis vale-se de tamanha sutileza que, com certeza, aqueles que o lerem com os olhos desarmados, não terão a oportunidade de bem saboreá-lo, pois a aparente monotonia das situações que descreve estão quase sempre sobre-determinadas pelo tenso jogo das segundas intenções dos atores sociais envolvidos.
Ao estudo pioneiro de Astrogildo Pereira reavivando e resgatando a obra de Machado de Assis, tratando-a como literatura voltada para o vivo e o concreto da sociedade e da alma brasílica, seguiram-se outros como o de José Brito Broca (vide: Machado e Assis e a Política, RJ, Simões, 1957) que coloca um foco de luz sobre a relação dos escritos do bruxo do Cosme Velho com a vida pública nacional, iluminando a questão. Contemporaneamente, há forte grau de consenso em torno grande valor obra de Machado de Assis, tantas são as vezes que ele tem sido apontado como intérprete da nacionalidade e como o maior completo de nossos escritores.
No mais, é de bom alvitre acrescentar que embora vários pesquisadores mencionem, o nome do garoto que numa fria noite de 1909, fez a última visita ao então agonizante morador da rua Cosme Velho - entre outros Francisco de Assis Barbosa, José de Brito Broca, Martins César Feijó, Berenice de Oliveira Cavalcante e Osvald de Andrade - foi Lucia Miguel-Pereira, em seu monumental livro “Machado de Assis estudo crítico e biográfico” (SP, Brasiliana, 1936), quem primeiro o revelou. O garoto que veio na barca chamava-se Astrogildo Pereira, o mesmo que anos mais tarde escreveria “Machado de Assis romancista do 2º Reinado”.

Aluízio Alves Filho - Revista Achegas

Foto Astrogildo Pereira

4 Comments:

Anonymous Anônimo said...

O texto é escrito de forma sutil e elegante. De tão envolvente a escrita (diria até, a trama), confesso que as vezes me parecia nublada a fronteira entre a literaratura e a crítica literária. Parabéns ao professor e obrigado. Arthur

27 agosto, 2006 11:04  
Anonymous Anônimo said...

Diariamente, incontáveis pés e mentes atravessam de barca a Baía de Guanabara, ou saindo da cidade sorriso em direção a maravilhosa, ou maravilhados indo buscar o sorriso em Niterói. Aluizio Alves Filho cativa tanto o leitor com a sua escrita, que nos dá a impressão de juntos viajarmos de barca com Astrogildo Pereira para beijar a mão padecente do grande Machado de Assis. Parabéns Aluizio! Mais um texto para eu utilizar em minhas aulas.

27 agosto, 2006 16:58  
Blogger Unknown said...

Prezado prof. Aluizio, é de fato uma satisfação te conhecer e mesmo ser seu amigo... acho que " bruxo" nesse momento é você... Ou você é médium, advinho ou então, realmente, eu estou realmente no "campo intelectual" a que Bourdieu se referia e eu não sabia... explico: no momento em que parava a leitura de um livro (Às 02h00AM), abro meus e-mail vejo essa sua citação a M. Assis e Astrojildo Pereira... MAs sabes que livro eu estava a ler? "machado de assis: ensaios e apontamentos avulsos", por astrojildo peeira, Oficina dos livros, belo horizonte, 1991! Antes de saber do seu e-mail, eu cá dizia para mim: vou para um pouco para mandar um e-mail para o Prof. Aluizio para dizer que havia comprado esse livro e estava a folheá-lo, lembrando daquela vez lá em casa às 8:00h da manhã - após haver ficado conversando a noite toda - o último tema do bate-papo foi o conceito de "político" em M. de Assis...
MAs que "coincidência" ...
Bom, acho que dizer que m. de assis era apenas a "arte pela arte" não condiz com verdade... sugiro, por exemplo, a leitura do livro acima, para não mencionar o conto "teoria do medalhão" que denuncia os primórdios da cordialidade do brasileiro, ou , "helena" onde critica a sociedade escravista... Nas pp. 212-215 A. Pereira está a nos falar um pouco de como M. de Assis lidou com a política. Após citar várias passagens escritas por M. de Assis envolvendo esse tema, diz A. Pereira, às fls. 214: "Se os sentimentos democráticos e o amor à liberdade levaram assim Machado de Assis À defesa de nações estrangeiras, claro é que na defesa da independência e da soberania do Brasil não se poupava ele ao bom combate. Muitas e muitas citações poderíamos fazer nesse sentido". A coisa a ser percebida é "como" M. de Assis dizia coisas.. há varias maneiras de se esfolar um gato... mas muitas pessoas não "percebem" isso quando lêem M. de Assis...
Sem mais delongas, pois as horas voam e a manhã se avizinha, que a terra lhe seja leve...
Abraços do amigo, agora em BSB, Luiz Fernando

28 agosto, 2006 01:55  
Anonymous Anônimo said...

Comprovado. Niterói tem grau de excelência em produzir garotos preocupados com os rumos nacionais. Comprova o depoimento de Leonardo à esquerda, assim como o que escreve essas tortas linhas. Mais um gol de placa do mestre Aluizio.

28 agosto, 2006 09:28  

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