A jovem Marguerite Duras e a verdade sobre seu amante
Cahiers de la Guerre et Autres Textes
Editora POL
Espanha
Acreditávamos que Marguerite Duras (Saigon 1914-Paris 1996) já tivesse contado tudo. Sobre sua infância pobre e feliz na Indochina, sua adolescência dramática no mesmo país, sobre sua difícil juventude, seu compromisso político, seus amores. Cadernos escritos entre 1943 e 1949 e que permaneciam ocultos em um armário desde que o IMEC (Instituto Memórias da Edição Contemporânea) os herdou após a morte da escritora, eles vêm completar o que sabíamos e, sobretudo, a mudar o tom do relato.
A editora POL publica, na Espanha, as 446 páginas sob o título de "Cahiers de la Guerre et Autres Textes" (Cadernos da guerra e outros textos). Por exemplo, para qualquer conhecedor da obra de Duras, a figura da mãe, como aparece no formidável "Uma Barragem contra o Pacífico", é a de uma mulher que luta contra o destino, uma heroína desesperada que enfrenta as ondas do oceano assim como luta contra a corrupção administrativa.
Se lembrarmos "O Amante", também lembraremos a delicadeza do amante chinês, sua paciência de homem apaixonado e o mistério dessa espera. A dor nos põe diante do regresso, do campo de concentração, de Robert Antelme, antropólogo e escritor de um único livro, "A Espécie Humana".
Em outros livros Duras nos põe em contato com o mundo em que viveu após o fim da Segunda Guerra Mundial. Trata-se de "O Marinheiro de Gibraltar" ou "Os Cavalinhos de Tarquínia", que lembram as férias italianas de Duras com seu marido, seu amante Dionys Mascolo e seu amigo editor e escritor Elio Vittorini.
Os cadernos que aparecem agora privam a mãe dessa grandeza de loucura de tragédia grega e a mostram como uma lutadora desequilibrada, como alguém que não suporta a menopausa, que tem grandes dificuldades para controlar filhos e criados, alguém que empurra sua filha para a prostituição para que seu amante lhe pague, a ela também, noites de álcool em Saigon, longe da casa em ruínas que não fica em frente ao Pacífico, mas diante do mar da China.
"Minha mãe foi para nós uma vasta planície pela qual erramos durante muito tempo sem encontrar sua dimensão", escreve Marguerite, referindo-se à difícil relação entre a mãe e seus filhos.
A vergonha da pobreza, de ser uma francesa colonizadora pobre, aparece em todas as notas de Duras. "Era a podridão de Saigon", diz sobre si mesma, repetindo alguns rumores segundo os quais "me deito com os indígenas". Nesse momento "tinha 15 anos e Léo ainda não havia me tocado". Vai sozinha ao cinema e não tem dinheiro para pagar uma poltrona entre a colônia francesa. "Quando cheguei as luzes estavam acesas. Era muito cedo, a sessão não havia começado. Ao fundo da platéia havia as três fileiras ocupadas por franceses. Tive de atravessar todo o cinema sob o olhar da platéia. Sozinha. Ninguém a acompanhava quando você ia para as cadeiras populares. Não dei um passo atrás. A travessia da sala por minha personagem se deu em meio ao profundo silêncio provocado pela própria aparição da personagem. Lembro que não lembro como caminhei. O mundo inteiro me olhava. Nunca tinha visto uma branca naquelas fileiras de cadeiras.
Tudo, sabia tudo o que pensavam e eu o pensava ao mesmo tempo. Tudo dançava diante de meus olhos e eu me sentia em um estado de irrealidade avançada. Mantinha uma relação estreita com a vergonha. Era a vergonha em marcha. Simplesmente, era ridícula."
A literatura, a capacidade de relacionar esse momento de angústia com a construção de uma vida, dentro da estrutura de um relato, havia dado outra dimensão a essa vergonha. Ela, a heroína dos romances, luta contra a vergonha ou é derrotada por ela mas a transcende, a situa em um contexto novelesco. No fragmento a jovem Marguerite encontra-se "sentada em uma cadeira de vime, transpirando a mar, com a bolsa nos joelhos" e a espera torna-se interminável até que as luzes se apagam e o filme lhe permite escapar do mundo.
A mãe a agride. O irmão mais velho bate ainda mais forte. "Pensei que meu irmão fosse me matar." Ele a atira de cabeça contra um piano. Os golpes acabam por jogá-la nos braços de Léo, o amante chinês, na realidade anamita.
E muito menos distinto e belo do que no romance: "Senti de repente um contato úmido e fresco em meus lábios. A repulsa que me causou é literalmente indescritível. Empurrei Léo e cuspi. Léo não sabia o que fazer.
Um feto tinha me beijado, a feiúra havia entrado em minha boca, havia comungado com o horror. Cuspi em um lenço, cuspi sem parar, cuspi a noite toda e no dia seguinte, ao lembrar, cuspia de novo."
Nem tudo remete aos anos na Indochina. Duras também opina sobre De Gaulle e se indigna quando este consegue capitalizar para si o trabalho da Resistência, opina sobre literatura e manifesta sua admiração por Rimbaud, Shakespeare, Dostoiévski ou Molière e seu tédio diante de Madame de Sevigné, Corneille ou Racine. "Prefiro as obras filhas da inspiração do que as que são fruto da inteligência humana. Na realidade só sou sensível à inteligência dos animais", disse, e relaciona essa atitude ao dano que lhe causavam os insultos - lixo, porca, verme - que lhe dispensava seu irmão e que ela considerava merecidos.
E, como sempre acontece nesses casos, idênticos às exposições que nos mostram os esboços mais ou menos inspirados que depois se transformaram em uma pintura imortal, somos obrigados a nos perguntar sobre o interesse real desses cadernos. Eles permitem ler a obra de Duras sob uma nova luz? A personagem ganha outra dimensão? O caráter abertamente autobiográfico da criação de Duras faz que os cadernos tenham um valor especial, que sejam lidos como parte integrante de um todo, como um capítulo a mais de um único livro que envolve romances, ensaios, teatro ou cinema. Em todo caso, ficam mais de 40 caixas de notas pendentes de leitura e análise.
Octavi Martí
El Pais
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
Editora POL
Espanha
Acreditávamos que Marguerite Duras (Saigon 1914-Paris 1996) já tivesse contado tudo. Sobre sua infância pobre e feliz na Indochina, sua adolescência dramática no mesmo país, sobre sua difícil juventude, seu compromisso político, seus amores. Cadernos escritos entre 1943 e 1949 e que permaneciam ocultos em um armário desde que o IMEC (Instituto Memórias da Edição Contemporânea) os herdou após a morte da escritora, eles vêm completar o que sabíamos e, sobretudo, a mudar o tom do relato.
A editora POL publica, na Espanha, as 446 páginas sob o título de "Cahiers de la Guerre et Autres Textes" (Cadernos da guerra e outros textos). Por exemplo, para qualquer conhecedor da obra de Duras, a figura da mãe, como aparece no formidável "Uma Barragem contra o Pacífico", é a de uma mulher que luta contra o destino, uma heroína desesperada que enfrenta as ondas do oceano assim como luta contra a corrupção administrativa.
Se lembrarmos "O Amante", também lembraremos a delicadeza do amante chinês, sua paciência de homem apaixonado e o mistério dessa espera. A dor nos põe diante do regresso, do campo de concentração, de Robert Antelme, antropólogo e escritor de um único livro, "A Espécie Humana".
Em outros livros Duras nos põe em contato com o mundo em que viveu após o fim da Segunda Guerra Mundial. Trata-se de "O Marinheiro de Gibraltar" ou "Os Cavalinhos de Tarquínia", que lembram as férias italianas de Duras com seu marido, seu amante Dionys Mascolo e seu amigo editor e escritor Elio Vittorini.
Os cadernos que aparecem agora privam a mãe dessa grandeza de loucura de tragédia grega e a mostram como uma lutadora desequilibrada, como alguém que não suporta a menopausa, que tem grandes dificuldades para controlar filhos e criados, alguém que empurra sua filha para a prostituição para que seu amante lhe pague, a ela também, noites de álcool em Saigon, longe da casa em ruínas que não fica em frente ao Pacífico, mas diante do mar da China.
"Minha mãe foi para nós uma vasta planície pela qual erramos durante muito tempo sem encontrar sua dimensão", escreve Marguerite, referindo-se à difícil relação entre a mãe e seus filhos.
A vergonha da pobreza, de ser uma francesa colonizadora pobre, aparece em todas as notas de Duras. "Era a podridão de Saigon", diz sobre si mesma, repetindo alguns rumores segundo os quais "me deito com os indígenas". Nesse momento "tinha 15 anos e Léo ainda não havia me tocado". Vai sozinha ao cinema e não tem dinheiro para pagar uma poltrona entre a colônia francesa. "Quando cheguei as luzes estavam acesas. Era muito cedo, a sessão não havia começado. Ao fundo da platéia havia as três fileiras ocupadas por franceses. Tive de atravessar todo o cinema sob o olhar da platéia. Sozinha. Ninguém a acompanhava quando você ia para as cadeiras populares. Não dei um passo atrás. A travessia da sala por minha personagem se deu em meio ao profundo silêncio provocado pela própria aparição da personagem. Lembro que não lembro como caminhei. O mundo inteiro me olhava. Nunca tinha visto uma branca naquelas fileiras de cadeiras.
Tudo, sabia tudo o que pensavam e eu o pensava ao mesmo tempo. Tudo dançava diante de meus olhos e eu me sentia em um estado de irrealidade avançada. Mantinha uma relação estreita com a vergonha. Era a vergonha em marcha. Simplesmente, era ridícula."
A literatura, a capacidade de relacionar esse momento de angústia com a construção de uma vida, dentro da estrutura de um relato, havia dado outra dimensão a essa vergonha. Ela, a heroína dos romances, luta contra a vergonha ou é derrotada por ela mas a transcende, a situa em um contexto novelesco. No fragmento a jovem Marguerite encontra-se "sentada em uma cadeira de vime, transpirando a mar, com a bolsa nos joelhos" e a espera torna-se interminável até que as luzes se apagam e o filme lhe permite escapar do mundo.
A mãe a agride. O irmão mais velho bate ainda mais forte. "Pensei que meu irmão fosse me matar." Ele a atira de cabeça contra um piano. Os golpes acabam por jogá-la nos braços de Léo, o amante chinês, na realidade anamita.
E muito menos distinto e belo do que no romance: "Senti de repente um contato úmido e fresco em meus lábios. A repulsa que me causou é literalmente indescritível. Empurrei Léo e cuspi. Léo não sabia o que fazer.
Um feto tinha me beijado, a feiúra havia entrado em minha boca, havia comungado com o horror. Cuspi em um lenço, cuspi sem parar, cuspi a noite toda e no dia seguinte, ao lembrar, cuspia de novo."
Nem tudo remete aos anos na Indochina. Duras também opina sobre De Gaulle e se indigna quando este consegue capitalizar para si o trabalho da Resistência, opina sobre literatura e manifesta sua admiração por Rimbaud, Shakespeare, Dostoiévski ou Molière e seu tédio diante de Madame de Sevigné, Corneille ou Racine. "Prefiro as obras filhas da inspiração do que as que são fruto da inteligência humana. Na realidade só sou sensível à inteligência dos animais", disse, e relaciona essa atitude ao dano que lhe causavam os insultos - lixo, porca, verme - que lhe dispensava seu irmão e que ela considerava merecidos.
E, como sempre acontece nesses casos, idênticos às exposições que nos mostram os esboços mais ou menos inspirados que depois se transformaram em uma pintura imortal, somos obrigados a nos perguntar sobre o interesse real desses cadernos. Eles permitem ler a obra de Duras sob uma nova luz? A personagem ganha outra dimensão? O caráter abertamente autobiográfico da criação de Duras faz que os cadernos tenham um valor especial, que sejam lidos como parte integrante de um todo, como um capítulo a mais de um único livro que envolve romances, ensaios, teatro ou cinema. Em todo caso, ficam mais de 40 caixas de notas pendentes de leitura e análise.
Octavi Martí
El Pais
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
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