Leituras em 2006: um esboço de retrospecto
Lendo por paixão e profissão e relendo constantemente os livros que mais me agradam, temo sempre os retrospectos do tipo "Os melhores do ano segundo Fulano de Tal" porque não li livros que todo mundo parece ter lido, não vou na onda das unanimidades, não tenho acesso a muitos dos livros novos que vêm sendo publicados por editoras cujas edições não chegam à minha cidade (Poços de Caldas) e algumas delas só me chegam por obra da amizade, da distribuição dos próprios autores.
"Lugar algum em parte alguma", de Nelson de Oliveira (Record), me agradou bastante, pelo nonsense fino e os calculados e bem sucedidos delírios da prosa de Nelson. "Modo de apanhar pássaros à mão", revelou, para mim, a Maria Valéria Rezende contista, com alguns contos particularmente bem escritos e sedutores. "Contos negreiros", de Marcelino Freire (Record), me pareceu um livro de uma força inegável - fui arrastado pelo clima das narrativas-cantos de Marcelino, cujo talento só parece estar crescendo, nos últimos anos. Também me surpreendi com a descoberta dos contos agudos e atmosféricos de “A leste da morte”, livro de Nilto Maciel editado pela pequena Bestiário, acessível a uns poucos, mas merecedor da maior atenção. Outra boa surpresa foi reencontrar pela Internet uma velha amiga, Yara Camillo, que conheci como contista em esboço nos anos 80 e cujo talento se confirmou em “Hiatos” (RG), livro em que alguns contos são verdadeiros primores de humor e sensibilidade. E foi, para mim, a grande descoberta do ano, em termos de contos, o contato com o livro “Faca” (Cosac & Naify), de Ronaldo Correia de Britto, escritor pernambucano que me parece injustamente pouco lido por aqui. A qualidade de sua prosa enxuta, substantiva, em que nenhuma palavra parece fora do lugar, é incomum e sugere um mestre oculto.
Em termos de romance, não li os que parecem estar sendo mais votados e citados, até porque, como disse, as unanimidades não me arrastam, e, tanto quanto possível, leio pelo prazer da leitura, sem que a moda e as vitrines de livrarias, onde reluzem os nomes de maior venda, me aliciem. Mas, recebi o último de Ignácio de Loyola Brandão, “A altura e a largura do nada” (Jabuticaba), e gostei de ver ampliado o universo que o escritor já explorara no belo romance “Dentes ao sol”, do início de sua carreira – o de sua Araraquara natal. É particularmente forte o senso de absurdo, o humor negro, as referências nostálgicas, brincalhonas, poéticas, que nos assediam, na pintura de uma cidade do interior cheia de personagens cativantes. Outro prazer constante que os livros de Loyola oferecem é essa capacidade de cunhar títulos delirantes que o escritor tem. “A altura e a largura do nada”, que o leitor naturalmente saberá o que é ao ir mergulhando naquele mundo araraquarense-universal, é um achado.
Releio mais do que leio, esta é a verdade. E, pela boa razão de que os livros novos são caros demais nas livrarias, vivo fuçando em sebos, onde reencontro livros que um dia tive e amei como “A canção da relva”, obra-prima de Doris Lessing, e “O chamado da selva”, de Jack London. Não se coloca esse tipo de leitura em retrospectos solicitados aqui e ali já que não representam o que está em voga, o que saiu pelas grandes editoras nacionais do momento, mas, na verdade, o mundo da releitura é um grande consolo, quando se olha ao redor e não se vê nada muito estimulante. Acho até que as pessoas que têm contato com o mundo dos livros deveriam voltar-se mais para as próprias estantes, constatar em algumas lombadas títulos que nem leram direito, que apenas colocaram lá, e empreenderem a leitura, podendo fazer grandes descobertas.
Acontece muito, a quem tem contato constante com esse universo editorial, que receba livros de autores novos e não haja tempo ou disposição para lê-los. Algumas edições desanimam, pela aparência deficiente, ou dão aquela impressão de aridez, de coisa forçada, de um universo novo em que não queremos penetrar. Vai ficando difícil, à medida que se envelhece, ter boa vontade para com gente nova, e isso não deve surpreender a ninguém. A idade “provecta”, por assim dizer, é a idade do amadurecimento espiritual, da confirmação do que se conhece e se ama, e, por uma questão de tempo, parece muitíssimo mais fecundo ficar em terrenos já percorridos e descobrir encantos novos nesses mesmos terrenos. Nesse caso, o que se chama de “monotonia” nada mais que é a confirmação de uma personalidade, que nos foi árduo conquistar e de que, compreensivelmente, não abriremos mão. Quais dos livros atuais, afinal de contas, podem competir com “Em busca do tempo perdido”, “Dom Casmurro”, “A morte de Ivan Illich” ou “Grande sertão: Veredas”, só para citar alguns?
Na verdade, a chatice dos retrospectos é o peso que a temporalidade, a circunstância, exerce sobre eles. A gente, lembrando Drummond, quer ser eterno, não moderno, e, por força de estar ao lado de livros, escrevendo-os, traduzindo-os, mergulhando em alguns e remergulhando em outros, mal se dá conta dessa coisa de calendário.
Algo que foi escrito lá em algumas noites atormentadas de fins do século 19 ou do início dos 20 – digamos, um “Inferno”, de Strindberg – nos diz mais que qualquer coisa cunhada na atualidade, no novíssimo milênio tecnológico e presunçoso.
E nos situa fora e acima do tempo. Com esse poder maravilhoso e redentor que a literatura tem de nos dar mundos próprios, autônomos, onde a Imaginação é a única rainha.
Chico Lopes
"Lugar algum em parte alguma", de Nelson de Oliveira (Record), me agradou bastante, pelo nonsense fino e os calculados e bem sucedidos delírios da prosa de Nelson. "Modo de apanhar pássaros à mão", revelou, para mim, a Maria Valéria Rezende contista, com alguns contos particularmente bem escritos e sedutores. "Contos negreiros", de Marcelino Freire (Record), me pareceu um livro de uma força inegável - fui arrastado pelo clima das narrativas-cantos de Marcelino, cujo talento só parece estar crescendo, nos últimos anos. Também me surpreendi com a descoberta dos contos agudos e atmosféricos de “A leste da morte”, livro de Nilto Maciel editado pela pequena Bestiário, acessível a uns poucos, mas merecedor da maior atenção. Outra boa surpresa foi reencontrar pela Internet uma velha amiga, Yara Camillo, que conheci como contista em esboço nos anos 80 e cujo talento se confirmou em “Hiatos” (RG), livro em que alguns contos são verdadeiros primores de humor e sensibilidade. E foi, para mim, a grande descoberta do ano, em termos de contos, o contato com o livro “Faca” (Cosac & Naify), de Ronaldo Correia de Britto, escritor pernambucano que me parece injustamente pouco lido por aqui. A qualidade de sua prosa enxuta, substantiva, em que nenhuma palavra parece fora do lugar, é incomum e sugere um mestre oculto.
Em termos de romance, não li os que parecem estar sendo mais votados e citados, até porque, como disse, as unanimidades não me arrastam, e, tanto quanto possível, leio pelo prazer da leitura, sem que a moda e as vitrines de livrarias, onde reluzem os nomes de maior venda, me aliciem. Mas, recebi o último de Ignácio de Loyola Brandão, “A altura e a largura do nada” (Jabuticaba), e gostei de ver ampliado o universo que o escritor já explorara no belo romance “Dentes ao sol”, do início de sua carreira – o de sua Araraquara natal. É particularmente forte o senso de absurdo, o humor negro, as referências nostálgicas, brincalhonas, poéticas, que nos assediam, na pintura de uma cidade do interior cheia de personagens cativantes. Outro prazer constante que os livros de Loyola oferecem é essa capacidade de cunhar títulos delirantes que o escritor tem. “A altura e a largura do nada”, que o leitor naturalmente saberá o que é ao ir mergulhando naquele mundo araraquarense-universal, é um achado.
Releio mais do que leio, esta é a verdade. E, pela boa razão de que os livros novos são caros demais nas livrarias, vivo fuçando em sebos, onde reencontro livros que um dia tive e amei como “A canção da relva”, obra-prima de Doris Lessing, e “O chamado da selva”, de Jack London. Não se coloca esse tipo de leitura em retrospectos solicitados aqui e ali já que não representam o que está em voga, o que saiu pelas grandes editoras nacionais do momento, mas, na verdade, o mundo da releitura é um grande consolo, quando se olha ao redor e não se vê nada muito estimulante. Acho até que as pessoas que têm contato com o mundo dos livros deveriam voltar-se mais para as próprias estantes, constatar em algumas lombadas títulos que nem leram direito, que apenas colocaram lá, e empreenderem a leitura, podendo fazer grandes descobertas.
Acontece muito, a quem tem contato constante com esse universo editorial, que receba livros de autores novos e não haja tempo ou disposição para lê-los. Algumas edições desanimam, pela aparência deficiente, ou dão aquela impressão de aridez, de coisa forçada, de um universo novo em que não queremos penetrar. Vai ficando difícil, à medida que se envelhece, ter boa vontade para com gente nova, e isso não deve surpreender a ninguém. A idade “provecta”, por assim dizer, é a idade do amadurecimento espiritual, da confirmação do que se conhece e se ama, e, por uma questão de tempo, parece muitíssimo mais fecundo ficar em terrenos já percorridos e descobrir encantos novos nesses mesmos terrenos. Nesse caso, o que se chama de “monotonia” nada mais que é a confirmação de uma personalidade, que nos foi árduo conquistar e de que, compreensivelmente, não abriremos mão. Quais dos livros atuais, afinal de contas, podem competir com “Em busca do tempo perdido”, “Dom Casmurro”, “A morte de Ivan Illich” ou “Grande sertão: Veredas”, só para citar alguns?
Na verdade, a chatice dos retrospectos é o peso que a temporalidade, a circunstância, exerce sobre eles. A gente, lembrando Drummond, quer ser eterno, não moderno, e, por força de estar ao lado de livros, escrevendo-os, traduzindo-os, mergulhando em alguns e remergulhando em outros, mal se dá conta dessa coisa de calendário.
Algo que foi escrito lá em algumas noites atormentadas de fins do século 19 ou do início dos 20 – digamos, um “Inferno”, de Strindberg – nos diz mais que qualquer coisa cunhada na atualidade, no novíssimo milênio tecnológico e presunçoso.
E nos situa fora e acima do tempo. Com esse poder maravilhoso e redentor que a literatura tem de nos dar mundos próprios, autônomos, onde a Imaginação é a única rainha.
Chico Lopes
1 Comments:
"Acho até que as pessoas que têm contato com o mundo dos livros deveriam voltar-se mais para as próprias estantes"
Chico, parece que você escreveu isto para mim...rs...mas eu já tinha decidido atacar a minha estante neste 2007. Sério. Os seus que tenho aqui já li assim como outros que recebi. Mas há muita coisa que fui comprando nos sebos (sobretudo)que ainda está ali, talvez agora seja tempo de ficar em casa e ler...
Excelente artigo.
beijos
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