segunda-feira, junho 11, 2007

Carta de Simone de Beauvoir a Nelson Algren

Sexta-feira, 26 de setembro de 1947*

Nelson, meu amor,

Foram só vinte e três horas até Paris, aportamos às 6h, amanhecia. Eu estava muito cansada depois de duas noites sem dormir, bebi café e tomei dois pequenos comprimidos para me manter acordada durante o longo dia. Paris estava muito bonita, um pouco nevoenta, com um céu cinza, suave, e o aroma das folhas mortas. Fiquei muito contente ao descobrir que tinha muito a fazer aqui, tanto que só devo ir para o campo o mês que vem. Primeiro, o rádio dá ao Temps Modernes uma hora inteira a cada semana para falar sobre o que quisermos, da maneira que quisermos. Você sabe o que significa a possibilidade de chegar a milhares de pessoas e tentar fazer com que eles pensem e sintam do modo que acreditamos seja correto pensar e sentir. Isso tem de ser manejado com muito cuidado, e hoje de manhã tive uma espécie de conferência para falar sobre o assunto. Segundo, o Partido Socialista quer nos consultar sobre a possibilidade estabelecer uma conexão entre política e filosofia. Parece que as pessoas começam a acreditar que as idéias são algo importante. Terceiro, havia inúmeras cartas de todos os tipos e muito trabalho para tocar na própria revista. Eu estava feliz, quero trabalhar, trabalhar muito. A razão por eu não ter ficado em Chicago é essa minha eterna necessidade de trabalho, de dar sentido a minha vida pelo trabalho. Você tem a mesma necessidade, e essa é uma das razões pelas quais nos entendemos tão bem. Você quer escrever livros, bons livros, e, aos escrevê-los, ajudar o mundo a ser um pouco melhor. Eu também quero isso. Quero transmitir às pessoas minha forma de pensar, que creio ser a verdadeira. Eu devia desistir das viagens e todo tipo de diversão, devia desistir dos amigos e dos encantos de Paris a fim de poder ficar para sempre com você; mas não poderia viver somente de felicidade e amor, não poderia desistir de escrever e trabalhar no único lugar em que minha escrita e meu trabalho talvez faça sentido. O que é bastante difícil, pois, como lhe disse nosso trabalho aqui não é muito promissor, e o amor e a felicidade são coisas tão verdadeiras, tão seguras. E, no entanto, ele tem de ser feito. Entre as mentiras do comunismo e do anticomunismo, contra essa falta de liberdade que grassa quase em toda França, algo deve ser feito por pessoas capazes e que se importem com a situação. Meu amor, isso não cria nenhuma divergência entre nós; pelo contrário, eu me sinto bem próxima de você nessa tentativa de lutar por aquilo que julgo verdadeiro e bom, seguindo seu exemplo. Mas, ainda assim não pude evitar o choro convulsivo esta noite, já que passei momentos tão felizes com você, amei-o tanto e agora uma distância enorme nos separa.


Sábado – Estava tão cansada que dormi 14 horas, só acordei uma vez durante a noite para pensar em você e chorar mais um pouco. De tanto chorar, estava tão feia esta manhã que, ao cruzar com Camus na rua, ele me perguntou se eu não estava grávida: segundo ele, minha cara não deixava dúvidas!


*Essa carta foi escrita por Simone de Beauvoir a Nelson Algren. Ela descreveu seu longo e apaixonado relacionamento com ele em seu romance Os Mandarins (1954). Simone tinha 39 anos quando se encontraram , estava envolvida com Sartre e escrevia O Segundo Sexo.
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Mais sobre Simone de Beauvoir no excelente site de Wagner Campello.

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Leila Silva Terlinchamp - Cadernos da Bélgica

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2 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Obrigado por divulgar o link do site, Leila.

Quando as “Cartas a Nelson Algren” foram publicadas, muitas mulheres pareceram se decepcionar com Simone — pelo simples fato de ela se mostrar enormemente apaixonada pelo escritor americano. Muitas acharam que aquela Simone nada tinha de "feminista", mas a maioria esmagadora desconhece completamente que Beauvoir — apesar de ser considerada como uma das precursoras do feminismo —, só aderiu mesmo ao movimento bem mais tarde, e com uma série de restrições. No fundo, penso que Simone era muito mais "humanista" que qualquer outra coisa.
Em todo caso, as cartas que ela escreveu a Nelson, justamente, revelam um lado "humano" que nem sua autobiografia ou seus romances foram capazes de mostrar em profundidade.

Abraço!

12 junho, 2007 18:58  
Anonymous Anônimo said...

Oi, Leila

Bom ter você de volta. Também gosto muito de Beauvoir.

Beijo,

UK

14 junho, 2007 22:56  

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