terça-feira, maio 01, 2007

"300" - O deleite da barbárie e o gozo da carnificina


Fui ver "300" em decorrência de dois fatores: a necessidade de comentar o filme profissionalmente e de conhecer seus elogiados feitos técnicos, na adaptação do gibi (ou, mais pernosticamente, graphic novel) de Frank Miller. Estou escolado nas estratégias sujas do marketing cinematográfico e sei que de nada que faça barulho publicitário muito intenso se pode esperar muito hoje em dia, mas, ainda assim, Cinema é arte & indústria e mantenho a cabeça sempre aberta para, no meio do lixo industrial, do "mainstream", descobrir alguns encantos e criações autênticos. Nunca esquecer que gente que hoje nos parece admirável e supremamente artística, como Billy Wilder e Alfred Hitchcock, era o "mainstream" de décadas distantes. Também falou-se tanto do bizarro rei Xerxes interpretado por Rodrigo Santoro que eu tinha que dar uma olhada nisso.
Mas o filme me surpreendeu foi por outras razões, que, na verdade, nem são novas, mas continuam me inquietando e me espantam que não inquiete - ou não pareça inquietar - muito as pessoas. Já se viu algo tão sádico, tão militarista, tão preconceituoso, tão machista e tão cruel quanto esse filme?
"Sin City - A cidade do pecado", adaptação anterior de Frank Miller, tinha todo esse visual de gibi e encantava o público por razões idênticas, parece. Tinha, em seu miolo, uma inquietante putrefação no gozo estético da violência e da decomposição moral. Mas, "300" vai mais longe. Parece uma apoteose do gozo homossexual-machista pelas camaradagens masculinas que celebram a luta e a morte. Tudo é uma glorificação incessante do machismo e, quando pretende disfarçar, cai no cinismo, num sentimentalismo da espécie mais viscosa. Como continuo achando que não há glória maior que viver e que o amor é melhor que a guerra, acho que esse tipo de filme, numa época de tão disseminada violência como a nossa, é um incremento ao Horror, não aceito a produção, que é formalmente interessante, senão como a reiteração de uma coisa tão pavorosa como o "viva la muerte" do franquismo que me parece dominar o ar e contar com a complacência de muita gente displicente com o caos e a desgraça.
Temos o rei Leônidas interpretado por Gerard Butler, que até aqui não havia convencido a ninguém como ator - mas, até que nem era tão ruim em "O fantasma da ópera ", de Joel Schumacher, vivendo o próprio, e em "Meu querido Frankie", produção inglesa meio despercebida em que mostrava sensibilidade.
Bem, com "300" Butler vira astro. E o curioso é que o filme é tão obsessivo na exaltação à masculinidade guerreira - a bela atriz que faz a rainha Gorgo não oferece muito interesse para o diretor, parece - que Butler aparece nu numa cena de "alcova conjugal", o corpo anatomicamente perfeito, nádegas banhadas pela lua, deixando bem clara a linha de erotismo adotada. O diretor, claro, parece nos dizer que admirável ali é o rei, o marido, o senhor todo fálico. Nisso, há até uma certa coragem, já que, em geral, o cinema comercial, quando nos dá um plano de um casal na cama, em geral prefere deter-se é na nudez da mulher.
Não haveria problema nenhum com a linha erótica adotada se isso fosse mais honesto - se o filme não oferecesse, isto sim, a preferência homossexual embrulhada no álibi e na sublimação das lutas, extremamente violentas e cruéis. O filme diz o tempo todo que macho que é macho, mata, que a glória da macheza consiste em ser um verdadeiro rinoceronte blindado que passa sobre tudo e não deixa rastros. A celebração de Átila, não deixando um broto de grama por onde quer que passe... Velha história, mas é uma história terrível, que a gente está cansado de conhecer, e cujos efeitos venenosos sem dúvida continuam fora do cinema, nas cabecinhas adolescentes que já saem da sala de projeção convencidas que há algo decididamente glamouroso em decepar, esquartejar, ulular, berrar e ser o pior dos animais - esse, do sexo masculino - que habita o planeta.
As pessoas são muito cínicas em relação ao efeito da arte cinematográfica, ou outra, sobre as cabeças juvenis - acham, por excessiva liberalidade e complacência, que isso não se estende aos atos anti-sociais que vemos cometidos ininterruptamente por jovens de todas as classes sociais. Como não? Em que mundo estamos? O tecido social em que toda arte se insere é, então, indiferente a ela? Nada ecoa, nada reflete em nada?
Rodrigo Santoro, como o rei persa Xerxes é, sem dúvida, o "gay" assumido do filme, ou o diretor quer que o vejamos assim. Por isso, surge num ridículo carro alegórico e já vai pondo os braços lânguidos sobre os ombros do "glorioso" Leônidas vivido por Butler.
Os espectadores riem, e com razão. Mas, Santoro é bom ator e empresta dignidade a esse papel ingrato, salvando-o como pode.
Só que o diretor continua achando que macho digno é aquele que sublima a homossexualidade em luta e morte. Prazer, para homem, é, como nas hordas que ocupam os estádios de futebol, brigar, matar, ulular, sair vantajoso sobre os corpos abatidos. Quando aparece a corte do rei Xerxes, temos aquele tipo de devassidão à Sodoma & Gomorra dos velhos filmes "bíblicos" da mais careta Hollywood, com lésbicas se beijando e Xerxes oferecendo prazeres proibidos para um sujeito deformado com alma de traidor, em chantagem emocional, para destruir as hordas do Bem simbolizado por Leônidas. Aliás, todos os inimigos de Esparta são assim, ou negros ou "gays" assumidos e bizarros, ou sujeitos cobertos de lepras e deformações. São, num óbvio simbolismo, os "asiáticos", os horrendos "orientais" e "estrangeiros" que a América de Bush tanto teme e sai matando pelo mundo fora. São os inimigos do macho branco americano, aí simbolizado por Leônidas e sua tropa.
O delírio da violência como gozo está lá - se os "bandidos" se comprazem em erguer uma árvore de cadáveres, os "mocinhos" fazem muralhas de corpos humanos. Maniqueísmo mais grosseiro, impossível. Se você está do lado do Bem, do Lado Certo, tem direito a cometer todos os homicídios, com os mais variados requintes de crueldade, que quiser. Claro que, nos cinemas, essas cenas impressionam os jovens a ponto de ulularem de prazer. Que daqui a uns tempos estejam por aí, com a maior naturalidade, eliminando gente deformada, homossexuais e outros - segundo a lógica das brigadas do preconceito - não deveria constituir surpresa nenhuma para os complacentes.
Há uma homossexualidade que fetichiza a violência, que idolatra as descomunalidades fálicas, uma homossexualidade masoquista e doentia, sim, mas há também uma homossexualidade que prega a ternura entre iguais - coisa que o cinema "mainstream" do tipo de "300" parece odiar passionalmente. É indecente, para filmes desse tipo, que dois homens se amem de fato, e, aliás, o público vaiará, se isso acontecer (um gesto mais terno entre dois homens é um gesto desprezível para o público estupidificado) - não sendo jamais indecente que se matem, porque aí estarão dando expansão, com lanças ou o que for, a uma masculinidade das mais legítimas. E depois poderão voltar - ou não - para casa, para os braços de suas "pequenas Helenas". A rainha Gorgo, no final de "300", numa cena de um sentimentalismo asqueroso, passa o bastão da estupidez guerreira de Leônidas (simbolizada numa corrente) para o filhinho, com música pegajosa, para "comover". Subjugada pela violência machista, tornou-se uma adepta daquilo. Transmite ao menino todo esse veneno, como se amor fosse.
Para antídoto a filmes como esse, pelo amor dos céus, que se ponham à porta dos cinemas DVDs do maravilhoso e anti-bélico "Glória feita de sangue", de Stanley Kubrick. Nele, a guerra, tal como é - uma insanidade estúpida sem desculpa alguma a não ser o incremento da vaidade das altas patentes militares - aparece, numa aula deslumbrante de Cinema e honestidade moral e filosófica, pelo olhar de um aturdido e impotente militar justo e pacifista vivido por Kirk Douglas.
É engraçado que as pessoas lamentem tanto a violência e a barbárie que está nas ruas e não percebam que ela impregna nossa cultura atual, por conta desses monumentos de perversidade e anti-humanismo que o cinema americano e graphic novels e vídeo-games vêm erguendo. Não há inocência alguma nessa forma de entretenimento. O que ela prega é o fim do mundo civilizado.

Chico Lopes
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