Euclides da Cunha – Esboço Biográfico
Euclides da Cunha – Esboço Biográfico
de Roberto Ventura,
organizado por Mario Cesar Carvalho e José Carlos Barreto de Santana.
Cia das Letras
Esboço Biográfico traz à luz o trabalho inacabado de Roberto Ventura sobre Euclides
Algumas amizades surgem de um livro, ou do interesse comum por um autor. Foi Euclides da Cunha que me aproximou de Roberto Ventura: não o Euclides d’Os Sertões, mas o do outro deserto euclidiano: a Amazônia. O biógrafo sabia muito bem que os ensaios amazônicos eram parte significativa (e não lateral) da obra de Euclides. Ao ler recentemente o capítulo No Coração da Selva, percebi que Roberto soube combinar as motivações e o itinerário da viagem do escritor à Amazônia com os comentários sobre os ensaios reunidos no livro À Margem da História e em outros textos euclidianos focados na região amazônica.
Penso que o livro de Roberto Ventura é movido por esse duplo movimento: o rigor dos dados biográficos e a reflexão sobre a obra do autor. No capítulo citado, nota-se que Euclides, sob os ângulos da ideologia e da linguagem, é um pouco diferente d’Os Sertões. O estilo é menos pomposo ou afetado, o tom menos elevado, as frases são menos sinuosas e retorcidas, como se o escritor remasse vagarosamente rumo a um remanso, e não às águas caudalosas do grande rio. Menos turva é também sua visão crítica da sociedade amazônica, pois as teorias raciais e o determinismo climático são mais matizados e menos assertivos.
No capítulo em questão, Roberto enfatizou justamente a crítica social de Euclides, ou seja, a vida nos seringais do Purus: “A mais criminosa organização do trabalho”, em que o seringueiro é “um homem que trabalha para escravizar-se”. Além disso, a velha oposição “civilização/barbárie”, um discurso tão em voga por ideólogos neoconservadores, já não faz mais sentido para Euclides. Nos ensaios amazônicos ele observou, com agudeza, que os “civilizados” eram os verdadeiros protagonistas da barbárie. Essa reflexão, que já constava n’Os Sertões, foi aprofundada depois da longa e exaustiva viagem do escritor à Amazônia.
Em suas anotações de campo, Euclides trabalhava com a minúcia e a perícia de um calígrafo; creio que o mesmo pode-se dizer do trabalho do biógrafo: minucioso, atento a tudo, a todas as fontes primárias e secundárias, e atento também à pesquisa de campo. Graças a esse empenho de biógrafo obstinado, conheci Roberto há uns oito ou nove anos em Manaus, para onde viajou em busca de rastros de Euclides.
Além de ter pesquisado nas bibliotecas e nos arquivos da cidade, ele quis conhecer o igarapé de São Raimundo, de onde partiram os barcos da Comissão Mista Brasileiro-Peruana rumo à nascente do Purus. Depois visitamos Vila Glicínia, a chácara de Alberto Rangel situada perto da praça Chile, na Vila Municipal, onde Euclides havia morado três meses, primeiro irritadíssimo com o clima quente e úmido, depois apaziguado com as manhãs frescas e ensolaradas e, por fim, resignado com o ritmo moroso das pessoas e do cotidiano manauara. Visitamos o chalé de Rangel, com um quintal tipicamente amazônico, e depois provamos do melhor peixe com farinha.
Lembro que brinquei com ele, dizendo que o seu jeito calmo e sereno, sem ânsia, era um dos modos (ou uma das aparências) de ser amazonense. Uns dois anos depois da visita do Roberto, a casa da Vila Glicínia foi totalmente destruída e o quintal desmatado; no terreno foi construída uma loja horrorosa de peças para banheiro. Ou seja, a casa tornou-se ruínas, uma palavra tão recorrente na obra Euclides, que, segundo Augusto Meyer, “dramatiza tudo, e a tudo consegue transmitir um frêmito de vida e um sabor patético”.
Quem admira a obra de Euclides, lamenta a sua morte prematura, que interrompeu também a elaboração de Um Paraíso Perdido, o livro prometido e anunciado sobre a Amazônia. Algo semelhante pode-se dizer do desaparecimento precoce de Roberto, que, à semelhança de Euclides, deixou o esboço de um livro prometido. Certamente não era o trabalho definitivo que pensava escrever, mas nesse esboço o leitor pode vislumbrar a envergadura do que poderia ter sido uma biografia acabada.
Às vezes, um esboço é a prefiguração luminosa de um texto definitivo. Pois é justamente nos esboços de Euclides que encontramos intuições poderosas, relações sociais e econômicas da Amazônia com o Brasil e o mundo, observações agudas sobre os migrantes nordestinos e os nativos da região. No ensaio Os Caucheros, talvez um dos mais belos e pungentes d’À Margem da História, Euclides narra suas andanças nas margens do Alto Purus, e faz uma crítica incisiva à brutalidade do “cauchero”, ao tráfico criminoso de seres humanos praticado por esse “homúnculo da civilização”, segundo as palavras do escritor.
Num dia de julho de 1905, depois de avistar o “corpo desnudo e atrozmente mutilado” de uma índia amahuaca, o narrador passa pelos “escombros das estâncias abandonadas” e se depara com um homem solitário na floresta: um índio desgarrado de sua tribo. No canto de uma tapera em ruínas, ele está acocorado, inchado de impaludismo, contemplando impassível os homens da Comitiva. Esse índio agonizante não consegue responder com clareza às perguntas do narrador, pois sua voz é “um regougo quase extinto numa língua de todo incompreensível”. No entanto, agonizante naquela solidão absoluta, esse pobre-diabo consegue pronunciar uma única palavra, que expressa a força de um sentimento antes da morte, como mostra essa passagem narrada com emoção e dramaticidade por Euclides:
“Por fim, com enorme esforço levantou um braço; estirou-o, lento, para a frente, como a indicar alguma coisa que houvesse seguido para muito longe, para além de todos aqueles matos e rios; e balbuciou, deixando-o cair pesadamente, como se tivesse erguido um grande peso: ‘Amigos’ ”.
O texto acima foi lido pelo autor no lançamento do livro “Euclides da Cunha – Esboço Biográfico” (Companhia das Letras, 352 págs.), de Roberto Ventura, organizado por Mario Cesar Carvalho e José Carlos Barreto de Santana.
de Roberto Ventura,
organizado por Mario Cesar Carvalho e José Carlos Barreto de Santana.
Cia das Letras
Esboço Biográfico traz à luz o trabalho inacabado de Roberto Ventura sobre Euclides
Algumas amizades surgem de um livro, ou do interesse comum por um autor. Foi Euclides da Cunha que me aproximou de Roberto Ventura: não o Euclides d’Os Sertões, mas o do outro deserto euclidiano: a Amazônia. O biógrafo sabia muito bem que os ensaios amazônicos eram parte significativa (e não lateral) da obra de Euclides. Ao ler recentemente o capítulo No Coração da Selva, percebi que Roberto soube combinar as motivações e o itinerário da viagem do escritor à Amazônia com os comentários sobre os ensaios reunidos no livro À Margem da História e em outros textos euclidianos focados na região amazônica.
Penso que o livro de Roberto Ventura é movido por esse duplo movimento: o rigor dos dados biográficos e a reflexão sobre a obra do autor. No capítulo citado, nota-se que Euclides, sob os ângulos da ideologia e da linguagem, é um pouco diferente d’Os Sertões. O estilo é menos pomposo ou afetado, o tom menos elevado, as frases são menos sinuosas e retorcidas, como se o escritor remasse vagarosamente rumo a um remanso, e não às águas caudalosas do grande rio. Menos turva é também sua visão crítica da sociedade amazônica, pois as teorias raciais e o determinismo climático são mais matizados e menos assertivos.
No capítulo em questão, Roberto enfatizou justamente a crítica social de Euclides, ou seja, a vida nos seringais do Purus: “A mais criminosa organização do trabalho”, em que o seringueiro é “um homem que trabalha para escravizar-se”. Além disso, a velha oposição “civilização/barbárie”, um discurso tão em voga por ideólogos neoconservadores, já não faz mais sentido para Euclides. Nos ensaios amazônicos ele observou, com agudeza, que os “civilizados” eram os verdadeiros protagonistas da barbárie. Essa reflexão, que já constava n’Os Sertões, foi aprofundada depois da longa e exaustiva viagem do escritor à Amazônia.
Em suas anotações de campo, Euclides trabalhava com a minúcia e a perícia de um calígrafo; creio que o mesmo pode-se dizer do trabalho do biógrafo: minucioso, atento a tudo, a todas as fontes primárias e secundárias, e atento também à pesquisa de campo. Graças a esse empenho de biógrafo obstinado, conheci Roberto há uns oito ou nove anos em Manaus, para onde viajou em busca de rastros de Euclides.
Além de ter pesquisado nas bibliotecas e nos arquivos da cidade, ele quis conhecer o igarapé de São Raimundo, de onde partiram os barcos da Comissão Mista Brasileiro-Peruana rumo à nascente do Purus. Depois visitamos Vila Glicínia, a chácara de Alberto Rangel situada perto da praça Chile, na Vila Municipal, onde Euclides havia morado três meses, primeiro irritadíssimo com o clima quente e úmido, depois apaziguado com as manhãs frescas e ensolaradas e, por fim, resignado com o ritmo moroso das pessoas e do cotidiano manauara. Visitamos o chalé de Rangel, com um quintal tipicamente amazônico, e depois provamos do melhor peixe com farinha.
Lembro que brinquei com ele, dizendo que o seu jeito calmo e sereno, sem ânsia, era um dos modos (ou uma das aparências) de ser amazonense. Uns dois anos depois da visita do Roberto, a casa da Vila Glicínia foi totalmente destruída e o quintal desmatado; no terreno foi construída uma loja horrorosa de peças para banheiro. Ou seja, a casa tornou-se ruínas, uma palavra tão recorrente na obra Euclides, que, segundo Augusto Meyer, “dramatiza tudo, e a tudo consegue transmitir um frêmito de vida e um sabor patético”.
Quem admira a obra de Euclides, lamenta a sua morte prematura, que interrompeu também a elaboração de Um Paraíso Perdido, o livro prometido e anunciado sobre a Amazônia. Algo semelhante pode-se dizer do desaparecimento precoce de Roberto, que, à semelhança de Euclides, deixou o esboço de um livro prometido. Certamente não era o trabalho definitivo que pensava escrever, mas nesse esboço o leitor pode vislumbrar a envergadura do que poderia ter sido uma biografia acabada.
Às vezes, um esboço é a prefiguração luminosa de um texto definitivo. Pois é justamente nos esboços de Euclides que encontramos intuições poderosas, relações sociais e econômicas da Amazônia com o Brasil e o mundo, observações agudas sobre os migrantes nordestinos e os nativos da região. No ensaio Os Caucheros, talvez um dos mais belos e pungentes d’À Margem da História, Euclides narra suas andanças nas margens do Alto Purus, e faz uma crítica incisiva à brutalidade do “cauchero”, ao tráfico criminoso de seres humanos praticado por esse “homúnculo da civilização”, segundo as palavras do escritor.
Num dia de julho de 1905, depois de avistar o “corpo desnudo e atrozmente mutilado” de uma índia amahuaca, o narrador passa pelos “escombros das estâncias abandonadas” e se depara com um homem solitário na floresta: um índio desgarrado de sua tribo. No canto de uma tapera em ruínas, ele está acocorado, inchado de impaludismo, contemplando impassível os homens da Comitiva. Esse índio agonizante não consegue responder com clareza às perguntas do narrador, pois sua voz é “um regougo quase extinto numa língua de todo incompreensível”. No entanto, agonizante naquela solidão absoluta, esse pobre-diabo consegue pronunciar uma única palavra, que expressa a força de um sentimento antes da morte, como mostra essa passagem narrada com emoção e dramaticidade por Euclides:
“Por fim, com enorme esforço levantou um braço; estirou-o, lento, para a frente, como a indicar alguma coisa que houvesse seguido para muito longe, para além de todos aqueles matos e rios; e balbuciou, deixando-o cair pesadamente, como se tivesse erguido um grande peso: ‘Amigos’ ”.
O texto acima foi lido pelo autor no lançamento do livro “Euclides da Cunha – Esboço Biográfico” (Companhia das Letras, 352 págs.), de Roberto Ventura, organizado por Mario Cesar Carvalho e José Carlos Barreto de Santana.
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