sexta-feira, dezembro 07, 2007

Lições de Sade

Lições de Sade
Eliane Robert Moraes
Ed Iluminuras


Publicada na clandestinidade, sentenciada ao fogo, proibida ou censurada, a obra do marquês de Sade restou condenada ao silêncio por quase dois séculos. Até hoje - quando o escritor "maldito" parece ter cedido vez ao "clássico" -, a indomável ficção sadiana ainda dá margem a especulações que, não raro, desembocam em equívocos. Desvios de tal natureza costumam reduzir o autor à idéia de sadismo, ora incorporada por discursos científicos, ora explorada pelo mercado. Visões comprometidas, sobretudo se prescindem da leitura atenta do mestre de todas as libertinagens. Nada mais oportuno, portanto, do que voltar às raízes do pensamento e da vida do polêmico marquês para compreender a trama perversa do seu imaginário - tão difícil de ser qualificado. Dotados de rara clareza, os ensaios de Eliane Robert Moraes configuram um olhar que privilegia a força imaginativa de Sade. Propositor de um erotismo sem precedentes, o criador da "Sociedade dos Amigos do Crime" funda um domínio único de expressão literária, marcado pelo excesso, cujos personagens devem ser compreendidos para além de qualquer alusão realista. Procurando contemplar essa visão, as reflexões aqui apresentadas circulam entre a literatura, a filosofia e a história, voltando atenção especial aos detalhes que constituem a impressionante arquitetura erótica proposta pelo escritor francês. Por isso mesmo, justifica-se o destaque dado a temas inesperados como as sociedades secretas da libertinagem, a alimentação dos devassos, ou a paisagem noir dos castelos do deboche. Essa diversidade também está presente nos comentários sobre as repercussões da obra sadiana, que constituem verdadeiro testemunho do seu efeito perturbador. Da exaltação do "divino marquês", promovida pelos surrealistas, às reflexões que lhe dedicaram Octavio Paz ou Roland Barthes, o que se percebe é a notável e seminal influência da imaginação libertina sobre muitos autores que lhe sucederam. Lidos em conjunto, os textos de Lições de Sade expõem o aprendizado de uma leitora exigente, que vem freqüentando a literatura libertina há duas décadas. Eliane Robert Moraes, dotada de estilo sagaz e elegante, revela uma sintonia fina com os ensinamentos sintetizados na frase de um dos mais lascivos personagens do marquês: "Toda a felicidade do homem está na imaginação". O mesmo vale para os leitores destas lições.

Leia um trecho do livro sobre o escritor francês publicado pela editora Iluminuras

O ponto de partida do ateísmo de Sade é o desamparo humano. Ninguém nasce livre; o homem, lançado ao mundo como qualquer outro animal, está “acorrentado à natureza”, sujeitando-se como um “escravo” às suas leis; “hoje homem, amanhã verme, depois de amanhã mosca” -tal é a condenação que paira sobre a “infeliz humanidade”. Ciente de que as religiões nascem desse sofrimento, o devasso sadiano prefere admiti-lo sem escapatórias para elaborar seu sistema. “Não bastará dar uma olhada em nossa miserável espécie humana, para melhor nos convencer de que nada nela anuncia a imortalidade?”, conclui ele no opúsculo “Do Inferno”.
Contudo, como se antecipasse a célebre fórmula gramsciana -“pessimismo da razão, otimismo da ação”-, o libertino procura superar esse desamparo primordial explorando os prazeres do corpo até suas derradeiras potencialidades. A volúpia, ensina o devasso do “Diálogo” ao padre, é “o único modo que a natureza oferece para dobrar ou prolongar tua existência”. Apenas ela pode substituir a consolação que a promessa de vida eterna encerra para atenuar o sofrimento humano, assegurando ao ateu uma outra forma de permanência no mundo. “Tens a loucura da imortalidade?”, pergunta Madame de Saint-Ange a Eugénie em “La Philosophie dans le Boudoir”, lembrando que só o desregramento dos sentidos pode perpetuar o homem no universo.
Sem a ilusão de encontrar outro mundo depois de morto, o moribundo do “Diálogo” transforma seu leito de morte em palco do prazer, onde a sensação de imortalidade deixa de ser uma quimera para alcançar o status de experiência. Fantasia derradeira que se produz no corpo do devasso, essa experiência cumpre o que a religião mantém apenas como promessa, realizando a sua loucura. Ao padre, uma vez convertido à libertinagem, resta a tarefa de dar continuidade -de corpo e alma- à subversão das leis humanas e divinas. Eis o que Sade chamará mais tarde, ao escrever “Justine”, de “o triunfo da filosofia”.

Eliane Robert Moraes - É crítica literária e professora de estética e literatura na PUC-SP e no Centro Universitário Senac-SP. Publicou, entre outros, "Sade - A Felicidade Libertina" (Imago), "O Corpo Impossível" (Iluminuras/Fapesp, 2002) e "Lições de Sade - Ensaios Sobre a Imaginação Libertina" (Iluminuras, 2006).
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