Elizabeth Bishop - Inéditos

Os trabalhos agora revelados em “Edgar Allan Poe & the Jukebox” (Farrar, Straus and Giroux) raramente podem ser considerados poemas completos, e muitas vezes funcionam como registro de observações cotidianas, com variantes de possíveis versos à margem do texto principal. De qualquer modo, há muitas curiosidades para o leitor brasileiro, como as estrofes dedicadas a Carlos Lacerda por ocasião da morte de Getúlio Vargas. Têm por título “Suicídio de um Ditador Moderado”, e dizem, por exemplo, que Os jornais já tinham sido vendidos; as bancas/já estavam fechadas. Mas de qualquer modo, durante a noite/as manchetes se escreveram sozinhas (...) Este é um dia que está bonito também,/e quente e calmo. Às sete da manhã eu vi/os cachorros sendo levados para passear pela praia famosa/como sempre, numa aurora de brilho cinza e verde,/deixando a marca de suas patas na areia úmida./(...)Às oito, dois meninos empinavam pipas.
Nada além de um esboço, talvez, mas pode-se intuir a sugestão de uma indiferença natural diante da história mesmo num evento incomparavelmente traumático como a morte de Getúlio. A beleza esmagadora da paisagem carioca teria o efeito de acentuar a desproporção brasileira entre História e Natureza. De resto, para quem nasceu num país em que vários presidentes foram assassinados, a idéia de um presidente suicida deve ter um componente a mais de estranheza; é nesse sentido que “as manchetes se escreveram por si mesmas”, como que sem intervenção humana.
Dedicando o poema a Carlos Lacerda, principal carrasco político de Vargas, Elizabeth Bishop parece investir sobretudo numa idéia de purificação. Cumpriria, em tese, celebrar o fim de um governo corrupto e elogiar a atividade de denúncia jornalística; numa estrofe anterior ela fala de uma “verdade” que finalmente aparecerá, como o conteúdo de um cinzeiro sujo. Ao mesmo tempo, o quadro da praia de Copacabana ao amanhecer mistura imagens de pureza cotidiana com uma sensação de neutralidade, acima do mundo das responsabilidades políticas reais. “Parabéns, o ditador está morto, mas não se sinta um assassino em função disso”: se esta interpretação é correta, o poema estava enveredando em caminhos emocionais e éticos de tal modo tortuosos que não admira ter sido abandonado.
Transcrevo, de qualquer modo, o original em inglês.
This is a day when truths will out, perhaps;/leak from the dangling telephone ear-phones/sapping the festooned switchboards’ strength;/fall from the windows, blow from off the sills,/ --the vague, slight unremarkable contents/of emptying ash-trays; rub off on our fingers/like ink from the un-proof-read newspapers,/crocking the way the unfocused photographs/of crooked faces do that soil our coats,/our tropical-weight coats, like slapped-at moths.// Today’s a day when those who work/are idling. Those who played must work/and hurry, too, to get it done,/with little dignity or none./The newspapers are sold; the kiosk shutters/crash down. But anyway, in the night,/The headlines wrote themselves, see, on the streets/and sidewalks everywhere;/a sediment’s splashed/ even to the first floors of apartment houses.//This is a day that’s beautiful as well,/and warm and clear. At seven o’ clock I saw/ the dogs being walked along the famous beach/as usual, in a shiny gray-green dawn,/leaving their paw prints draining in the wet./The line of breakers was steady and the pinkish,/segmented rainbow steadily hung above it./ At eight two little boys were flying kites.
Marcelo Coelho – Blog do Marcelo
3 Comments:
O comentário, evidentemente, não é para o blog, mas para o autor do texto: "Ditador", eleito pelo povo, no cumprimento de seu mandato, com parlamento aberto, imprensa livre? Ainda bem que o texto fala em "governo corrupto", melhor seria "país corrupto", porque o próprio, o "ditador", este tem carta de honestidade passada no cartório da história. O articulista se esquece de anotar que o homenageado da poetisa, este sim, era um candidato a ditador, frustrado, é bem verdade.
O poema inacabado da grande poetisa é magnífico. Me fez lembrar de "Agosto", de Rubem Fonseca, principalmente do seu final, com a mesma exploração do motivo da indiferença da natureza diante da história. O artigo é bom ao divulgar a publicação do fundo de gaveta de Bishop. A lamentar só o fato de o Marcelo Coelho, o autor, ser paulista. E ler paulista falando de História do Brasil é dose...
É um gde prazer tê-lo conosco, Marcelo. Em que pese o mau humor do meu amigo Cambará,(que por sinal mudou dos pampas para as montanhas das Geraes) tb sou paulista e nós n falamos da Historia do Brasil, nós a fazemos. Beijão
Obrigado pela citação, Vera! Parabéns pelo blog- está lindo, e o meu texto melhorou com seu tratamento!
Marcelo Coelho
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