O Diário de Kafka: Antologia de páginas íntimas
Guimarães Editores - Portugal
Tento aqui sistematizar um pouco algumas reflexões que são produto de leituras esparsas que, nas minhas incursões pelo mundo das letras, fiz de diversos escritos de Franz Kafka (1883 – 1924). Aquele moço magricela e desajeitado que num Congresso de Escritores realizado em Viena na última década de vinte foi apresentado a Otto Maria Carpeaux, por alguém que lhe segredou tratar-se de um sujeito meio tantã que publicara uns contos que ninguém compreendia. Os anos correram com velocidade de raio até que um dia “aquele magricela tantã” foi e continua sendo saudado como um dos maiores gênios literários do século XX.
Depois de ter lido aqui e ali O Processo; Cartas ao Pai e também as Cartas a Milena; quebrado a cabeça com A Muralha da China, esbugalhado os olhos na Colônia Penal, sofrido com o agrimensor em O Castelo e roído tudo quanto é unha em A Metamorfose, caiu-me nas mãos a Antologia de Páginas Íntimas. Era uma edição portuguesa, de 1961, da Guimarães Editores (Lisboa) que pesquei remexendo um sebo. Peguei o livro na estante e folheei-o, mas como nos casos de amor à primeira vista sabia que não ia resistir. Passei no caixa, e para não interromper a tradição pedi desconto, o cara tirou uns tico-ticos, paguei e solicitei que embrulhasse. Li tudo de uma hora para outra, de lambida, na maior sofreguidão. Só quem constantemente viaja pelos livros é capaz de bem sentir o que estou dizendo. Queria descobrir alguma coisa, ver se conseguia penetrar naquele enigma chamado Kafka.
O erudito e bem fundamentado prefácio da Antologia de Páginas Íntimas foi escrito por um certo Alfredo Margarido (que não tenho a menor idéia de quem seja). Logo nas primeiras linhas ele me acertou um soco na boca do estômago que me fez ver estrelas, ao escrever: “Um dos fatos mais impressionantes que ressaltam da leitura dos ‘Diários’ do judeu alemão Franz Kafka é, sem dúvida, a contínua presença de referências a nomes que podemos encontrar entre as vítimas dos campos de concentração nazis”.
Bem, não vou aqui chover no molhado refazendo e examinando o que já foi muito dito sobre as adversidades históricas, especificidades culturais e familiares que serviram como argamassa para fazer de Kafka um verdadeiro kafkiano. Basta lembrar que ele descendia de uma família judia e que nasceu em Praga, quando reinava um forte anti-semitismo na região, incorporada ao império austro-húngaro sob o domínio dos Habsburgos. Acrescente-se a isso as difíceis relações que Franz manteve com o pai, que descreve como um fanfarrão, arbitrário, prepotente e dominador.
Claro que não foi Kafka que autorizou a vinda a lume do diário onde fizera anotações entre maio de 1910 e junho de 1923, publicado em Portugal com o título de Antologia de Páginas Íntimas. Aliais Kafka, pediu a um de seus raros amigos, Max Brod, que quando morresse metesse fogo naquela papelada, nos seus cadernos cheios de escritos e que se apinhavam por diversos espaços de seu modesto quarto. Considerava que informações sobre ele, que haveriam de ser apagadas pela posteridade, bastava as contidas nas páginas das míseras tiragens de alguns livros de contos que bancara com seus próprios caraminguás, economizados com grande sacrifício. Livros que permaneceram encalhados e entristecidos em locais pouco iluminados. Talvez por desconfiar da forte potencialidade dos escritos do amigo e até como forma de homenageá-lo, mantendo viva a sua memória, Max Brod no lugar de queimar a papelada, pouco a pouco, a publicou. Devemos, portanto, ao infiel amigo de Kafka, e também escritor, termos acesso a sua obra monumental. Devemos a ele o ordenamento dos capítulos de O Processo assim como, entre tantos outros, conhecer o diário de Kafka – Antologia de Páginas Íntimas.
Kafka nasceu em 1883, ano que Karl Marx faleceu. O escritor tcheco foi bem contemporâneo do grande sociólogo alemão Max Weber (1864 – 1920). Respiraram portanto o ar envenenado da chamada 1ª Guerra Mundial (1914 – 1918) numa mesma região geográfica em época em que forte industrialização aumentava substantivamente, dando visibilidade, ao fenômeno burocratização. A questão da burocracia é central em ambos os autores – no literato e no sociólogo.
Kafka, que ganhou o pão de cada dia como empregado de uma seguradora especializada em acidentes de trabalho, esteve entre os primeiros pensadores a deixar pistas críticas sobre os efeitos desastrosos do processo de burocratização, tanto sobre o indivíduo quanto sobre a organização social, pelo seu caráter alienante e abstrato. Críticas facilmente identificáveis, entre outros, em O Processo, O Castelo e A Muralha da China. No último romance citado, o autor utiliza metáfora semelhante a Montesquieu em Cartas Persas (1721), ou seja: vale-se do Oriente para criticar o Ocidente. No romance, a burocracia é responsável pela construção de uma muralha em diferentes espaços físicos da China, entretanto as diversas partes levantadas constituem-se em um quebra-cabeça, nunca conseguindo se encontrar, apesar de cada etapa e passo da construção, envolvendo o trabalho de milhares de pessoas, ser minuciosamente planejado. Inversamente a Kafka, Max Weber destaca a burocracia como instrumento de racionalização da produção, que tenderia a crescer acompanhando a prosperidade industrial, organizando-a. Mas Weber parece tangenciar questões implícitas em Kafka, ao considerar sobre o que poderia ser o produto “final” da administração racional (burocrática): “neste último estágio de desenvolvimento cultural , seus integrantes poderão de fato ser chamados de especialistas sem espírito, sensualistas sem coração; nulidades que imaginam ter atingido um nível de civilização nunca antes alcançado”.
A Antologia de Páginas Íntimas é um texto de inestimável valor humano produto da pena hábil de um homem dotado de extraordinária sensibilidade, imaginação, capacidade crítica e que se preparava no dia-a-dia, com afinco, para vivenciar a única coisa que realmente o interessava: exercer o ofício de escritor. E como às vezes é a vida que imita a arte, Kafka, da mesma forma que Alceste, personagem do Misantropo (1666) de Molière, refugiou-se no mundo das letras. O segundo em protesto contra as bazofias dos salões fidalgos, o primeiro – provavelmente - para tentar ver se entendia de alguma maneira o que estava fora e dentro dele. Parece que não conseguia ter certeza, como Antoine Rouquentin, de A Náusea (1938) de Jean Paul Sartre, se era ele que estava dentro da náusea ou se era a náusea que estava dentro dele.
Estou longe de pensar, como costumam fazer a maior parte dos comentadores de Kafka, que ele era soturno, insociável, esquizóide, em suma: quase um mero objeto psicanalítico. Depoimentos de contemporâneos de Kafka referem-se a ele como alguém que gostava de remar, que comparecia com regularidade a encontros literários e que publicou vários livros. Em seu diário ficamos sabendo que ele fazia palestras e sonhava viver da literatura. Kafka simpatizava com os anarquistas e sua obra é inteiramente perpassada pela crítica as instituições políticas e sociais, vistas no prisma de seus desastrados efeitos sobre a psique dos indivíduos. Considero que algumas das contradições estruturais que fazem de Kafka um kafkiano, ou seja: autor de textos tensos e complexos que se movem em torno da contradição entre uma natureza humana pensada como explosão de liberdade e a sociedade que coloca grilhões nela, está bem configurada em um trecho de seu diário, em anotação feita em 21 de agosto de 1913: “O meu emprego é insuportável porque contradiz o meu único desejo e a minha única vocação , a literatura. Como sou apenas literatura e como não quero nem posso ser outra coisa, o meu emprego não poderá nunca seduzir-me, só poderá pelo contrário destruir-me totalmente”.
Aluízio Alves Filho Revista Achegas
* Antologia de páginas íntimas foi publicado no Brasil sob o título de Diários
4 Comments:
Céus, que perfeito, parabéns pelo texto.
No livro Conversas com Kafka, de G. Janouvch (um dos melhores que li na vida!) está bem explícito o que Kafka conta a respeito de seu emprego, que o distanciava daquilo que mais queria fazer, que era escrever.
Lindo texto. Tenho procurado assa antologia, mas ainda não consegui. =(
Kafka é maravilhoso, sem duvida, ele que era chamado de louco, hj, o mundo deu razão à ele, e loucos somos nós, a vida perturbada dele, o fez lúcido, talvez, se ele tivesse uma vida ''normal'', ele n seria esse gênio realista e transformador que conhecemos hj, meu escritor preferido , recomendo as traduções de Modesto Carone, abs
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