segunda-feira, setembro 04, 2006

O feitiço da ilha do Pavão

O feitiço da ilha do Pavão
João Ubaldo Ribeiro


Editora Nova Fronteira


“De noite, se os ventos invernais estão açulando as ondas, as estrelas se extinguem, a Lua deixa de existir e o horizonte se encafua para sempre no ventre do negrume, as escarpas da ilha do Pavão por vezes assomam à proa das embarcações como uma aparição formidável, da qual não se conhece navegante que não haja fugido dela, passando a abrigar a mais acovardada das memórias. Logo que deparadas, essas falésias abrem redemoinhos por seus entrefolhos, a que nada é capaz de resistir. Mas, antes, lá do alto, um pavão colossal acende sua cauda em cores indizíveis e acredita-se que é imperioso sair dali enquanto ela chameja, porque depois de ela se apagar e transformar-se num ponto negro tão espesso que nem mesmo em torno se vê coisa alguma, já não haverá como.”

Quando li “Sargento Getúlio” já gostei, “Já podeis da pátria filhos” também. Uns anos depois li o “Sorriso do lagarto”. Gostei mais ainda. “O feitiço da ilha do pavão” me deixou apaixonada, mas “A casa dos budas ditosos” não me agradou. Achei pobre demais. O do farol então nem se fala. Detestei.
Mas por esses acasos da vida descobri aqui o “Vencecavalo e outro povo” Não havia lido. E`um livro divertido, leve e irônico. Tive uma recaída em J Ubaldo e resolvi começar a reler. O primeiro foi a “ O feitiço da ilha do pavão”. Que maravilha!
João Ubaldo Ribeiro diz que escreveu o Feitiço da ilha do Pavão pensando fazer um livro engraçado. Conseguiu. É um livro que se lê rindo. Nele o escritor usa e abusa da ironia, cria um universo de tipos característicos, quase arquétipos, de uma sociedade ilhoa, ainda sob o domínio da coroa portuguesa, onde mesclam-se índios, negros e portugueses castiços em uma comédia de costumes de rara felicidade. Mas o que mais me impressionou, fazendo com que parasse várias vezes a leitura para voltar a página e reler é a maravilha do vocabulário do autor. João Ubaldo Ribeiro usa a língua portuguesa com uma intimidade e maestria única. Palavras inesperadas, uma infinidade de neologismos preciosos, uma força de expressão que raramente se encontra por aí. O autor desliza pelos personagens, vai de um ao outro usando as palavras quase como se dançasse e tudo isso enriquecido por um magistral uso da sintaxe. O narrador nos leva pela mão, e , interessantíssimo, ele altera seu vocabulário conforme o núcleo da historia do momento. Ou seja, o narrador adapta-se ao linguajar do personagem. Isso dá agilidade e ritmo ímpar na história.

“Não se deve rir da desgraça alheia, nem fazer pouco dos desventurados, até porque aquilo que a um vitima sói muitas vezes sobrevir a outro, não raro piormente. Sabe toda a consciência cristã que bem pouco caridosa é a ausência de compaixão e carece de desculpas aquele que vê motivo de mofa no sofrimento do próximo. São tantas as penas inventariadas nos infernos, obrigatoriamente pagas por pecados e más ações deste defeito derivados, que livros com mais de cem vezes as páginas deste cá, o qual tão desutilmente vos ocupa, não seriam bastantes para conter-lhes os resumos.... O mundo é perfeito, já diziam os antigos, e com eles nos vemos obrigados a concordar, eis que, se tudo se passasse como quer cada um de nós, não duraria esse mesmo mundo mais do que três peidos de mula, louvado seja Deus, para sempre seja louvado.”

Tem de tudo. Tem quilombo, tem ex pirata convertido, tem a Santa Inquisição, tem feiticeira, tem político safado, militar cabotino, índio esperto, enfim um caldeirão de personagens todos fascinantes. Para quem não leu é uma ótima pedida. Que seja, no mínimo, para enriquecer o vocabulário.
Vale a pena.

Vera do Val Rose Rose Rosebud

2 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Vera,
Boa lembrança do João Ubaldo, feita com muita sinceridade a medida em que você vai destacando os livros dele que gostou e os que não gostou. Bom também que você chama atenção para o rico linguajar do autor, colocando esta qualidade dele em evidência.

06 setembro, 2006 09:22  
Anonymous Anônimo said...

Sócia...sugiro reler o Diário do Farol. Vale a pena! Beijo.

12 setembro, 2006 10:37  

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