terça-feira, novembro 21, 2006

“O leopardo”: entre Lampedusa e Visconti



O Leopardo - Il Gattopardo
1963
Luchino Visconti


Com: Burt Lancaster (Don Fabrizio Salina), Claudia Cardinale (Angélica), Alain Delon (Tancredi), Paolo Stoppa (Don Calogero), Rina Morelli (Maria Stella), Romolo Valli (Padre Pirrone)

Uma excelente notícia para os cinéfilos, no fim do ano passado, foi o aparecimento, em DVD, da versão integral de “O leopardo”, em geral considerado a obra-prima do cineasta Luchino Visconti, em edição dupla, com muitos comentários e informações extras É uma produção mitológica, de 1963, que foi cultuada por outras gerações. Os cinéfilos sempre se queixaram de que a cópia existente em VHS deixava muito a desejar e o filme ficou esquecido por muito tempo.. Agora, o trabalho, cujo esplendor depende muito da fotografia de Giuseppe Rotunno (que fez também a de “Amarcord”, de Fellini), volta à sua glória.
Aconteceu comigo o que acontece com muita gente que milita na crítica cinematográfica do país: conhecia o filme, não conhecia o livro que lhe dera origem. No Natal passado, decidido a ignorar a chateação das festas de fim de ano, isolei-me o quanto pude e dediquei-me à leitura desse “O leopardo”, escrito pelo italiano Giuseppe Tomasi de Lampedusa. Descobri o que muita gente, claro, já sabia – que o escritor, também Príncipe de Lampedusa e Duque de Parma, nascido em Palermo em 1896, foi grande. Mas, curiosamente, passou 25 anos engendrando esse romance histórico, que transcorre em sua Sicília natal, baseado na figura de seu avô, e só há de seu – encontrável nas livrarias do Brasil, em pocket da LP&M - um outro livrinho de contos chamado “Histórias sicilianas”, que é engenhoso e tem encantos, mas não teria significado maior se não fosse do autor de “O leopardo”.

Quando decidiu pôr no papel a idéia que o obcecou pela vida toda, Lampedusa escreveu o seu romance com relativa rapidez, entre 1955 e 1956, e terminou-o poucas semanas antes de morrer. Parece bem o caso de um autor que, literalmente, viveu grávido de uma obra e tinha que pari-la, antes de ir-se para outro mundo. Não é um caso muito comum na vida literária, ou melhor, pode-se dizer que muitos escritores sonharam anos e anos com realizar uma obra que lhes era uma idéia fixa, mas a qualidade da obra realizada já em caminho fúnebre por Lampedusa é singular e faz pensar em Proust.


Elegia para uma classe

O melhor, no caso, é concentrar-se nessa obra. A muito conhecida saga do Príncipe Fabrizio Salina (conhecida mais por obra do filme de Visconti, sem dúvida) é um livraço, e parece que ninguém mais o lê, o que é para lá de lastimável. É uma prosa realista, cortada e recortada pela ironia, e é também de uma poesia melancólica, poesia da decadência – e nada mais apropriado para relatar o ocaso de um homem que personifica, sozinho, toda a aristocracia italiana, na época ameaçada pelas tropas revolucionárias de Garibaldi.
Salina – e a classe que representa – está em agonia. Antes de morrer, porém, ele tomará uma consciência cada vez mais precisa do mundo que representa e dirá uma frase célebre entre políticos e outros áulicos da classe dominante – “É preciso que alguma coisa mude para que tudo fique como está”. Sabe que essa agonia é, afinal de contas, relativa.
Muita gente cita essa frase como reveladora da perfídia dos senhores toda vez que uma revolução se aproxima – no Brasil, um bom equivalente seria o famoso “façamos a revolução antes que o povo a faça”, brado de nossas elites políticas, que podem ser acusadas de tudo, menos de não serem maquiavelicamente astutas. Assim, o nosso Príncipe siciliano não acha estranho que seu aristocrático sobrinho, Tancredi (no filme, vivido por Alain Delon), se engaje com os revolucionários. Parece um desses velhos ricos e conservadores que, espertos, sabem que os homens jovens de sua prole devem dar vazão a seu “sangue quente”, à sua mocidade, fazendo essas coisas que a juventude sempre faz – ou seja, dar-se a emoções fortes, inclusive as de uma guerra revolucionária, seguramente voltando para a casa dos mais velhos assim que a razão – e a necessidade – esfria seus ânimos e faz passarem seus faniquitos. Ele, apesar de todo o seu refinamento, de toda a sua superioridade intelectual sobre aquela gente siciliana que o cerca, é essencialmente pragmático, e casa Tancredi com Angélica, filha de um vulgar dono de terras que, como arrivista, está crescendo economicamente. Faz-se o enlace da superioridade aristocrática – que o homem rico e reles deseja – com o dinheiro – que os aristocratas precisam, para manter a pose, que outra coisa não têm mais. Conhece-se milhares de laços do gênero e variações. Em Lampedusa, isso avança – mais tarde, o Príncipe será consumido por um devastador auto-desprezo, porque tudo isso que ele faz por lucidez, faz contra seus princípios, seu refinamento, sua sofisticação estética, seus horizontes morais.
Lê-se o livro com uma admiração constante, pela emoção elevadíssima e poética contrabalançada pelo realismo duro. Apaixonamo-nos por aquela gente – a família de Salina e até seu cão, Bendicó. Essa gente, como a gente de todo grande romance, tem uma vida que ultrapassa tempo e circunstâncias.
É preciso suportar – e observar com lucidez – o que a família faz. Por exemplo, sair em plena guerra para passar uns dias ociosos numa estância de sua predileção, carregando seus criados e suas cestas de piquenique. É aterrador, mas não é assim que nossos senhores, os ricos, sempre foram e sempre são? E Lampedusa observa esses ritos com tranqüilidade, com certa nostalgia, e, no entanto, é tão implacável o realismo com que são descritos que não podemos achá-lo senão um grande escritor, sem cair na tolice de rotulá-lo como um “direitista decadente”, à velha maneira dos adeptos de Luckács. Esses ritos ficam imortalizados pela câmera de Visconti, que é um especialista em “decadência aristocrática” (basta que se lembre o grande “Senso” ou “Sedução da carne”). A suntuosidade do livro encontra eco mais que apropriado na suntuosidade do filme.
Há sempre um tom melancólico nesse luxo, e alguns compararam o filme de Visconti um pouco a “...E o vento levou”. Com isso na cabeça, alguém que não conheça a produção, chegando na abertura à mansão Salina, com a fotografia arrebatadora de Rotunno e a música maravilhosa de Nino Rota, poderá achar que está vendo uma réplica da Tara que Scarlett O´Hara preservou, a ferro e fogo. Mas o filme é pouco hollywoodiano, sua grandiosidade é de outra espécie. Lá está a família, reunida em torno do Príncipe, rezando uma ave-maria em latim, quer dizer, tentando rezá-la, enquanto das cercanias da mansão emergem gritos persistentes, que atrapalham a oração. Levam-na até o fim, de qualquer modo, exasperados, e saberemos que se tratava do barulho de empregados da casa ao encontrarem um soldado jovem, garibaldino, morto no pomar. Essa cena define todo o filme, magnificamente. A Morte ronda esses ritos fabulosos, há cheiro de cadáver – de revolução, de mundo a mudar – logo ali fora; não é possível rezar placidamente, em torno do velho patriarca, nem nunca mais será. Esse tom elegíaco percorrerá, como um arrepio, como uma brisa de piores presságios, toda essa belíssima produção.

Fidelidades e omissões

É surpreendente constatar como Visconti foi fiel a Lampedusa. Esse seu filme é, seguramente, ao lado de “Os inocentes” (adaptado de “A volta do parafuso”, de Henry James), a melhor adaptação de uma obra literária feita pelo cinema. Eu tinha a figura de Lancaster na minha cabeça, onipresente, enquanto lia a prosa de Lampedusa. Revendo o filme, senti que a fusão chegava perto da perfeição. Visconti fez com que tudo convergisse para a cena do grande baile (com valsa de Verdi), quando o espectador entende que aquele mundo feérico se esboroa, tudo passando pelo rosto do Príncipe, cuja velhice é constatada numa cena antológica, quando Lancaster (que ator ele se provou!) confronta-se com sua velhice no espelho.
Eis onde grandes artistas, e diferentes artes, se encontram: Visconti, admirador de Proust, filmou o baile elegíaco como se estivesse filmando “O tempo redescoberto”, último volume do septeto de Marcel, quando o escritor francês mostra todos os seus personagens num fantástico baile de espectros, envelhecidos, e expõe os fios do Tempo com toda a nitidez. Sabemos que é um mundo que se acaba, que aristocratas se fundem a burgueses de modo a não mais se distinguirem uns dos outros e que qualquer arrivista ou aventureiro americano já pode fazer parte daqueles salões da velha aristocracia caduca, que vive de seus sonhos em formol. E isso é ainda melhor porque, claro, Lampedusa era um proustiano. Ora, nada é mais proustiano que a decadência do Príncipe, que entrega seu sangue – Tancredi – a um burguês cuja única virtude é ter dinheiro (não há nem haverá nenhuma outra).
O espectador que tenha se envolvido profundamente com o filme sentirá até mesmo o fastio típico dos fins de festa, quando a madrugada se aproxima, os convivas vão se dispersando, e os gestos indicam que o sono tomou conta deles, que a grande ilusão se desmanchou e a banalidade da vida retoma seus direitos. É aquela hora da madrugada em que um friozinho tudo percorre, e, enquanto víamos aqueles corpos rodopiando, aquelas conversas, os mundanos estúpidos, os militares, as mulheres que deixarão de ser jovens e tagarelas daquele jeito dentro de certo tempo, não pensávamos nisso, mas a finitude está no epicentro dos prazeres, da vida social, e ninguém escapará. Com um naturalismo supremo, Visconti nos colocou na palpitação sensorial dessa idéia filosófica, de tudo isso, e só com imagens.
Mas há infidelidades, porque um filme é sempre um filme, e certas elipses são feitas necessariamente para que se erga como obra de arte autônoma, embora dependente de um texto e tão reverente a ele. O livro de Lampedusa não se encerra nesse baile, continua por muitas páginas ainda. Visconti, tendo filmado o talvez mais longo baile da história do cinema, termina com um plano distante de Lancaster na rua, numa vila siciliana ao amanhecer. O Príncipe dirige uma prece às estrelas e enfia-se por uma rua lateral, desaparecendo. Sabemos, sentimos que acabou-se, que, a partir daí, só fará esperar o momento de baixar à cova. Ainda assim, esse final teria tido mais força se, como no livro de Lampedusa, fôssemos introduzidos com mais clareza ao fato de Salina ser astrônomo reputado, de volta e meia citar estrelas, mas Visconti nada nos deu nesse sentido.
Mas, filmes assim têm que ser revistos sempre. Provam que o grande cinema resiste e que não precisamos nos desesperar com a enxurrada de ruindades que está por aí. Basta que não demos bola para ela e procuremos, em locadoras mais refinadas, o que de fato importa.

Chico Lopes

2 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Não ter visto o filme é uma das minhas frustrações em matéria de cinema. Na época em que estreou não pude vê-lo, já não lembro por quê. Era longo demais e por isso não havia cópias em VHS. Agora que está disponível em CD, vou poder vê-lo finalmente.
Quanto ao livro, que eu já havia lido antes mesmo de existir o filme, não tenho muito a dizer, já que você disse praticamente tudo.
Basta dizer que o admiro tanto - ou mais - que você, e costumo indicá-lo ou presenteá-lo a muita gente. No momento mesmo, meu exemplar está emprestado a um amigo (que, estranhamente, me disse que não está gostando).

22 novembro, 2006 23:53  
Anonymous pedro malanski said...

De todos os livros que li,muitos de todos os gêneros, esse foi o promeiro que me arrebatou. O único que terminei e imediatamente recomecei. Depois fiz um blog para Il Gatopardo.

04 julho, 2009 13:20  

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