terça-feira, junho 17, 2008

A decifração de K.

Se existe um autor cuja fortuna crítica cresce a cada dia, este é, sem erro, Franz Kafka. Nascido de uma família judia pequeno-burguesa, em Praga, no ano de 1883, morreu vítima de tuberculose, no sanatório de Kierling, perto de Viena, em 1924. Quarenta e um anos, contudo, foram o suficiente para que compusesse uma das obras mais incendiárias e mais avassaladoramente “pessoais” de que tem notícia a história da literatura.
A maior parte de seus livros foi publicada postumamente e embora tcheco de nascimento, Kafka teve como pátria linguística o idioma alemão que, sob sua pena torturada alcançou culminâncias até então só atingidas por Goethe ou Schiller. Dez anos apenas após a sua morte, no emblemático ensaio –“Kafka”- , de 1934, o filósofo Walter Benjamin (1892-1940) já chamava a atenção para a “escandalosa singularidade” do autor, prevendo inclusive para o “inventor”, entre outras obras-primas, de “A Metamorfose” (1915) uma tão crescente quanto díspar exegese.
Não poderia ser diferente neste tumultuado e tumultuário início de novo milênio. Em um ensaio de 2002, sucintamente intitulado “K.” , agora publicado no Brasil, pela Companhia das Letras (na sempre cuidada tradução de Samuel Titan Jr.), este autêntico poeta da prosa ensaística, o italiano Roberto Calasso, promove uma dos mais fundos e radicais exercícios de interpretação da obra kafkiana.
São quase 300 páginas, em 15 refinados capítulos, destinadas a desvelar alguns dos títulos fundamentais de Kafka. Detalhe importante -a par da exegese crítica, Calasso não se furta a investigar, com “escuta” quase psicanalítica, a vida aflitiva e torturada do genial judeuzinho de Praga que, num gesto até hoje objeto, ele também, de inúmeras interpretações, exigiu, no leito de morte, que o amigo Max Brod lançasse ao fogo, sem exceção, todos os seus manuscritos. Claro que o pedido, por dúbio e ambíguo, não foi atendido. Como lembrava Otto Maria Carpeaux, numa anotação irônica a propósito de Kafka, quem deseja suicidar-se não pede a outro que lhe prepare o copo de veneno.
Centrando sua investigação principalmente em dois alvo precisos –“O Processo” (1925) e “O Castelo” (1926), logo nos primeiros capítulos deste ousado “K.” , Roberto Calasso considera duas vertentes fundamentais que norteiam o respectivo constructo de ambos os “romances” -punição e eleição. Dois formidáveis complicadores novelescos: em “O Processo” o que se busca é a punição de Joseph K., e em “O Castelo” o “pathos” que o legitima adere umbilicalmente às maquinações de uma eleição -K. chega à aldeia onde imponente a preencher o vazio se impõe o castelo, sob a égide de uma necessidade -a de ser escolhido como agrimensor. Chega ou atende a um chamado?
A unir as duas pontas, a convocação realizada por algo ou alguém, sempre invisível e ambíguo, que impõe, autoritário, desde cima, dono e senhor do Poder, tanto a “pena” quanto a “escolha”. Isso tudo numa urdidura, desnecessário adicionar, da qual só Kafka é capaz, ao erigir uma ambiência romanesca invariavelmente pautada pelo suplício e pela tormenta. E o pior: como assinala Calasso, com argúcia, eleição e condenação quase não se distinguem. E mais: os livros só são dois por uma razão bem simples -a condenação é sempre certa; a eleição, sempre incerta. Não o fossem, “O Processo” e “O Castelo” poderiam filosoficamente constituir o mesmo livro.
Roberto Calasso não anota, mas é bastante oportuno lembrar que os nomes dos protagonistas dos dois “romances” (em Kafka há de se ler sempre entre aspas os gêneros literários que praticou, tanto fugiu às regras e normas das pautas ficcionais do século XIX, então vigentes) não diferem quase nada um do outro: em “O Processo”, quem se vê às voltas com o inusitado se chama Joseph K.; em “O Castelo”, às voltas com o mesmo sem-sentido e imprevisibilidade da vida, está K. .Transparentes razões parecem animar o dispositivo com que Kafka nomeia os personagens -são, assim como a punição e a eleição que caracterizam respectivamente cada um deles, quase os mesmos personagens.
Há um comentário nem tão marginal assim à interpretação de ambos os livros, onde Calasso delata que “na caligrafia de Kafka, a letra K prolongava-se para baixo numa vistosa voluta, que o escritor detestava: ‘O K é muito feio, quase me dá asco, mas continuo a escrevê-lo, deve ser muito característico de mim mesmo’. Escolhendo o nome K., Kafka obrigou-se a grafar centenas de vezes, diante dos próprios olhos, um traço que o ofendia e no qual reconhecia alguma coisa que lhe dizia respeito. Se tivesse narrado ‘O Castelo’ em primeira pessoa, conforme começara a fazer, a história não teria imergido tão profundamente em sua própria fisiologia, em zonas subtraídas ao império da vontade”. O grifo é nosso, mas diz bem desse tormento íntimo sem o qual inexistiria a obra kafkiana.
Depois de se deter exaustivamente em dois ou três densos capítulos dedicados quase inteiramente ao papel das mulheres tanto em “O Processo” como em “O Castelo”, num vertiginoso aprofundamento dessas personas femininas tão decisivas quanto fantasmais, como Amalia, Frieda, Pepi, Henriette, Emilie, Leni, produzidas mais pelo “destino” do que por qualquer outra instância novelesca, Calasso toca num ponto nevrálgico, a meu ver, da produção dos textos mais extensos de Kafka.
Assegura o ensaísta que ao contrário das narrativas curtas onde o tom e a pegada do apólogo estão, de certo modo, sempre presentes, seja no antológico “Josefina, a Cantora” ou mesmo em “Investigações de Um Cão”, “A Toca” ou “Construção da Muralha da China”, sem falar nesta acabada obra-prima que é “A Metamorfose”, os “romances” “O Castelo”, “Amerika” e “O Processo” não dialogam, em nenhum momento, com a fábula, como poderíamos supor à primeira vista.
Na mítica simbologia de todos eles, a grande novidade literária é que não fabulam, como fabula quase explicitamente um texto breve feito “Prometeu” ou mesmo “Um Médico de Aldeia” ou ainda “Um Artista da Fome”. Talvez daí o “inconcluso” que marca algumas das narrativas mais extensas de Kafka, como um voluntarismo essencial. Os contos -com começo, meio e fim- apontam, bem ao gosto da fábula, para uma “moral”, por mais desmoralizante que esta se revele. Ao contrário, os assim nomeados (mais pelo cânone do que pelo próprio Kafka) “romances” insinuam que o não-sentido é que constrói o mais agudo “sentido”, ainda que, novo paradoxo!, este mesmo seja, em si, outra vez, um cabal e aterrador não-sentido. Estamos falando de Franz Kafka, senhores.
A destacar ainda, do fecundo estudo do ensaísta italiano, o capítulo em que trata de “O Veredicto”, a “narrativa-suicídio” escrita por Kafka das dez horas da noite de 22 de setembro de 1912 à seis da manhã do dia seguinte e que assinala, digamos, o seu “nascimento” como escritor, tal como o conhecemos; as 32 páginas em que, acossado, Roberto Calasso intervém no célebre despertar de Joseph K. , no persicutário e mais arriscado de todos os instantes -aquele em que Joseph, eu ou você, leitor, acordamos para mais um dia; e por último mas não menos magnífico, o capítulo final do livro -“O Esplendor Velado”, em que Calasso se dispõe a investigar o que há por trás das resplandecências do sinistro; e não convém revelar aqui o que lá se encontra, expectante...
Assim é o mundo, sugere nos dizer, em última instância, com todas as letras, mas sobretudo com a misteriosa letra K, não só a obra de Franz Kafka como igualmente a prosa ensaística, de altíssimo repertório, em que se constitui o mais novo livro de Roberto Calasso publicado no Brasil. Um meticuloso hino de amor à obra seminal deste que é, sem exagero, um dos mais inventivos autores que já produziu a humanidade.
Tão singular e desconcertante que só um outro escritor, de toque pessoalíssimo como o dele, o búlgaro, também de expressão alemã, Elias Canetti (1905-1994) alcançou definir em poucas linhas, com a cortante lucidez que era a sua marca, e que Calasso não poderia deixar de registrar no admirável “K.”: “ Há escritores, bem poucos na verdade, que são tão inteiramente eles mesmos que qualquer declaração que se arrisque a seu respeito deve soar como uma verdadeira barbárie. Kafka foi um autor desse tipo, e correndo o risco de parecermos pouco independentes, não podemos deixar de ater-nos com máximo rigor às suas próprias declarações”.
Decifrar o autor de “A Metamorfose”, queiramos ou não, será sempre uma tarefa frusta e vã, ademais de perversa e açulada por um viés inútil, malévolo em amplo sentido. Interpretar Franz Kafka , senhores, mesmo através da prosa acordada deste “K.”, segue sendo ainda a melhor maneira de traí-lo. Roberto Calasso sabe disso.

Wilson Bueno*
*Escritor, autor, entre outros títulos, do livro de fábulas "Cachorros do Céu" (ed. Planeta), que esteve entre os finalistas do prêmio Portugal Telecom de 2006.

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quarta-feira, junho 04, 2008

Carlos Scliar

O bule vermelho
Beringelas, tomates e limões

Auto retrato 1948

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