terça-feira, maio 22, 2007

Portinari - Futebol - 1935

quinta-feira, maio 17, 2007

Euclides da Cunha – Esboço Biográfico

Euclides da Cunha – Esboço Biográfico
de Roberto Ventura,
organizado por Mario Cesar Carvalho e José Carlos Barreto de Santana.
Cia das Letras


Esboço Biográfico traz à luz o trabalho inacabado de Roberto Ventura sobre Euclides

Algumas amizades surgem de um livro, ou do interesse comum por um autor. Foi Euclides da Cunha que me aproximou de Roberto Ventura: não o Euclides d’Os Sertões, mas o do outro deserto euclidiano: a Amazônia. O biógrafo sabia muito bem que os ensaios amazônicos eram parte significativa (e não lateral) da obra de Euclides. Ao ler recentemente o capítulo No Coração da Selva, percebi que Roberto soube combinar as motivações e o itinerário da viagem do escritor à Amazônia com os comentários sobre os ensaios reunidos no livro À Margem da História e em outros textos euclidianos focados na região amazônica.
Penso que o livro de Roberto Ventura é movido por esse duplo movimento: o rigor dos dados biográficos e a reflexão sobre a obra do autor. No capítulo citado, nota-se que Euclides, sob os ângulos da ideologia e da linguagem, é um pouco diferente d’Os Sertões. O estilo é menos pomposo ou afetado, o tom menos elevado, as frases são menos sinuosas e retorcidas, como se o escritor remasse vagarosamente rumo a um remanso, e não às águas caudalosas do grande rio. Menos turva é também sua visão crítica da sociedade amazônica, pois as teorias raciais e o determinismo climático são mais matizados e menos assertivos.
No capítulo em questão, Roberto enfatizou justamente a crítica social de Euclides, ou seja, a vida nos seringais do Purus: “A mais criminosa organização do trabalho”, em que o seringueiro é “um homem que trabalha para escravizar-se”. Além disso, a velha oposição “civilização/barbárie”, um discurso tão em voga por ideólogos neoconservadores, já não faz mais sentido para Euclides. Nos ensaios amazônicos ele observou, com agudeza, que os “civilizados” eram os verdadeiros protagonistas da barbárie. Essa reflexão, que já constava n’Os Sertões, foi aprofundada depois da longa e exaustiva viagem do escritor à Amazônia.
Em suas anotações de campo, Euclides trabalhava com a minúcia e a perícia de um calígrafo; creio que o mesmo pode-se dizer do trabalho do biógrafo: minucioso, atento a tudo, a todas as fontes primárias e secundárias, e atento também à pesquisa de campo. Graças a esse empenho de biógrafo obstinado, conheci Roberto há uns oito ou nove anos em Manaus, para onde viajou em busca de rastros de Euclides.
Além de ter pesquisado nas bibliotecas e nos arquivos da cidade, ele quis conhecer o igarapé de São Raimundo, de onde partiram os barcos da Comissão Mista Brasileiro-Peruana rumo à nascente do Purus. Depois visitamos Vila Glicínia, a chácara de Alberto Rangel situada perto da praça Chile, na Vila Municipal, onde Euclides havia morado três meses, primeiro irritadíssimo com o clima quente e úmido, depois apaziguado com as manhãs frescas e ensolaradas e, por fim, resignado com o ritmo moroso das pessoas e do cotidiano manauara. Visitamos o chalé de Rangel, com um quintal tipicamente amazônico, e depois provamos do melhor peixe com farinha.
Lembro que brinquei com ele, dizendo que o seu jeito calmo e sereno, sem ânsia, era um dos modos (ou uma das aparências) de ser amazonense. Uns dois anos depois da visita do Roberto, a casa da Vila Glicínia foi totalmente destruída e o quintal desmatado; no terreno foi construída uma loja horrorosa de peças para banheiro. Ou seja, a casa tornou-se ruínas, uma palavra tão recorrente na obra Euclides, que, segundo Augusto Meyer, “dramatiza tudo, e a tudo consegue transmitir um frêmito de vida e um sabor patético”.
Quem admira a obra de Euclides, lamenta a sua morte prematura, que interrompeu também a elaboração de Um Paraíso Perdido, o livro prometido e anunciado sobre a Amazônia. Algo semelhante pode-se dizer do desaparecimento precoce de Roberto, que, à semelhança de Euclides, deixou o esboço de um livro prometido. Certamente não era o trabalho definitivo que pensava escrever, mas nesse esboço o leitor pode vislumbrar a envergadura do que poderia ter sido uma biografia acabada.
Às vezes, um esboço é a prefiguração luminosa de um texto definitivo. Pois é justamente nos esboços de Euclides que encontramos intuições poderosas, relações sociais e econômicas da Amazônia com o Brasil e o mundo, observações agudas sobre os migrantes nordestinos e os nativos da região. No ensaio Os Caucheros, talvez um dos mais belos e pungentes d’À Margem da História, Euclides narra suas andanças nas margens do Alto Purus, e faz uma crítica incisiva à brutalidade do “cauchero”, ao tráfico criminoso de seres humanos praticado por esse “homúnculo da civilização”, segundo as palavras do escritor.
Num dia de julho de 1905, depois de avistar o “corpo desnudo e atrozmente mutilado” de uma índia amahuaca, o narrador passa pelos “escombros das estâncias abandonadas” e se depara com um homem solitário na floresta: um índio desgarrado de sua tribo. No canto de uma tapera em ruínas, ele está acocorado, inchado de impaludismo, contemplando impassível os homens da Comitiva. Esse índio agonizante não consegue responder com clareza às perguntas do narrador, pois sua voz é “um regougo quase extinto numa língua de todo incompreensível”. No entanto, agonizante naquela solidão absoluta, esse pobre-diabo consegue pronunciar uma única palavra, que expressa a força de um sentimento antes da morte, como mostra essa passagem narrada com emoção e dramaticidade por Euclides:
“Por fim, com enorme esforço levantou um braço; estirou-o, lento, para a frente, como a indicar alguma coisa que houvesse seguido para muito longe, para além de todos aqueles matos e rios; e balbuciou, deixando-o cair pesadamente, como se tivesse erguido um grande peso: ‘Amigos’ ”.

O texto acima foi lido pelo autor no lançamento do livro “Euclides da Cunha – Esboço Biográfico” (Companhia das Letras, 352 págs.), de Roberto Ventura, organizado por Mario Cesar Carvalho e José Carlos Barreto de Santana.

terça-feira, maio 15, 2007

Mark Twain - Tom Sawyer


Tom Sawyer
Mark Twain
Os livros de Samuel Langhorne Clemens (o verdadeiro nome de Mark Twain) são marcados em sua maioria por um tom leve, divertido e humorado. O seu humor, no entanto, não é tão simples como pode parecer á primeira vista. Quase sempre é uma critica feroz e satírica dirigida à sociedade norte-americana em sua fase de formação como país independente, não só física como culturalmente. Twain ajudou a montar uma literatura autenticamente norte-americana, junto com um Natanhiel Hawthorne ou Herman Melville Recolhia histórias, prestava atenção nos detalhes, fantasiava, moldava uma mentalidade, fixava-se no folclore. Mas, não era nada condescendente. Seus personagens mais famosos como Tom Sawyer ou Huckberry Finn são exemplos de uma força de vontade indomável, graça irreprimível, elogio à vida. E, ao mesmo tempo, são acompanhados por uma descrição quase naturalista de tipos de pessoas comuns e ignorantes e um sarcasmo sem contemplações para suas características menos admiráveis. Andamos por ruas e regiões ainda quase selvagens e desabitadas, principalmente ao longo do rio Mississipi.
Pode-se rir ao longo de toda a obra, da primeira a ultima página de “Tom Sawyer”, admirar a estonteante imaginação de Twain, suspirar por uma infância passada que sempre imaginamos ter sido mais pura e simplificada, com todas suas fantasias, brincadeiras e ilusões. Pode-se chegar ao fim e contentar-se somente em considera-lo como um livro divertido e gostoso de ler. Ao leitor um pouco mais atento não escaparão as idiossincrasias, as imperfeições intimas, os conflitos, as contradições pessoais. Os personagens dos livros de Mark Twain podem ser engraçados, mas sempre demarcados por um detalhe a mais, mesmo que adverso. Na prática, é isso que faz com que sejam, ao final de contas, realmente humanos. Reais.
Mark Twain expressa em grau superlativo uma dessas enormes contradições entre obra e autor que são muito mais comuns do que imaginamos. Enquanto seus livros alcançavam um pico de humor e satisfação e sua fama corria solta, sua vida foi marcada por constantes tragédias, problemas de saúde, mortes.
Nascido em 1835, no Missouri, sua infância é fortemente marcada e influenciada pela proximidade e importância do rio Mississipi. Durante vários anos trabalhou como piloto dos barcos que percorriam o rio, conheceu todas as paradas e vilarejos á suas margens, conviveu com todo esse povo ribeirinho, ele próprio sempre fora morador de uma dessas cidades. O seu pseudônimo, aliás, provém exatamente disso: os marinheiros costumavam gritar “Mark Two” para avisar que o rio estava em condições de navegar, significando que a água estava com quatro metros de profundidade. Nos seus termos, quatro metros eram duas braças, por isso o grito: “Marca Duas!”.
Ele tentou ser mineiro em Nevada, mas não deu certo. Sua vocação era mesmo trabalhando nos jornais onde começou como aprendiz de tipógrafo. Começou a escrever contos, crônicas, pequenas reportagens. Seu estilo bem-humorado mesclado com um forte sarcasmo e retratando a vida cotidiana fez enorme sucesso. Outra faceta marcante eram as conferências: era um conferencista brilhante proporcionando verdadeiros shows populares, requisitado constantemente, apesar de cobrar caro pelas suas apresentações. Seu primeiro livro foi publicado em 1867 e todas as suas obras venderam muito bem. Fundou sua própria editora em 1884. O clássico “Tom Sawyer” foi lançado em 1876, firmando ainda mais, se possível, sua popularidade.
Isso, por um lado. Por outro, as dívidas sempre o perseguiram, apesar do dinheiro que recebia do seu trabalho; houve a doença que por muito tempo, acometeu sua mulher que, entre muito sofrimento, obrigou-os a ficar separados nos últimos momentos de sua agonia. Seu filho Langdon havia morrido somente com dois anos de idade e sua filha mais amada, Livy, morreu na banheira por causa de um ataque epiléptico enquanto tomava banho. Sua editora dura apenas dez anos e ele é obrigado a cada vez mais trabalho, mais artigos, mais conferências pagas para poder cobrir suas dívidas.
O impressionante é o como tenha podido, entre tantas turbulências, escrever uma vasta obra e com tal qualidade. Em 1885, publica o outro clássico, a continuação de “Tom Sawyer”, “As Aventuras de Huckberry Finn”, por muitos considerada sua obra máxima.
Deixemo-nos guiar pela inteligência e as artimanhas de Tom e a sede absoluta de liberdade do seu melhor amigo Huck, ao sabor da corrente do Mississipi, entre brincadeiras de barco de pirata, primeiros namoros, e um assassinato no cemitério.

Claudinei Vieira - Desconcertos

Nota: Tom Sawyer tem várias publicações no Brasil. Ediouro, Nova Cultural, Scipione, Martin Claret, Melhoramentos, Ática, Nacional, Objetiva, etc.

sábado, maio 12, 2007

O espírito inquieto de Pasolini


Alì dos olhos azuis
Píer Paolo Pasolini
Berlendis Editores

O livro “Alì dos Olhos Azuis” reúne 20 textos escritos entre 1955 a 1967 pelo autor e cineasta italiano
O “Inferno” de Dante guarda uma inscrição na sua porta de acesso: “Deixai toda esperança, vós que entrais”. São as mesmas palavras proclamadas pela prostituta Amore ao alertar a inocente Stella sobre os perigos da profissão, ambas personagens do conto “Accattone”. Poderia se falar o mesmo antes de avançar no universo literário do escritor, poeta e cineasta italiano Pier Paolo Pasolini. Grande parte de seu legado tem como ambiente os cantos mais sórdidos de Roma e revela as peripécias de personagens desesperançados, em luta pela sobrevivência nas periferias da cidade.
Ler seus escritos é flanar pelas ruas com “cheiro de esterco”, percorrer vielas e observar o “horizonte embebido de imundície”, perambular pelas margens do rio Tibre, cujas águas, segundo Pasolini, são de um “verde ácido e podre”. E terminar o dia com o sol se pondo “vermelho como as bochechas de um tísico”. Cada personagem criado pelo escritor –seja ele uma prostituta, um cafetão ou o jovem que trabalha no abatedouro- carrega uma infância corrompida e uma esperança limitada de ascensão social.
A editora Berlendis e Vertecchia acaba de lançar o livro “Alì dos Olhos Azuis”, uma coletânea rechonchuda de 640 páginas (R$ 75), com 20 textos heterogêneos -de poemas a novelas- produzidos pelo escritor entre 1950 e 1965. A princípio, o escritor está mais preocupado em tecer estudos sociológicos de teor erudito, como em “Recortes de Noites Romanas” (1950) e “Estudos sobre a Vida em Testaccio” (1952). Aos poucos, Pasolini infiltra-se em situações mundanas, para construir histórias mais simples e cativantes. É o caso das sagas de Accattone e Mamma Roma, publicadas nos anos 60.
Na nota de introdução, um dos quatro tradutores envolvidos no projeto, Maria Cristina Pompa, esboça o caráter dos textos de Pasolini e traça o perfil da cidade de Roma retratada pelo autor. “A geografia pasoliniana da miséria e da marginalidade não pára nos limites da periferia, mas penetra e violenta os lugares consagrados da Roma do cartão-postal, junto com seus borgatari que à noite invadem a Cidade Eterna que nunca lhes pertencerá”, escreve.
O termo “borgate”, usado pela tradutora, diz muito a respeito do universo pasoliniano. Refere-se aos conglomerados de casas populares, comuns nos anos 50 e 60, localizados na extrema periferia de Roma. Pasolini fala muito dos moradores dessas habitações. No texto “Notas para um Poema Popular”, faz uma espécie de crônica social:
“No garoto da periferia há muito menos elegância, e muito mais delinqüência em um sentido menor dessa palavra. O impulso de suas reações é muito mais limitado e elementar: mais tacanho o seu modo de interpretar. É capaz de piedade muito menor. Não que haja nele pouca vida moral, simplesmente não tem nenhuma.”
Mais adiante, completa: “É necessário recordar que vive nos chamados ‘casebres’, casas para despejados, onde não há diferença entre o piso e a terra batida das ruas sujas, dos patiozinhos: ou em lotes mais nus que prisões. Tem um pouco dos fenômenos neuróticos de quem vive em um campo de concentração”.
Nos tipos retratados por Pasolini, inexiste uma noção bem definida de lealdade ou ao menos ela é subvertida no convívio entre malandros. Quando três comparsas, em “A Brava Noite”, tentam tirar proveito das putas com quem negociam uma relação, acabam sendo roubados por elas, que metem a mão no bolso e pegam toda a grana deles. Em “Accattone”, o personagem principal também passa a perna em amigos, ao tramar uma situação para não ter de dividir o macarrão com outros quatro colegas. Num dos diálogos do conto “A Brava Noite”, dois amigos discutem:
“- Pois é! A gente faz o que pode! O mundo é dos esperto!
- Você tem razão. Enquanto os trouxa existir, os esperto vão se dar bem!”.

É algo parecido com a esperteza criolla dos argentinos ou o jeitinho brasileiro. A lei é se dar bem, tendo jogo de cintura para sobreviver, mesmo que seja às custas de atitudes condenáveis. Quando Accattone –é o apelido do protagonista que significa mendigo– apaixona-se por Stella, ele promete presenteá-la com um par novo de sapatos. A única saída que encontra para conseguir dinheiro é furtar a correntinha de ouro do próprio filho Iaio e vendê-la depois.
Num texto de 1954, intitulado “Puta”, Pasolini nos mostra a história de migrantes napolitanos em busca de melhores condições de vida em Centocelle, região ao extremo leste de Roma. Nannina é uma garota ingênua que se muda com os três irmãos para a periferia da capital italiana. Passa a morar com a numerosa família de Mario, com quem ela acaba se casando. É nesse ambiente tumultuado e miserável que Nannina vai sonhar com uma nova vida. A partir dessa esperança misturada com ilusão, Pasolini explora com muita honestidade o sentimento típico dos “borgatari”.
Uma esperança que serve apenas como meio de subsistência, mas que poucas vezes permite uma ascensão social efetiva. Reforça-se a idéia de uma sociedade estamental, fendida e desigual. São pessoas condenadas, com uma condição predeterminada e privadas de livres escolhas. “Quando a gente precisa, não escolhe, basta trabalhar...”, fala Stella para Accattone. Pasolini escreve sobre a heroína Mamma Roma -encarnada no cinema pela atriz Anna Magnani- quando ela reclama da postura do filho para Carmine, o cafetão. “Mamma Roma está entregue ao seu choro de animal: a sua fúria, mais que contra Carmine, é contra a vida, o destino. Não pode fazer outra coisa senão se desesperar. Está completamente impotente e agoniza de dor”.
Apesar do destino trágico, as personagens de Pasolini sempre parecem ostentar certa dignidade em se manterem de pé dia após dia e demonstram-se suficientemente calejadas para suportar a batalha do cotidiano. Em “Noite no Externa Esquerda”, o autor nos mostra a infância de Rafele, um menino que aos 10 anos perde o pai na guerra e vende seu corpo para se sustentar:
“Ao redor do fogo aceso por Rafele e pelos companheiros, dentro de uma velha assadeira quebrada, mas ainda nobre, fica ali indiferente, velho para qualquer malandragem, já quase cético e irônico, com o rosto ainda mais escuro pelo frio. As mãos no bolso fazem com que o ventre se estique -o ventre em que já pesa a potência viril e facciosa de um rapaz de vinte anos- e puxando as casas dos botõezinhos, quase se fende no seu segredo de animalzinho com o abdômen desenhado com a pungente doçura de uma estátua de Gemito”.

A morte trágica em Ostia
Quando encontraram o corpo de Pier Paolo Pasolini desfigurado devido a golpes de bastonete num campo de futebol de terra batida em Ostia, periferia de Roma, a suspeita de atentado político foi grande e imediata. O escritor italiano havia pertencido ao Partido Comunista e escrevia fortes críticas publicadas no jornal “Corriere della Sera” contra os principais partidos burgueses da Itália.
No entanto, a confissão de culpa veio logo. O garoto de programa Pino Pelosi, na época com 17 anos, confessou à polícia que havia matado Pasolini com golpes de porrete. Contou que na noite de 1º. de novembro de 1975 tinha saído no carro do escritor para dar uma volta. Depois de comerem na Trattoria Biondo Tevere e passarem por um posto de gasolina, haviam seguido até um local distante, isolado de possíveis testemunhas. Pararam no campo de futebol e começaram a bater boca, porque Pelosi não concordava com as exigências de Pasolini quanto ao programa.
Iniciou-se uma briga, os dois deixaram o carro e trocaram pontapés no campo de futebol. Pelosi pegou um bastão e investiu contra Pasolini. Ainda de acordo com seu depoimento, teria pegado o carro do escritor e passado involuntariamente sobre o corpo dele na volta. Após a declaração de culpa de Pelosi, a polícia rapidamente arquivou o caso, sem aprofundar as investigações, o que suscitou a desconfiança dos advogados do escritor.
Passados 30 anos da morte de Pasolini, Pino Pelosi apareceu no programa “Ombre sul Giallo”), uma espécie de “Linha Direta” da emissora italiana RAI. E, após a exposição dos fatos pela apresentadora Franca Leosini, disse que havia mentido à época sobre as circunstâncias da morte de Pasolini. Declarou-se inocente e divulgou uma nova versão para o assassinato. Revelou que ambos teriam sido abordados por três homens barbudos enquanto passeavam no carro de Pasolini e que dois deles teriam arrancado o escritor do volante e o agredido fora do carro.

A vida nas “borgate” de Roma
Pier Paolo Pasolini nasceu em Bolonha, em 5 de março de 1922. Seu pai era tenente da infantaria italiana, e a mãe, professora de primeiro grau. Pasolini sempre declarou uma afinidade maior com a mãe, a conduta muito rígida e o comportamento violento do pai impediram uma aproximação entre eles. Com 17 anos, matriculou-se no curso de letras na Universidade de Bolonha. Neste período, publicou seus primeiros poemas no dialeto friulano, uma variação regional do italiano.
Em 1945, concluiu a faculdade de letras e começou a lecionar como professor de ginásio. Dois anos depois, ingressou no Partido Comunista Italiano (PCI), do qual já faziam parte intelectuais do porte de Luchino Visconti e Antonio Gramsci.
Homossexual assumido, Pasolini teve problemas com o recato moral da época em que viveu. Acusado de corromper menores, foi expulso do Partido Comunista sob a acusação de “desvio moral” e afastado de seu cargo de professor.
Para se distanciar das repreensões, mudou-se para Roma com a mãe, onde passou a dar aulas de literatura e prestar serviços como crítico cultural para uma rádio local. Seu primeiro romance, “Ragazzi di Vita”, foi publicado em 1955. Junto ao trabalho de escritor, colaborou escrevendo roteiros para diretores como Federico Fellini e Bernardo Bertolucci. A partir de 61, Pasolini resolveu filmar suas próprias histórias: “Accattone” foi seu primeiro longa-metragem, seguido de “Mamma Roma”.
Acostumado a freqüentar os bairros da periferia de Roma -Testaccio, Trastevere, Centocelle, Primavalle-, Pasolini transferiu para as suas histórias o que via diariamente no comportamento das pessoas que habitavam esses locais. Encontrou nas “borgate” o centro ideal do seu mundo poético. Ao ser perguntado sobre a preferência pelos tipos marginais, retrucou que era a única forma de buscar a inocência do ser humano e uma relação mais pura com o mundo, menos infectada pelo formalismo burguês.
No fim dos anos 60, jogou no triturador os valores da família burguesa no seu filme mais conhecido, “Teorema”, de 1968. Foi talvez o período de maior ousadia do diretor. Após filmar duas tragédias gregas, levou às telas três clássicos da literatura universal -“Decameron”, “Os Contos de Canterbury” e “As Mil e Uma Noites”-, pacote que ficou conhecido como a “Trilogia da Vida”.
No mesmo ano em que foi assassinado, havia realizado uma de suas obras mais vigorosas e polêmicas no cinema, “Saló, ou os 120 dias de Sodoma”, adaptação dos escritos de Marquês de Sade, cujo alvo era o ressurgimento do fascismo na Itália.
Mesmo após a trágica morte em 1975, o espírito de Pasolini ainda persiste, inquietante, nas páginas de seus livros, tal como nas palavras do personagem Ruggeretto, no conto “A Brava Noite”: “No dia que eu morrer, quero que me botem dentro de um carrinho e me descarreguem lá na frente do portão do cemitério, quero feder mesmo depois de morto. Mesmo depois de morto, quero incomodar as pessoas!”.
Fernando Masini – Trópico

quarta-feira, maio 09, 2007

Vargas Lhosa - Travessuras da menina má

Travessuras da menina má
Mario Vargas Llosa
Ed. Alfaguara
tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht


Lima na década de 50, Paris na de 60, Londres na de 70 e Madri na de 80. A vida de Ricardo Somocurcio, personagem principal de "Travessuras da Menina Má", pelo menos do ponto de vista histórico, foi bastante privilegiada.
Conheceu a expansão, o auge e a derrocada das utopias do século 20. Mas sempre como alguém vindo de um país distante, que estava longe de ser o protagonista dos fatos.
Pois foi assim que Mario Vargas Llosa, 70, autor desse romance semi-autobiográfico, viu a história passar diante dos olhos. E, agora, por meio de uma trama de amor que atravessa quatro décadas, o peruano mostra como o idealista que chegou a apoiar a luta armada foi se transformando num ferrenho crítico da esquerda.
"Travessuras da Menina Má", que já vendeu mais de 40 mil exemplares no Brasil e habita as listas de livros mais vendidos desde outubro, quando foi lançado, narra a história de Somocurcio, um peruano cuja única ambição é morar em Paris. Só que sua vida nunca será tranqüila, pois uma mulher -que muda tanto de nome e de disfarce que passamos a conhecê-la só como Menina Má- aparecerá e desaparecerá de tempos em tempos, condenando-o a uma paixão longeva e destruidora.
O selo Alfaguara, da editora Objetiva, comprou os direitos de publicação da obra de Vargas Llosa revista pelo autor. Em 2007, serão lançados "A Cidade e os Cachorros" (1962) e "Pantaleão e as Visitadoras (1972)", dois de seus principais livros.

Sylvia Colombo – Folha de São Paulo

terça-feira, maio 08, 2007

Portinari - Mulheres e criança

terça-feira, maio 01, 2007

"300" - O deleite da barbárie e o gozo da carnificina


Fui ver "300" em decorrência de dois fatores: a necessidade de comentar o filme profissionalmente e de conhecer seus elogiados feitos técnicos, na adaptação do gibi (ou, mais pernosticamente, graphic novel) de Frank Miller. Estou escolado nas estratégias sujas do marketing cinematográfico e sei que de nada que faça barulho publicitário muito intenso se pode esperar muito hoje em dia, mas, ainda assim, Cinema é arte & indústria e mantenho a cabeça sempre aberta para, no meio do lixo industrial, do "mainstream", descobrir alguns encantos e criações autênticos. Nunca esquecer que gente que hoje nos parece admirável e supremamente artística, como Billy Wilder e Alfred Hitchcock, era o "mainstream" de décadas distantes. Também falou-se tanto do bizarro rei Xerxes interpretado por Rodrigo Santoro que eu tinha que dar uma olhada nisso.
Mas o filme me surpreendeu foi por outras razões, que, na verdade, nem são novas, mas continuam me inquietando e me espantam que não inquiete - ou não pareça inquietar - muito as pessoas. Já se viu algo tão sádico, tão militarista, tão preconceituoso, tão machista e tão cruel quanto esse filme?
"Sin City - A cidade do pecado", adaptação anterior de Frank Miller, tinha todo esse visual de gibi e encantava o público por razões idênticas, parece. Tinha, em seu miolo, uma inquietante putrefação no gozo estético da violência e da decomposição moral. Mas, "300" vai mais longe. Parece uma apoteose do gozo homossexual-machista pelas camaradagens masculinas que celebram a luta e a morte. Tudo é uma glorificação incessante do machismo e, quando pretende disfarçar, cai no cinismo, num sentimentalismo da espécie mais viscosa. Como continuo achando que não há glória maior que viver e que o amor é melhor que a guerra, acho que esse tipo de filme, numa época de tão disseminada violência como a nossa, é um incremento ao Horror, não aceito a produção, que é formalmente interessante, senão como a reiteração de uma coisa tão pavorosa como o "viva la muerte" do franquismo que me parece dominar o ar e contar com a complacência de muita gente displicente com o caos e a desgraça.
Temos o rei Leônidas interpretado por Gerard Butler, que até aqui não havia convencido a ninguém como ator - mas, até que nem era tão ruim em "O fantasma da ópera ", de Joel Schumacher, vivendo o próprio, e em "Meu querido Frankie", produção inglesa meio despercebida em que mostrava sensibilidade.
Bem, com "300" Butler vira astro. E o curioso é que o filme é tão obsessivo na exaltação à masculinidade guerreira - a bela atriz que faz a rainha Gorgo não oferece muito interesse para o diretor, parece - que Butler aparece nu numa cena de "alcova conjugal", o corpo anatomicamente perfeito, nádegas banhadas pela lua, deixando bem clara a linha de erotismo adotada. O diretor, claro, parece nos dizer que admirável ali é o rei, o marido, o senhor todo fálico. Nisso, há até uma certa coragem, já que, em geral, o cinema comercial, quando nos dá um plano de um casal na cama, em geral prefere deter-se é na nudez da mulher.
Não haveria problema nenhum com a linha erótica adotada se isso fosse mais honesto - se o filme não oferecesse, isto sim, a preferência homossexual embrulhada no álibi e na sublimação das lutas, extremamente violentas e cruéis. O filme diz o tempo todo que macho que é macho, mata, que a glória da macheza consiste em ser um verdadeiro rinoceronte blindado que passa sobre tudo e não deixa rastros. A celebração de Átila, não deixando um broto de grama por onde quer que passe... Velha história, mas é uma história terrível, que a gente está cansado de conhecer, e cujos efeitos venenosos sem dúvida continuam fora do cinema, nas cabecinhas adolescentes que já saem da sala de projeção convencidas que há algo decididamente glamouroso em decepar, esquartejar, ulular, berrar e ser o pior dos animais - esse, do sexo masculino - que habita o planeta.
As pessoas são muito cínicas em relação ao efeito da arte cinematográfica, ou outra, sobre as cabeças juvenis - acham, por excessiva liberalidade e complacência, que isso não se estende aos atos anti-sociais que vemos cometidos ininterruptamente por jovens de todas as classes sociais. Como não? Em que mundo estamos? O tecido social em que toda arte se insere é, então, indiferente a ela? Nada ecoa, nada reflete em nada?
Rodrigo Santoro, como o rei persa Xerxes é, sem dúvida, o "gay" assumido do filme, ou o diretor quer que o vejamos assim. Por isso, surge num ridículo carro alegórico e já vai pondo os braços lânguidos sobre os ombros do "glorioso" Leônidas vivido por Butler.
Os espectadores riem, e com razão. Mas, Santoro é bom ator e empresta dignidade a esse papel ingrato, salvando-o como pode.
Só que o diretor continua achando que macho digno é aquele que sublima a homossexualidade em luta e morte. Prazer, para homem, é, como nas hordas que ocupam os estádios de futebol, brigar, matar, ulular, sair vantajoso sobre os corpos abatidos. Quando aparece a corte do rei Xerxes, temos aquele tipo de devassidão à Sodoma & Gomorra dos velhos filmes "bíblicos" da mais careta Hollywood, com lésbicas se beijando e Xerxes oferecendo prazeres proibidos para um sujeito deformado com alma de traidor, em chantagem emocional, para destruir as hordas do Bem simbolizado por Leônidas. Aliás, todos os inimigos de Esparta são assim, ou negros ou "gays" assumidos e bizarros, ou sujeitos cobertos de lepras e deformações. São, num óbvio simbolismo, os "asiáticos", os horrendos "orientais" e "estrangeiros" que a América de Bush tanto teme e sai matando pelo mundo fora. São os inimigos do macho branco americano, aí simbolizado por Leônidas e sua tropa.
O delírio da violência como gozo está lá - se os "bandidos" se comprazem em erguer uma árvore de cadáveres, os "mocinhos" fazem muralhas de corpos humanos. Maniqueísmo mais grosseiro, impossível. Se você está do lado do Bem, do Lado Certo, tem direito a cometer todos os homicídios, com os mais variados requintes de crueldade, que quiser. Claro que, nos cinemas, essas cenas impressionam os jovens a ponto de ulularem de prazer. Que daqui a uns tempos estejam por aí, com a maior naturalidade, eliminando gente deformada, homossexuais e outros - segundo a lógica das brigadas do preconceito - não deveria constituir surpresa nenhuma para os complacentes.
Há uma homossexualidade que fetichiza a violência, que idolatra as descomunalidades fálicas, uma homossexualidade masoquista e doentia, sim, mas há também uma homossexualidade que prega a ternura entre iguais - coisa que o cinema "mainstream" do tipo de "300" parece odiar passionalmente. É indecente, para filmes desse tipo, que dois homens se amem de fato, e, aliás, o público vaiará, se isso acontecer (um gesto mais terno entre dois homens é um gesto desprezível para o público estupidificado) - não sendo jamais indecente que se matem, porque aí estarão dando expansão, com lanças ou o que for, a uma masculinidade das mais legítimas. E depois poderão voltar - ou não - para casa, para os braços de suas "pequenas Helenas". A rainha Gorgo, no final de "300", numa cena de um sentimentalismo asqueroso, passa o bastão da estupidez guerreira de Leônidas (simbolizada numa corrente) para o filhinho, com música pegajosa, para "comover". Subjugada pela violência machista, tornou-se uma adepta daquilo. Transmite ao menino todo esse veneno, como se amor fosse.
Para antídoto a filmes como esse, pelo amor dos céus, que se ponham à porta dos cinemas DVDs do maravilhoso e anti-bélico "Glória feita de sangue", de Stanley Kubrick. Nele, a guerra, tal como é - uma insanidade estúpida sem desculpa alguma a não ser o incremento da vaidade das altas patentes militares - aparece, numa aula deslumbrante de Cinema e honestidade moral e filosófica, pelo olhar de um aturdido e impotente militar justo e pacifista vivido por Kirk Douglas.
É engraçado que as pessoas lamentem tanto a violência e a barbárie que está nas ruas e não percebam que ela impregna nossa cultura atual, por conta desses monumentos de perversidade e anti-humanismo que o cinema americano e graphic novels e vídeo-games vêm erguendo. Não há inocência alguma nessa forma de entretenimento. O que ela prega é o fim do mundo civilizado.

Chico Lopes
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