quinta-feira, agosto 31, 2006

Morreu Naguib Mahfouz


Naguib Mahfouz, o único escritor de língua árabe a obter o prêmio Nobel de Literatura morreu nesta semana aos 94 anos, será enterrado hoje, com honras, no Cairo, cidade onde nasceu em 1911. Ele começou a escrever aos dezessete anos e ficou famosa, sobretudo, a sua trilogia do Cairo, que compreende os romances Entre dois palácios, Palácio do Desejo e O Açúcar.

Mahfouz, que sempre defendeu a tolerância, foi vítima em 1994, de um atentado por parte de um islamista fanático, a razão teria sido a publicação de seu livro, Les Fils de la Medina, julgado blasfematório pelos religiosos. Sobreviveu, mas perdeu o movimento da mão direita e passou a ditar seus textos.
Uma de suas frases:

« La vie est sage de nous tromper, car si elle nous disait dès le début ce qu'elle nous réserve, nous refuserions de naître. »
Numa tradução livre:
« A vida é sábia em nos enganar porque, se nos dissesse desde o início o que ela nos reserva, nós nos recusaríamos a nascer. »

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terça-feira, agosto 29, 2006

A prosa com arte de Chico Lopes




















Dobras da noite
Nó de sombras

Chico Lopes

Ed Instituto Moreira Salles
O primeiro livro de contos de Chico Lopes – Nó de Sombras – saiu em 2000. O segundo – Dobras da Noite – se publicou em 2004. São narrativas longas, se comparadas aos minicontos que vêm sendo publicados no Brasil há algum tempo. No entanto, não se deve dar importância ao número de páginas de uma obra. Importa tão-somente o valor literário dela.
O fôlego do contista o leva a longas caminhadas pelas cidades de seus dramas. Quer dizer, o faz conduzir seus personagens por ruelas, becos, córregos, chácaras, bairros periféricos. Essa cidade não tem nome explícito e pode muito bem ser Poços de Caldas, Minas Gerais, onde vive o escritor há alguns anos, ou a cidade onde nasceu, Novo Horizonte, interior de São Paulo, onde viveu por quarenta anos. Há vagas referências aqui e ali a nomes de logradouros: Rua Penha Lopes, Praça Coelho Neto, Rua Décio Paiva. Mas isto não indica nada. Mesmo quando um personagem diz: “só vejo o dedo que aponta para os trilhos inúteis da Mogiana”.
E porque perambulam pela cidade em fuga ou em busca de algo, os seres de Lopes se perdem no tempo. Nunca se sabe quanto tempo decorreu do primeiro ato ao último. Veja-se “Parque dos Cães”: o ser fictício sem nome explícito, dito simplesmente “ele”, como quase todos, conta como matava cachorros loucos com vara de guatambu. Conta a pessoas que esperam o ônibus. No segundo parágrafo, “ele” e os outros se encontram no veículo. O narrador interrompe a narração e, como se fosse um cameraman, se volta para outro tempo, outro lugar e outro personagem. Inicia-se mais um bloco narrativo com a deuteragonista dita “ela”. E assim flui a narrativa. Nunca em linha reta, sempre em cruzamentos, interseções, linhas oblíquas, tortas, labirínticas. Como o são os seres, quase todos maníacos, obsessivos, sombrios, solitários, bêbados, desocupados, “apostadores do bicho da padaria” e fracos. Um prepara bolinhas de carne com veneno para matar cachorros. Outro, sentindo-se pequeno, frágil, arquiteta durante anos a morte do amigo forte, musculoso, bonito. “Eu estava entre os trôpegos, os desajeitados, minúsculos, de ímpetos confusos, gestos e passos de quem não está exatamente onde está, de alguém mal acolhido pelas coisas” (“Um corpo no rio”). Há o que via sombras em movimento e “tinha um rancor difuso contra toda a raça masculina nas ruas” (“Do outro lado”). Uma variedade enorme de seres oblíquos, tortos, mal-ajambrados, feitos de aberrações.
Com seres tão (não digamos abjetos) malcriados, malcuidados, como os monstros da literatura (Frankenstein?), não pode o leitor esperar outra leitura que não seja a da tensão constante. Como nas composições de Poe. Leia-se “Nos fundos”. Um homem solitário (os poucos casais vivem em constante desunião) recebe em casa um mendigo e o hospeda: “um saco às costas, uma barba de meses”. Como é possível alguém hospedar, de graça, um desconhecido, um mendigo? Virtude cristã? Homossexualismo? Loucura? Fascínio? Que fascínio? Num segundo passo (quadro), “ele” (o dono da casa) constata que “o fascínio passou a transtorno quando descobriu que seu hóspede não dormia”. Quem era esse personagem tão estranho? “Vivia muito só na casa, depois da morte do pai, entregue a leituras, incapaz de procurar um trabalho, saindo à noite apenas para passeios inúteis pela cidade, andanças sem rumo às quais imprimia um passo enérgico, como se tivesse um objetivo bem definido”. Assim também são outros seres da ficção de Lopes. Mas como terminará o conto? Qual a relação que nascerá dessa estranha amizade? E o leitor vai se enrolando na trama, preso à tensão, incapaz de atinar com o desfecho. Como nas demais histórias dos dois livros. A busca incessante da mulher do vestido lilás pelo solitário do bar deixa o leitor quase em pânico. Quem seria aquela mulher? Até o desfecho trágico.
Os seres fictícios dos dois volumes são quase sempre solitários. Em “A sala acesa”, o homem diante do copo de cerveja, a ouvir conversas dos outros, dos grogues. Os próprios narradores lembram deles: “Na esquina onde morava um homem solitário (...)”.
As criaturas de Chico Lopes estão ora em fuga do fracasso, de outro, de si mesmos, ora em perseguição, em busca de alguém, de algo, da vida, da felicidade, do sucesso. O protagonista de “Uma das mil noites” constata: “Não haveria mais para onde fugir”. Os seres de “O clarão” vivem perdidos: o menino se agarra à mãe como tábua de salvação num lar feito de inquietações e promete matar o pai, se ele continuar a maltratar a mãe; esta, “forçada a trabalhar como animal, endurecera, perdera a beleza”; o pai sempre a beber, a viajar, a ameaçar o filho e a mulher; o irmão do pai (personagem emblemático), a desenhar a vida, uma mala repleta de desenhos, doente.
O sexo é visto pelos personagens de Lopes ora como pecado, sujeira, ora como transgressão. Coisas da Besta, como diz alguém de “Parque dos cães”. Sempre a arder de desejo, porém a se recriminar: “seu olhar acabava resvalando nas pernas oferecidas da Nancy”. Ao chegar à casa, ouvia “risos e sons parecidos a chupações lá fora”. Por isso, a necessidade de matar cães envenenados. Sua vingança. Beatriz, de “A gaveta”, se diz apaixonada e sofre. (...) “estranhava a própria voz: era e não era a sua. Parecia-lhe deformada, involuntária – a voz de uma Beatriz maligna” (...) O narrador adulto de “A fresta” lembra episódios da infância, uma mulher de nome Aurora, freqüentadora da “pequena vida noturna da cidade”. Os meninos se dirigiam, à noite, à casa da moça para espiá-la pela fresta da janela. Em “Trio” ocorre o inverso do famoso “triângulo amoroso”. Na história, há dois homens e uma mulher, num estranho relacionamento. Em “A many splendored thing”, o adolescente Vítor tem desejos pelo professor, com seu “calção perturbador”. O protagonista de “O vestido lilás” se masturba no banheiro de um bar, toda vez que vê a misteriosa mulher do vestido lilás.
Observa-se nas narrativas de Chico Lopes a citação constante de trechos de canções populares, bem como a menção a filmes de Hollywood. Em “Parque dos cães”, uma das personagens põe na vitrola um disco para ouvir Andy Williams e Doris Day. Mais adiante, o narrador transcreve uns versos da primeira canção e menciona Audrey Hepburn e George Peppard. Em “O Clarão”, o narrador lembra a infância, quando via no cinema Sara Montiel e ouvia Paul Anka nos parques de diversão. Em “A fresta”, a moça Flora “fala com uma amiga de um filme de Debbie Reynolds”. Há em “O manco” citação de trecho de uma canção gravada por Nelson Gonçalves. Em “A many splendored thing”, o menino se lembra do filme Suplício de uma saudade e de uma foto de William Holden. Mais adiante outra citação de uns versos de outra gravação de Nelson.
A presença de meninos (nunca de meninas) nos contos de Chico Lopes é freqüente. Alguns são narradores, embora já adultos que relembram a infância. Outros são seres secundários. Em “Um corpo no rio”, o narrador adulto lembra episódios da infância, como no dia em que tomavam banho no rio e pensou em matar, pela primeira vez, o líder do grupo. Talvez por inveja, porque o pênis do outro era o maior. Talvez por vingança, porque o outro o humilhara, o despira na frente de todos.
Uma das mais pungentes narrativas do escritor paulista é, sem dúvida, “O clarão”, narrado por um menino. Os outros personagens são o pai, a mãe e o tio. O primeiro é retratado como um bruto e a quem o menino jura matar, caso continue a maltratar a mãe. A mãe é figura apagada, embora seja a sua única proteção. O tio é a figura central da trama. Talvez um louco, que vive a retratar o mundo ao seu redor, as pessoas. “Um homem curiosamente frágil e triste”.
Em “A fresta”, o narrador adulto lembra episódios da infância. Em “O recado”, outro menino fraco, obediente ao irmão mais velho, a quem admirava pela virilidade, pela musculatura. O menino de “Belmiro agoniza” é angustiado. O pai nunca lhe pedia nada, só ao mais velho. Até o último momento do pai. “Desde sempre invisível, ele agora o era ainda mais”. “As vozes” é conto soberbo pela introspecção da alma do garoto. Outro personagem infantil retratado por Lopes é o narrador de “Cavalo e sombra”.
O contista utiliza as mais variadas e modernas técnicas de narrar. Seus diálogos são essenciais e curtos. Entretanto, porque a maioria dos personagens vive em solidão, isolados, as narrativas são constituídas quase que somente de narrações. Não exatamente de fatos, episódios. Mesmo nos desfechos, quando comumente os escritores se esmeram em narrar em detalhes a cena final, mesmo aí Chico Lopes é cauteloso ou sutil. Leia-se o final de “Parque dos cães”. Os verbos no pretérito (brilhou, demorou a entender, começava a ser rasgada, quis afastar, teve a mão torcida, ouviu um palavrão, reconheceu a voz, viu-o abaixar as calças, etc.), em orações curtas, conduzem o leitor (ainda em estado de tensão) ao clímax.
Sem querer filiar a prosa de Chico Lopes à de outros ficcionistas (Cornélio Penna, Lúcio Cardoso, Clarice Lispector, Poe, Dostoievski, Henry James, de quem é tradutor), é impossível não ver em sua obra “o homem com seus problemas interiores, sua angústia, suas meditações sobre o destino, a morte, o além”, como observou Afrânio Coutinho na literatura de Cornélio Penna. E, sem querer trazer à tona a velha questão “literatura social” em oposição a uma “literatura espiritualista”, talvez as peças de Chico Lopes representem a volta de uma literatura menos “realista” ou “naturalista”. Uma literatura muito mais próxima da arte do que da notícia.



Nilto Maciel – Vasto abismo

sábado, agosto 26, 2006

A ressurreição de Machado De Assis e o garoto que veio de barca


Euclides da Cunha definiu como “tímidas” as pancadas que escutou sendo dadas na porta de entrada da vivenda de número 18, na rua Cosme Velho, no bairro do mesmo nome, no Rio de Janeiro, ao cair da noite de 28 de setembro de 1908. Abriram a porta. Surpresa! Era um garoto, um jovem que não aparentava ter 18 anos. Desculpou-se meio sem jeito e disse que desejava saber como estava o dono da casa. “Você é vizinho ou parente dele?” - alguém indagou. O garoto balançou a cabeça para dizer que não, e mais do que isso, deixou claro que ninguém o conhecia ali, acrescentando: “sou apenas um leitor”. Em seguida, encheu-se coragem e perguntou se podia ver Machado de Assis. Houve um certo constrangimento, ou pelo menos nenhum dos membros da Academia Brasileira de Letras que ali estavam – Coelho Neto, Graça Aranha, Raimundo Correia, José Veríssimo além de Euclides e outros – tomou a dianteira para autorizar ou negar a entrada do estranho. Foi o enfermo que estendido numa poltrona almofadada num quarto ao lado da sala de visitas e reunindo forças sabe-se lá vindas de onde, balbuciou para que deixassem a voz que perguntava por ele vir vê-lo.
O encontro entre ambos foi breve. Não trocaram palavra. O rapazinho morava do outro lado da Baía de Guanabara. Não avisou aos seus familiares onde pretendia ir. Saíra de casa com o sol ainda reinando e chegara ao Cosme Velho já com a fria noite adentrada. Viera de Niterói para o Rio de Janeiro na barca da Cantareira – empresa que na época fazia o transporte marítimo ligando as duas cidades irmãs. Saltara no Cais Pharoux, na Praça XV, e como a grana era curta utilizou a chamada “viação canela”, e foi caminhando, caminhando, até o Cosme Velho. Agora estava ali, na presença do escritor que tanto admirava e que antes nunca vira pessoalmente. Então era verdade o que lera nos jornais, o doente estava muito abatido, seu estado de saúde aparentava ser da maior gravidade. O garoto permaneceu em silêncio, pensativo durante uns bons minutos, de repente ajoelhou. Tomou entre as suas as mãos de Machado de Assis, que faleceria poucas horas depois, e as beijou. O acontecimento deve ter marcado profundamente aos poucos que o presenciaram. Um deles, Euclides da Cunha, reportando-se ao fato, escreveu “A Última Visita”, artigo originalmente publicado Jornal do Commercio, em 30 de setembro de 1908, do qual retiramos algumas das informações aqui contidas.
Quando o garoto partiu, José Veríssimo, que o acompanhara até a porta, quis saber o seu nome. Ele o disse baixinho no ouvido do acadêmico. A seguir sumiu na calada da noite.
Apesar de ser um expoente literário, durante décadas pesou sobre Machado de Assis a acusação de ter ser limitado a fazer a chamada arte pela arte, fechando os olhos à realidade existente. Tais críticas se avolumaram e depois da sua morte atingiriam o auge. Com o triunfo dos modernistas, na década de 20 do século passado, o padrão estético e literário sofreu uma autêntica transmutação que significava um rompimento radical com os valores precedentes. Em decorrência, Machado de Assis, símbolo maior da velha arte de escrever, foi cada vez mais sendo estigmatizado à luz do paradigma “obcecado nas letras / alheado do mundo”. E o autor de O Alienista foi tratado por críticos, lustros a fio, como se fora um alienado, como alguém cujas intenções e palavras girassem apenas em torno das letras, sem manifestar qualquer preocupação com os imbricados problemas da sociedade envolvente. Costumava-se dizer que poderia o mundo desabar que Machado de Assis, indiferente, permaneceria enclausurado na torre de marfim.
Caberia ao jornalista Astrogildo Pereira que, em 1922, no mesmo ano da Semana de Arte Moderna, participou da fundação do Partido Comunista Brasileiro, a glória de haver quebrado o encanto das versões existentes sobre o pretenso “alheamento” de Machado de Assis. Com o ensaio “Machado de Assis romancista do 2º Reinado”, redigido em 1939 e publicado como capítulo de livro cinco anos mais tarde (ver “Interpretações”, RJ; Livraria São José, 1944), Astrogildo Pereira fazia justiça ao autor de “ O Alienista”, dando-lhe as devidas dimensões. Ele não fora um beletrista inconseqüente como muitos haviam propugnado e desavisados ainda insistem. Fina ironia combóia suas linhas e embora estas visassem apreender a natureza humana em dimensão universal, sua literatura invariavelmente incide sobre o cotidiano da antiga capital brasileira e sobre a multiplicidade de tipos sociais que nela viviam ou que, provenientes de todos os rincões do país, para o Rio de Janeiro convergiam. Nas páginas de Machado de Assis é o Brasil que vibra, respira e pulula, pois é sempre a realidade nacional e o homem brasileiro que estão postos em questão. Além de outras situações, mil vezes ele descreve as artimanhas da elite em luta pela conquista de poder, riqueza e prestígio; o autoritarismo do patriarca em sua fúria escravocrata; o padecimento dos negros; as profissões, os namoros, as pessoas simples, seus valores e suas agruras para sobreviver; assim como as circunstâncias estruturais onde o casamento por interesse sobrepunha-se ao por amor. Ao fazê-lo, Machado e Assis vale-se de tamanha sutileza que, com certeza, aqueles que o lerem com os olhos desarmados, não terão a oportunidade de bem saboreá-lo, pois a aparente monotonia das situações que descreve estão quase sempre sobre-determinadas pelo tenso jogo das segundas intenções dos atores sociais envolvidos.
Ao estudo pioneiro de Astrogildo Pereira reavivando e resgatando a obra de Machado de Assis, tratando-a como literatura voltada para o vivo e o concreto da sociedade e da alma brasílica, seguiram-se outros como o de José Brito Broca (vide: Machado e Assis e a Política, RJ, Simões, 1957) que coloca um foco de luz sobre a relação dos escritos do bruxo do Cosme Velho com a vida pública nacional, iluminando a questão. Contemporaneamente, há forte grau de consenso em torno grande valor obra de Machado de Assis, tantas são as vezes que ele tem sido apontado como intérprete da nacionalidade e como o maior completo de nossos escritores.
No mais, é de bom alvitre acrescentar que embora vários pesquisadores mencionem, o nome do garoto que numa fria noite de 1909, fez a última visita ao então agonizante morador da rua Cosme Velho - entre outros Francisco de Assis Barbosa, José de Brito Broca, Martins César Feijó, Berenice de Oliveira Cavalcante e Osvald de Andrade - foi Lucia Miguel-Pereira, em seu monumental livro “Machado de Assis estudo crítico e biográfico” (SP, Brasiliana, 1936), quem primeiro o revelou. O garoto que veio na barca chamava-se Astrogildo Pereira, o mesmo que anos mais tarde escreveria “Machado de Assis romancista do 2º Reinado”.

Aluízio Alves Filho - Revista Achegas

Foto Astrogildo Pereira

Beryl Cook

quarta-feira, agosto 23, 2006

Deuses, túmulos e sábios

Deuses, túmulos e sábios
W. C. Ceram

Melhoramentos


Antes, muito antes que o cinema resolvesse glorificar e elevar a status de herói popular um simples professor de arqueologia que se transfigurava em charmoso aventureiro em busca de relíquias pelo mundo, armado somente de chicote e chapéu, tornando-o um ícone da cultura pop do século xx, uma obra percorria o mundo, emocionando e eletrizando a imaginação. Os locais eram desertos de areia, subterrâneos escondidos, ou simples e prosaicos gabinetes de trabalho de intelectuais submersos em livros. Os ‘heróis’ eram professores universitários, lingüistas, gênios teóricos, ou pesquisadores de bibliotecas; quanto muito, um ou outro aventureiro desgarrado. As ‘aventuras’ eram longos e tediosos dias de escavações dedicados a identificar e separar vasos, colunas de paredes, ou limpar a areia dos sapatos. O enredo? Simplesmente, a história da humanidade.
C. W. Ceram foi o responsável para que a arqueologia fosse vista como tão emocionante e empolgante quanto um romance de espionagem ou qualquer filme de Indiana Jones. É um verdadeiro mérito de escritor, já que o próprio autor não era cientista. Era seu propósito apresentar esta história para todas as pessoas, leigos e estudiosos também, mas que tivesse todo o embasamento autêntico. Isto é, não queria que a literatura alterasse fatos, que se inventasse dados ou eventos, para proporcionar maior efeito na leitura. Ele foi atrás de fatos, pois acreditava que eles eram mais do que suficientes para impactar.
O seu livro é a prova cabal de que isso é possível. Lembro das noites passadas em claro, um garoto urbano de cidade grande, com a respiração suspensa e a ansiedade batendo no coração enquanto esperava a conclusão de sábio francês em sua tentativa de decifrar a linguagem de uma pedra com antigas, e aparentemente indecifráveis, inscrições. Participamos da mesma ânsia de Champollion que, quando garoto aos 13 anos, era um prodígio que já aprendia árabe, siríaco, caldaico, coopta, e aos dezoito, persa e sânscrito, e para descansar, se distraia com uma gramática chinesa (... ), só para poder comprovar que o chinês antigo tinha ligação com o árabe antigo. Sua meta, assim como a de tantos outros estudiosos, era conseguir ler o que dizia a Pedra de Roseta. Pois a pedra enganava. Tinha o “tamanho de um tampo de mesa, de basalto negro, com granulação fina, muito dura. Era polida de um lado. Apresentava três inscrições, em parte gastas e apagadas pela fricção da areia que repousara sobre ela durante dois milênios. Dessas três inscrições, a primeira, com quatorze linhas, era hieroglífica, a segunda, com vinte e duas linhas, demótica, e a terceira, com cinqüenta e quatro linhas, grega. Grega! Legível! Compreensível!”. No entanto, por mais que batalhassem, ninguém conseguia fazer corresponder as frases de grego com as frases correspondentes. Champollion foi a pessoa, aquele que conhecia o Egito tão bem quanto um habitante do local, mas sem sair do seu gabinete!
Ou então sonhamos o mesmo sonho de Schliemann que vai atrás de uma mítica Tróia, em uma época quando se acreditava que esta cidade era somente uma lenda, ou uma história bonita contada por Homero. Pois guiado unicamente pelo texto do Homero!, ele descobre não uma Tróia, mas sete!, pois foram sendo construídas uma encima da outra ao longo dos séculos (e, mais tarde, foram descobertas mais duas). A Tróia mais famosa, aquela destruída pelos gregos com o truque do cavalo de madeira, era a segunda ou terceira.
Ou então sentimos o mesmo fascínio e emoção ao abrir a tumba de Tutancamon! Ou ao descobrir o tesouro de Montezuma.
São muitas histórias, muitos os heróis, ardorosamente contadas por Ceram.
Traduzido para vinte e seis idiomas, “Deuses, túmulos e sábios” merece ser lido e relido, e fazer parte da biblioteca de qualquer amante das letras e de aventuras.

Claudinei Vieira - Desconcertos

terça-feira, agosto 22, 2006

A voz do escritor

A voz do escritor
A. Alvarez


Ed Civilização Brasileira


É temerário comentar um livro como A Voz do Escritor, uma elaboração teórica sofisticada sobre o ato e a motivação de escrever, o ato de ler e aspectos relativos à confusão que comumente se faz entre a vida do autor e sua obra. É como caminhar na corda bamba, ameaçado pelo risco sempre presente de interpretar de maneira equivocada o que diz autor e utilizar a obra em questão apenas para lustrar as próprias idéias. Portanto, desde já advirto que esta é uma resenha parcial, centrada sobretudo nas duas primeiras partes do livro, que tratam especificamente do que ele entende por Voz.
Já no prefácio, o autor indica o caminho que pretende percorrer: “Meu tema é o escrever imaginativo e como lê-lo: primeiro como um escritor desenvolve uma voz própria e uma presença na página; a seguir, como o leitor aprende a escutar essa voz e reagir a ela, e, finalmente, como a verdadeira voz e a personalidade pública às vezes entram em choque, se confundem e se contradizem”.
Eu diria que há uma linha tênue unindo o último tema aos dois primeiros. Como o material para o livro foi obtido, em sua maior parte, de três palestras proferidas na Biblioteca Pública de Nova Iorque em 2002, penso ser justificada a ligeira sensação de deslocamento do último capítulo em relação aos outros.

A Voz do Escritor não tem a pretensão de um manual de boa escrita. O que Alvarez faz, no fim das contas, é afirmar que um autor só se emancipa quando adquire uma voz própria. Por isso deve buscar esta voz, um tormento que nunca o abandona.
Ele afirma que para escrever bem, a primeira coisa de que se necessita é escutar bem. Quando você lê, o autor está ali, dizendo algo com uma voz peculiar, diferente de todas as outras que você já tenha ouvido. Pode estar falando desde um tempo distante, de séculos atrás. No entanto, você a escuta. Há um pacto: o escritor trabalha para encontrar uma voz que alcance o leitor e este, tocado, apura os ouvidos e presta atenção no que ele tem a dizer.
“O escritor descobre essa relação estranhamente revigorante e libertadora entre a realidade física e o prazer estético quando encontra sua própria voz: é o que destranca cadeados, abre as portas, e lhe permite começar a dizer o que ele quer dizer. Mas para encontrar esta voz, ele precisa antes dominar o estilo; e o estilo, nesse sentido, é uma disciplina que se pode obter por meio do trabalho árduo, como a gramática e a pontuação.

Voz não é estilo

“A voz autêntica pode não ser aquela que você quer ouvir. Como os sonhos, ela fala por partes de você de cuja existência você não se dá conta e pode não gostar. Às vezes ela contraria os princípios que você mantém durante o dia. Entretanto, se você tentar expurgá-la, irá privar de vida o que tem a dizer.”
Citando Virginia Woolf, diz que estilo, por sua vez, é ritmo. Pode ser que o estilo que você tanto trabalhou para adquirir atrapalhe o que você quer dizer. Às vezes, portanto, é preciso deformar o estilo para usar a voz.

Na segunda parte, Alvarez faz uma bela digressão sobre o ato de ler/escrever (um como a imagem em espelho do outro), comparando-o à música. Ele afirma que encontrar uma voz implica que haja leitores que saibam escutar, e escutar é uma habilidade quase tão caprichosa quanto escrever. Diz: “O bom leitor escuta com a mesma atenção com que o escritor escreve, ouvindo tons e subtons, alterações de altura, e tão envolvido e atento como se estivesse numa conversa com o escritor.”
Quem escuta uma peça musical, ouve-a como um processo, uma intrincada conversa entre instrumentos. No entanto, para que essa conversa ocorra e faça sentido, “os músicos devem pensar tanto vertical quanto horizontalmente – em acordes e harmonias, assim como em frases. Os músicos assumem isso sem questionar: ‘Há muitas maneiras de se equilibrar um acorde’, disse Alfred Brendel, ‘e precisamos acabar aprendendo a medir o som de um acorde em nossa imaginação e depois controlá-lo na execução’. Ele parece estar insinuando que o sentimento, o caos que se ergue verticalmente do inconsciente, é posto em ordem pelo fraseado e pelo desenvolvimento horizontal, mas que, sem o caos do sentimento não pode haver música. É a mesma coisa com a linguagem: argumentação, métrica e tom de voz criam ordem, mas tudo depende do peso e da ressonância de cada palavra.”

A última parte trata da confusão que comumente se faz entre a vida do artista e sua obra. Ele afirma: “É absolutamente equivocado acreditar que a arte extremista, ou qualquer outra, tem de se justificada ou sustentada por uma vida extremista, ou que a experiência do artista no limite do intolerável é, de um modo qualquer, um substituto da criatividade. De fato, o oposto é que é a verdade: para criar arte a partir da privação e do desespero, o artista precisa de recursos internos proporcionalmente ricos e um controle proporcionalmente estrito de seu medium. Um artista é o que é não porque viveu uma vida mais dramática do que outras pessoas, mas porque seu mundo interior é mais rico e mais acessível, e também, acima de tudo, porque ele ama e compreende qualquer meio que utilize – a linguagem, a pintura, a música, o cinema, a pedra -, e deseja explorar suas possibilidades e fazer dele algo perfeito. Creio que foi Camus que observou certa vez que a obra de Nietzsche prova que se pode viver uma vida de grandes aventuras sem sequer se levantar da escrivaninha. Quanto mais exposto e doloroso o tema, mais delicado e atento é o controle artístico necessário para lidar com ele.”

Esses são os pontos que julguei importante ressaltar em A Voz do Escritor. Entretanto, cumpre dizer que o livro não se exaure aí, não se resume a uma reflexão seca e intelectualizada como pode parecer a partir de minhas anotações. O texto é leve e de leitura agradável, há fartura de exemplos, o autor empreende, no último capítulo, uma viagem interessante pela literatura através dos séculos. Em suma, trata-se de uma obra indispensável para quem deseja entender um pouco mais os meandros da criação literária, ainda que seja apenas para cumprir as regras de ouro enunciadas pelo cubano José Martí: “Para se sentir realizado, todo homem deve plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro”.

Umberto Krenak

segunda-feira, agosto 21, 2006

Beryl Cook

domingo, agosto 20, 2006

As ondas


As ondas
Virginia Woolf


Editora N Fronteira


"A vida nos apartará. Mas formamos certos laços. Acabaram nossos anos de infância, da irresponsabilidade. Mas forjamos certos elos. Acima de tudo, herdamos tradições. Mas forjamos certos elos. Acima de tudo, herdamos tradições. Estas lajes são usadas há seiscentos anos. Nestas paredes estão inscritos os nomes de guerreiros, estadistas, alguns poetas infelizes (o meu estará entre estes). Abençoadas as tradições, todas as salvaguardas e limitações! Sou extremamente grato a vós, homens de trajes negros, e a vós, mortos, pelo vosso exemplo, pela proteção; apesar de tudo, porém, o problema permanece. As contradições ainda não foram conciliadas. Flores movem suas cabeças contra a janela. Vejo pássaros selvagens, e instintos mais selvagens do que os mais selvagens pássaros erguem-se do meu selvagem coração. Meus olhos são selvagens: meus lábios, firmemente comprimidos. O pássaro voa; a flor dança; mas eu ouço sempre o embate monótono das ondas; e a besta acorrentada pateia na praia. Pateia sem parar." (Virginia Woolf)

Virginia Woolf foi romancista, crítica literária e ensaísta. Com o seu olhar feminino e transgressor usou uma narrativa que explora o fluxo de consciência, como se fosse monólogo interior e contrapondo com uma narrativa mais linear. No livro As ondas, os seis personagens não interagem, apesar de um mencionar o outro. Contam suas história, impressões e conflitos psicológicos separadamente, como se fossem monólogos fragmentados.

A natureza é um elemento forte da história, a criança está mais perto do natural. É um animal que vive intensamente. Quando cresce, ela é domesticada com os valores tradicionais que a antecedem. A autenticidade se perde. O adulto se apequena, almeja só consumir bens materiais e ter uma posição social importante. A imaginação e os sonhos da infância são reprimidos. Os personagens ficam amargurados e desapontados com a vida e consigo próprios. Sentem-se perdidos e sem referências. Nas entrelinhas a autora critica a superficialidade do pensamento e das atitudes da burguesia. Na realidade, nós não somos livres e sim amarrados numa camisa de força, que é a cultura.

Eduardo Oliveira Freire - dudu oliva

quinta-feira, agosto 17, 2006

A queda em questão no mais romântico e pessimista dos filmes



Vertigo
Alfred Hitchcok
1958

James Stewart, Kim Novak, Barbara Bel Geddes, Tom Helmore, Henry Jones.

Ela passa. Não é, no entanto, um passar comum. Para que passasse por diante da câmera, para que fosse vista por um certo detetive, foi rigorosamente vestida e preparada por um homem muito esperto e maldoso, que precisava enganar alguém. Ela desliza, se exibe, submete-se ao exame do personagem. E ao nosso. Fisgando o homem para quem desfila, fisgou-nos. Ela é Madeleine, o impostor é Galvin Elster e o detetive, Scott.
Fomos fisgados por Hitchcock, o verdadeiro manipulador, o artífice dessa cena que não se pode esquecer. Que Scott, a seguir, já apareça no encalço dessa mulher pelas ruas de San Francisco, nos parece a coisa mais natural do mundo. Ele tinha conversado com Elster, que expusera o triste caso da esposa e de suas estranhas perambulações pela cidade, ele não quisera aceitar a tarefa de segui-la e descobrir suas intenções. Elster lhe pedira que fosse vê-la no restaurante Ernie´s e, claro – era preciso apenas que a visse para que a amasse. Nada de dizer “aceito a missão”. Para quê? Está tudo na imagem. Hitchcock é o rei das elipses significativas.
Madeleine Elster é uma mulher única, fabulosa, frágil, a um passo do Além, porque se julga possuída pelo espírito de uma antepassada morta e, em seu transe, está mais para o lado dos mortos que dos vivos. Tudo mistificação, como se verá depois, mas seria muito grosseiro decretar que é apenas um blefe que o diretor desmascarará lá pelo meio do filme; não: trata-se de uma dessas mistificações onde uma idéia transcendente se entronca com a realidade, a ponto de Morte e Vida, Terra e Céu, Aquém e Além, perderem suas fronteiras definidas, se intercambiarem e deixarem a nós, espectadores, em dúvida quanto à consistência do real.
Isso é Cinema, feitiçaria superior, onirismo privilegiado (visto que a consciência o acompanha), festa para a alma, que o que mais quer é o deslumbramento, a aventura, o romance para além da banalidade mortal, das contingências estúpidas. Mas que está, ai de nós! fadada a seguir miragem após miragem até ser acordada de seu sonho.
Não há o que eu não admire em Um corpo que cai. A sua abertura é já o começo do abismo, com toda aquela “op art” audaciosa para os anos 50. A vertigem, o rosto, a boca, o nariz, o olho sorvedor de uma mulher em cuja pupila de círculos concêntricos um corpo (uma alma) cairá. E a música de Herrmann, discípulo de Wagner e Bartók, é, para mim, a mais bela trilha sonora já composta. Não se pode imaginar música mais adequada, sensitiva, melancólica, inquietante, elegíaca, capaz de nos lançar para poços sem fundo de emoção com seu apelo de extraterrena beleza, de irremediável e sobrenatural fatalidade romântica.
Esse é provavelmente o mais romântico (no melhor sentido) de todos os filmes. O único onde o Amor se mostra em sua nudez de delírio, impossibilidade, intangibilidade, sofrimento e loucura. Tudo está preso a uma única idéia – a de encantamento, hipnose, mergulho nos abismos últimos da paixão (lá onde o Desejo toca a Alucinação).
Confesso meu fraco por filmes de amor impossível, a ponto de ter entre meus favoritos um melodrama como A ponte de Waterloo e de não resistir à choradeira de Suplício de uma saudade ou Tarde demais para esquecer.
Afinal, são os amores não realizados os que mais nobremente encarnam a idéia do Amor. Uma história de amor bem sucedida acabará onde? No maridão fumando seu cachimbo com o jornal em frente à tevê enquanto a mulherzinha troca as fraldas do bebê aborrecido. Nesse ponto pode-se entender a sedução do erro, do adultério, da perversidade, da homossexualidade: a mediocridade tem que ser evitada. Mas o impulso que empurra o homem para a fuga à mediocridade é o impulso que o empurra para o Inferno. “... à procura de luz”, como acrescentaria Lupiscínio Rodrigues (“Esses moços”), e algum crítico já chamou Um corpo que cai de A tragédia de Lúcifer.
Não se pode negar que um filme assim suscita reflexões em torno de problemas metafísicos, religiosos. Começa com uma barra de ferro situada entre o céu e a terra e a ela se agarra freneticamente um homem em fuga; há a perseguição da polícia a um bandido nos arranha-céus de San Francisco e aí o detetive, por acrofobia, deixa morrer um companheiro que procurava salvá-lo. De imediato entra-se no universo católico da Culpa. O filme será uma operação de redenção, mas redenção irônica – conquista-se a compreensão perdendo toda e qualquer construção do Desejo.
Scott é um detetive maduro, mas a sua acrofobia o vulnerabiliza, mostra a sua imaturidade, sua incapacidade de lidar com a realidade (alturas). Um crítico escreveu que essa acrofobia estaria relacionada à impotência sexual. Interpretações para essa deficiência simbólica não faltam. O certo é que ninguém melhor que James Stewart para encarnar esse personagem: ele é um homem claramente emotivo, crédulo, com um instinto protetor, um ar bom e confiável; é, em suma, um homem humano, crível, sem aquela aura do galã blindado e insensível que resolve tudo agindo.

“I look up, I look down”

O detetive é amado há muito tempo por uma certa Midge (Bárbara Bel Geddes) que é também a boa moça típica – prestativa, protetora, um pouco irônica, porque não consegue quebrar o celibato convicto que ele ostenta. Bonitinha, de óculos, ela é um pouco disponível e terra-a-terra demais. É curioso que tanto em Janela indiscreta quanto em Um corpo que cai Stewart encarne o solteirão resistente às mulheres, sempre com as idéias em outra parte que não aquela, muito real, que lhe é oferecida (e no primeiro, espantosamente, é a Grace Kelly que ele resiste). Esse homem afável e pacato tem compulsões pouco convencionais e Hitchcock devia deliciar-se com o contraste.
Midge tenta ajudá-lo a superar a sua acrofobia numa cena que é um primor de metáfora: ele tem a teoria de que poderá resolver o problema gradualmente – primeiro, subir num banquinho, depois numa cadeira mais alta etc. Ela lhe improvisa tais cadeiras, ele vai subindo em treino – “I look up, I look down” - mas, a uma certa altura, a vertigem do início do filme o possui e ele cai nos braços dela. Em outro, a queda poderia ficar até um pouco “desmunhecada”. Mas com Stewart é de uma estranha fragilidade masculina que não desviriliza – ao contrário: comove. Vertigo é o filme de um diretor sensível e de bom gosto. Referir-se ao sexo de maneira indireta e delicada é ainda a melhor maneira de captar toda a sua importância, o seu significado.


Os círculos concêntricos

Incumbido de seguir Madeleine Elster, Scott seguirá ponto por ponto a isca lançada por seu marido, Galvin Elster: ela visitará o túmulo de Carlotta Valdez (a bisavó suicida), verá seu retrato num museu (ocasião em que ele constata que a viva usa o mesmo coque da morta, com sua vertiginosa espiral), comprará numa floricultura um buquê idêntico ao que está nas mãos da mulher do quadro, seguida a uma distância prudente. Madeleine também se hospeda num hotel que foi a casa da falecida, que morreu louca, perguntando pelas ruas “Onde está a minha filha?”.
Essa perseguição lenta, circular, é como um mergulho na feitiçaria dos círculos concêntricos da abertura. É poderosamente erótica – porque, menos que perseguição, sentimos que se trata de voyeurismo, desde o primeiro momento, quando fomos apresentados a uma mulher espetacular e ímpar - mas esbarra na Morte e em símbolos religiosos (o cemitério onde jaz Carlota fica atrás de uma igreja). Scott nunca toca na mulher, que está lá, impalpável, linda e exposta a sabe Deus quais fantasmas, agindo na mais perfeita inocência aparente em sua rotina de suave e triste insanidade. Só fará isso quando a salvar de afogamento voluntário na baía de San Francisco, sob a Golden Gate.
A cena da tentativa de suicídio é de grande beleza: ela despetala o buquê idêntico ao do quadro (em primeiro plano) nas águas e a seguir, como que para também desfazer-se, despetalar-se, mergulha. Ele a tira da água para colocá-la em seus domínios, no quarto de apartamento de solteirão, e a ouvimos sonhar, dizer “Where is my child?”. Ficamos então sabendo que ela não sabe o que faz, que está ausente em momentos como o da Golden Gate; a confissão acentua o senso de proteção de Scott, lisonjeia-lhe a masculinidade e o desejo.
Desejo correspondido. Ela também está encantada por seu protetor. E começa a descrever-lhe o desespero em que vive, com as imagens de possessão que a assediam. Pede para que ele a ajude. Há um passeio num bosque de sequóias no qual o filme parece irradiar uma melancolia infinita. É quando o romantismo desse projeto parece mais agudo – sofremos porque somos criaturas, porque somos frágeis, porque vamos morrer, porque estamos submetidos a um destino de precariedade. A música de Herrmann instala-se aí como elegia, nos tons mais desoladores. Afinal, as sequóias duram mais que as pessoas.
Sabemos como isso acabará: ela o arrasta para a igreja de San Juan Batista para localizar algum nexo na busca de sua identidade despedaçada pela possessão. Mas ela sobe para a torre onde, devido à acrofobia, Scott não pode chegar, e atira-se de lá. Segue-se um estado de quase catatonia no detetive : ele olha “para cima e para baixo” enquanto é julgado inocente pela morte de Madeleine, tendo o júri levado em conta a sua acrofobia.. Elster o consola: “Sabemos quem matou Madeleine”. Diz que irá para a Europa tentar recomeçar a sua vida; é indulgente com Scott, mas este já está em outro mundo.

Os dilemas se desdobram

O detetive vai para uma clínica psiquiátrica. Midge está por perto, mas ele mal a vê. Curiosamente, é submetido à musicoterapia, ao mesmo Mozart que ele não queria ouvir no toca-discos no apartamento da moça, no início. Mozart nada resolve, nada pode tirá-lo dessa depressão. Midge desiste. Ela bem que havia tentado, e pateticamente até fizera uma paródia do retrato de Carlotta Valdez pondo seu rosto no lugar do da morta. Mas, como, disponível, prosaica, poderia competir com uma mulher que sugeria o Além?
Os pesadelos de Scott, desenhados como arte psicodélica precoce (só nos anos 60 aquilo entraria decididamente em moda), são efeitos especiais que farão rir os adeptos de Lucas, Spielberg e Peter Jackson das gerações recentes. Mas, eficientes e coerentes com a trama, sugerem muito. Com a música de Herrmann agora evocando a Espanha, vemos a Carlotta Valdez do retrato ao lado de Galvin Elster na torre da igreja de San Juan Batista e vemos, finalmente, um túmulo aberto para o qual Scott se dirige e, ao olhar para dentro, gritará, acordando.
Saindo da clínica, Scott vê Madeleines por toda parte. Repisa o percurso da perseguição, vai aos lugares que ela freqüentava. Refaz os círculos que percorrera, apenas para constatar que a nada mais levam. Finalmente, quando parece já resignado a um desânimo eterno, encontra na rua uma versão morena de Madeleine.
Diz chamar-se Judy Barton e o convence até certo ponto. Mas é a própria. Não havia Madeleine. Judy Barton era a amante de Elster. Os amantes arquitetaram o plano contando com a acrofobia de Scott: matariam a verdadeira Madeleine (que o detetive nunca viu, tampouco o espectador; era apenas um nome) e oficialmente a coisa passaria por suicídio, suicídio que seria corroborado pelo testemunho de Scott.
Diabólico, sem dúvida. Mas talvez um pouco cerebral demais. Inverossímil que alguém planejasse um crime assim tão refinado e contando com o favor do acaso em tantas variantes imprevisíveis. Mas Hitchcock, ele próprio o disse, acha que a verossimilhança é coisa sempre reivindicada por indivíduos sem imaginação. Perfeito. Tem-se que aceitar Um corpo que cai como alguma coisa bem além da mera intriga policial. É um tratado sobre a aparência e seus avessos, sobre a sedução e seus meandros de Idolatria e Culpa.
A força dessa história e desse drama é tal que passamos por cima de muita coisa – temos que ignorar, por exemplo, que a maquiagem que a produção arranjou para a Kim Novak morena é exagerada, ridícula, quase caricata.
Scott quer a ressurreição de Madeleine. Judy, que é a cópia, na verdade a própria, na verdade ninguém, compreende que esse homem (por quem, coisa que escapou aos planos com Elster, ela se apaixonou) quer refazer a morta detalhe por detalhe. Por amor, estóica, medrosa, aceita-lhe as exigências: o tailleur, o penteado, a cor do cabelo de Madeleine.
Há uma cena inesquecível: quando ela concorda em ir providenciar um último detalhe – o coque – e Scott a aguarda. Ouve-se o abrir de uma porta como se ouvisse o abrir de um caixão de defunto. Ela retorna do mundo dos mortos! Nada mais falso e mais comovente que essa ressurreição – o fetichismo e a necrofilia do personagem aí parecem claros, mas tratados com suprema poesia. Ele não tardará a descobrir que foi enganado. Levará Judy/Madeleine de volta à torre, vencerá a acrofobia, mas dessa vez a perderá de verdade. Para sempre. A chegada de uma freira assusta Judy, que despenca. O filme termina com os sinos sendo tangidos pela freira e com um “Deus tenha piedade...”
Convém não esquecer que, no labirinto de invencionices da falsa Madeleine, ela havia dito que uma certa “Irmã Teresa a repreendia”. Judy engendrou uma fantasia de que se tornou vítima. E onde fica o Real nisso tudo?

Acorrentada a uma imagem

Enfatiza-se muito o drama do detetive, mas pelo lado dessa mulher ele não foi menor. Uma moça simples, romântica, que chega do interior e, movida por ambição, aceita entrar no plano de um homem rico que precisa matar a mulher.
Quem é Judy Barton? Quando Stewart a encontra na rua e a segue até seu apartamento, primeiro agirá como uma moça direita que, naturalmente, tem que repelir um desconhecido que teve a audácia de bater à sua porta. Mas, deixa-o entrar, porque percebe seus modos de homem respeitável e entende seu sofrimento. Mas, mostra-lhe a sua identidade – é do interior, do Kansas, e há até uma foto de família numa cômoda, para atestar suas origens. Trabalha numa loja próxima dali, a Magnin´s. Estamos diante de sua verdade – não há dúvida que ela está satisfeita por revelá-la ao homem cuja paixão despertou. Mas, a seguir, compreenderá que está acorrentada a uma imagem num grau muito além do planejado – esse homem não está interessado nela, mas na outra, na Grande Outra que foi perdida. Entendemos o patético disso, porque o que ela deseja é perfeitamente legítimo, mas foi arruinado pela impostura desde o momento em que submeteu-se à trama de Elster. Para que Scott a ame, ela terá que ser sempre o que não é. Sendo o que não é, ela revelará quem de fato é: cúmplice de uma história sórdida. O meio-termo que aceita é o grande suspense da história – e é um dos mais estrangulados e neuróticos casos de amor já projetados na tela, porque esses amantes, se souberem o que de fato os une, terão seu amor inteiramente devastado – ele só poderia subsistir nas condições mais rarefeitas e inquestionadas de idolatria.
Judy Barton é, na verdade, uma garota de programa. Nada disso precisa ficar muito claro no filme, e há um puritanismo evidente em Hitchcock, que, além de tudo, fez seu trabalho na linha do “film noir”, que é tradicionalmente misógina – nela, as mulheres lindas, desejadas por detetives ou heróis honestos, são sempre ardilosas, jamais confiáveis, e podem, pela sedução, fazer com que o herói mergulhe no inferno; é, aliás, com a finalidade de tirá-los do “bom caminho” que comparecem na tela (lembremos, só como exemplo, a consumada tarântula vivida por Barbara Stanwick em “Pacto de sangue”, obra-prima de Billy Wilder).
Mas, Judy Barton parece ter dimensões mais humanas que o filme apenas roça. Ela faz a jovem que sai do interior em busca do sucesso numa metrópole e, com certeza, na profissão modesta de uma vendedora de loja, não o encontra. Tem, no entanto, a beleza a seu favor. E, possivelmente, é fascinada pela idéia de ser outra, de perder-se numa imagem ideal (fascínio que deve decorrer da própria idéia de ascensão profissional que a move). Portanto, presta-se a um papel arriscado, em que sua beleza – só ela, como uma casca que poderá usar e descartar a bel-prazer – terá importância fundamental. Vende-se a uma imagem. Pode-se mesmo pensar que Elster, cuja intenção principal é fazer de Scott testemunha favorável a seu crime, tem um fundo homossexual: a idéia de dispor daquela mulher, de ter aquele corpo e aquele rosto para atrair Scott o fascinaria em mais de um sentido. Em todo caso, Judy é o tipo de carreirista que tem sua dose de romantismo – e por aí é que se vulnerabiliza, e é por aí que está a sua grandeza, a sua humana contradição.
“Um corpo que cai” teve seus problemas de produção. Um deles – que é notável por remeter, metaforicamente, à própria situação do filme – foi que o papel dessa mulher dupla estava destinado à atriz Vera Miles. Tudo fora planejado pelo meticuloso Hitchcock, maquilagem, vestidos, mas Vera, casada com um ator horrível, Gordon Scott (um dos piores Tarzans que o cinema teve), engravidou. O diretor ficou arrasado com isso, e relutou muito em dar o papel a Kim Novak. Brigou com ela, assustando-a com seu despotismo, dizendo que ela não poderia usar roupa alguma além daquelas que já pré-determinara. Kim se submeteu, e fez o papel de sua vida.
No entanto, Hitchcock nunca a achou muito adequada, reclamava que ela não usava “soutien”. Sempre preferiu, para suas estrelas, uma certa aura de recato sexual. Kim era sensual, apetitosa demais, na linha de Marilyn Monroe, a deusa dos anos 50. Isso deu ao personagem de Madeleine/Judy uma força inesperada, contra todos os preconceitos do diretor. E é preciso registrar que Kim sempre foi subestimada como atriz. Porque mesmo nesse filme, onde esteve sob uma batuta restritiva, humilhada por ser atriz-substituta, ela está magnífica, e consegue fazer-nos pensar numa outra mulher por trás daquela loira imaterial, gélida e “hitchcockiana” que foi obrigada a fazer.
Judy Barton transcende a fêmea-sedutora-fatal típica do “film noir”. Ela aceita fazer a isca, mas planta as sementes de sua destruição, porque o teatro que aceitou representar tem mais de si do que imagina, tanto que uma paixão real surge do emaranhado de irrealidades. A sedutora, apaixonando-se pelo seduzido, é obrigada, pelo próprio amor que suscitou, a reconstituir uma fantasia que vai levá-lo a conhecer a verdade. De um amor alimentado por tantos artifícios, pode-se dizer que só é possível libertar-se pela morte do sonho ou pela morte, pura e simplesmente.
Para a mulher, acorrentada a uma imagem que o homem dela fez, resta pouca alternativa entre fazer a demoníaca ou a santa. Como Judy é, positivamente, um pouco disto e daquilo, é tragicamente punida. Ela não consegue impor a sua identidade sobre um homem que está impregnado de uma obsessão que precisa ser desfeita, ainda que isso custe a imolação da mulher que ele amou – ou acreditou amar. Madeleine/Judy são a mesmíssima mulher-objeto, o mesmo objeto intercambiável na disputa, no duelo entre dois homens. São veneradas porque estão proibidas de terem qualquer espécie de existência real, concreta. Projeções, as correntes da misoginia as prendem para todo o sempre.
Quanto a Scott, seu óbvio alter-ego, Hitch, seguindo a sua linha de pessimismo católico, parece nos dizer que o amor é pura fantasmagoria, que o seu processo idólatra é o mais precário dos empreendimentos da Criatura. Amar a Criatura, querer mudar os desígnios do Criador, querer ser o Criador, intervir no Destino com desesperadas fabricações humanas, oriundas do Desejo, é tragédia na certa. O homem, privado de Deus, joga seu amor, sua esperança, seu sonho de onipotência em criações só suas, que não podem nem de longe substituir, em verdade e duração, as de seu arqui-rival contra cujo poder tudo é inútil. Ele tem que cair, cair quantas vezes forem necessárias, até dar-se conta de que entre a o Céu e a Terra há uma distância insuperável.
A Queda é essa condenação ao mundo incerto, ambíguo, senão diabólico, das aparências, onde a Verdade só é encontrada ao preço da desilusão.

Chico Lopes

quarta-feira, agosto 16, 2006

Boris Vian


O Dictionnaire de Culture Générale Micro Robert o define como ‘écrivain français’, mas esta é apenas uma das facetas do gênio Boris Vian, engenheiro por formação. Ele não foi apenas escritor, o que já seria muito, tendo em conta a diversidade de sua produção escrita: romances, crônicas, roteiro de filmes, óperas, comédias musicais, esquetes, etc. Ele foi, a um só tempo, tradutor, compositor, trompetista, diretor artístico, crítico musical, ator, cantor. É bem verdade que Boris Vian tornou-se muito mais conhecido como escritor do que como cantor/compositor, mesmo na França. Apesar de já terem sido repertoriadas em torno de 700 canções suas, ela ainda é considerada um gênero menor dentro de sua vasta produção. Entretanto, para o próprio Boris Vian, a canção ocupava um lugar de extrema importância dentre as suas inúmeras atividades. Tanto que jamais se contentou somente com a inspiração, ele estudou a história da música, seus diferentes gêneros, suas técnicas de criação e de difusão e possuía uma visão completa do papel do compositor, do músico, do editor, do crítico, do produtor de rádio, do cantor.

É importante ressaltar que suas composições não têm nada da canção francesa a que nossos ouvidos estão habituados, ou seja, romântica e quase dramática, como ‘La vie en rose’, ‘Ne me quitte
pas’etc[1] . Sua música é carregada de ironia, uma de suas canções mais conhecidas, ‘Le déserteur’, foi escrita em plena guerra da Argélia e teve repercussão tal que Boris Vian foi o primeiro a se surpreender com os efeitos causados por ela. A esse respeito ele diz: ‘Repreendem à minha canção ser antimilitarista. Eu não sei de nada, não acredito. Eu só sei uma coisa, que ela é violentamente pró-civil.’ Em outra de suas músicas, ‘Je suis snob’, Boris Vian critica os frequentadores da Saint-Germain-des-Prés, de um modo bem humorado e exagerado. E quem eram, na época, os frequentadores de Saint-Germain-des-Prés? Ninguém menos que o próprio Boris Vian, Jean-Paul Sartre, simone de Beauvoir e outros intelectuais não menos ilustres.

Sua vida não foi muito longa, nasceu em 1920 e morreu em 1959, é sabido que sua obra foi influenciada pela perspectiva da morte, ele sabia que morreria jovem devido a um problema cardíaco que já o incomodava aos dezoito anos. Casou-se com Michelle Léglise em 1941, depois da separação, Michelle se tornará amante de Jean-Paul Sartre e, desempenhará um papel importante na vida do filósofo até a sua morte em 1980. É a ela que ele confiará um bom número de seus manuscritos depois doados à Bibliothèque Nationale.

Em 1947, sob o pseudônimo de Vernon Sullivan, Boris Vian já era o autor famoso de J’irai cracher sur vos tombes, este romance, muito violento para a época, inaugurou um novo gênero na França, o ‘roman policier noir’ e trouxe-lhe fama e uma multa de 100.000 francos. O livro foi transformado em filme, mas ao que parece Boris Vian não gostou nada do resultado. L'Écume des Jours é considerada sua obra prima.

[1]esta é de Jacques Brel, cantor e compositor belga.
Leila Silva - Cadernos da Bélgica

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terça-feira, agosto 15, 2006

A Fada Matilde e a Menina Sapequinha


A Fada Matilde e a Menina Sapequinha
Andréa Braga


Ilustrações – Paulo Paffomiloff

Ed Ciência Moderna



No quintal de sua casa, a Menina Sapequinha descobre uma floresta encantada onde mora uma fada mal-humorada, um unicórnio de olhos azuis, um gato que come banana e um monte de outras criaturas.
Fada Matilde agora tem um problema: quanta magia é necessária para manter um segredo? Fada Matilde e a Menina Sapequinha é resultado do encontro da contadora de histórias Andréa Braga com o criador de desenhos animados Paulo 'Paffomiloff', criando um novo mundo de cores, aventuras e desafios.

Vera do Val – Rose Rose Rosebud

domingo, agosto 13, 2006

O encontro de Monteiro Lobato com Friedrich Nietzsche


Numa primeira aproximação, de comum entre Nietzsche e Monteiro Lobato, não há mais do que uma vaga generalidade: trata-se de autores consagrados, constantemente colocados na ordem do dia. Originalmente a filosofia de Nietzsche foi divulgada no Brasil através de artigos publicados por José Veríssimo, em 1902, no Correio da Manhã. Em 1904, Nietzsche seria objeto de estudos publicados no Almanaque Garnier por Araripe Júnior e João Ribeiro. Logo em seguida proliferava como moda filosófica. Regressaria ao estrelato diversas vezes, como está voltando a ocorrer atualmente. Há um surto de palestras, artigos e livros sobre Nietzsche. Quanto a Monteiro Lobato, desde 1918, ano em que vitoriosamente estreou com Urupês, nunca mais deixou de ser citado. Sua literatura infantil parece resistir à fúria do tempo e dos que, teimosamente, insistem em classificá-la como obsoleta.
Outro paralelo que pode ser feito entre os dois reside nas discordâncias existentes entre os comentaristas de suas respectivas obras. Paradoxalmente, Nietzsche tem sido apresentado como um gênio ou como um louco. Há quem pense seus aforismos enigmáticos e desconexos e há quem os julgue lúcidos e coesos. Ora a obra de Nietzsche é interpretada como um discurso novo, ora como o auge do irracionalismo.
Como ocorre com Nietzsche, a obra de Monteiro Lobato tem sido objeto de incongruentes comentários. Os mesmos aspectos são exaltados ou execrados pelos estudiosos. Sustentam alguns que os primeiros livros de contos de Monteiro Lobato, publicados antes da célebre semana de 1922, se caracterizam pelo rompimento com o linguajar parnasiano. Sustentam outros que estes contos reproduzem o tradicionalismo literário em voga na segunda década do século. Há quem acuse Monteiro Lobato de conservador e há quem o diga revolucionário.
De uma coisa não temos dúvida: Monteiro Lobato participou ativamente, a seu modo, das questões mais candentes do seu tempo. Combateu a ditadura estadonovista, defendeu princípios democráticos e direitos das minorias. Denunciou o truste do petróleo e por isso, quase sexagenário e escritor consagrado, bateu com os costados na casa de detenção. Fundou editoras dando oportunidade a autores nacionais, entre outros a Lima Barreto e a Oliveira Vianna. Tentou entupir o país com uma chuva de livros e de idéias. Nasceu rico, neto de fazendeiro, e morreu vivendo de direitos autorais que lhe rendiam as únicas terras que lhe restaram, as imaginárias, as do Sítio do Picapau Amarelo.
Mas como conseqüentemente situar a vida e a obra de um homem que um dia tentou ingressar na Academia Brasileira de Letras, não conseguindo, e, em outro, virou-lhe as costas, quando as portas pareciam franqueadas? Como compreender este literato que um dia clama contra o Jeca e em outro afirma ser ele o que há de melhor no país? Como entender Monteiro Lobato que após investir contra as tendências modernistas, ao tentar ridicularizar a pintora Anita Malfatti, tenha rendido loas às esculturas de Vitor Brecheret, figura de proa do modernismo? Como entender a trajetória de um homem que teve a coragem de alienar sólido patrimônio da família para aventurar-se como editor - num país onde pouco se lê e, após falir, reúne forças para vir a público no afã de capitalizar recursos para montar empresas de ferro e petróleo, remando de novo contra a maré?
É na tentativa de compreender a trajetória de Monteiro Lobato, objeto de tantas exegeses contraditórias, que o exame da relação do seu pensamento com de Nietzsche ganha relevância. No exame desta relação, acreditamos, está a chave que possibilita posicioná-lo. Postulamos que Friedrich Nietzsche exerce influência decisiva e permanente sobre Monteiro Lobato, questão que, sistematicamente relegada a segundo plano, tem tornado muito problemático situá-lo objetivamente. Com o intuito de projetar um foco de luz sobre esta questão, investigaremos, de forma coloquial, a maneira sui generis pela qual o criador do Jeca Tatu apropriou-se da filosofia nietzschiana e utilizou-a como bússola de sua atividade literária-prática-política.
Após uma vida mentalmente atribulada, Nietzsche, ex-professor de Filosofia da Universidade da Basiléia (Alemanha) falecera tão louco quanto famoso, em Weimar, em 1890. Sempre atualizado, Monteiro Lobato, que importara sua obra da França, em seguidas cartas que, em 1904 envia a Godofredo Rangel, manifestava irrestrita admiração pelo filósofo alemão. Numa carta chama-o “meu Nietzsche”, em outra comenta: “Considero Nietzsche o maior gênio da filosofia moderna e o que vai exercer maior influência. Nietzsche é o nosso primeiro ponto de referência”.
Em 1904, o jovem José Bento Monteiro Lobato lia com sofreguidão tudo o que lhe caía às mãos. Nestas andanças pelo mundo das letras, descobrira Nietzsche como descobrira muitos outros. Entretanto, a nenhum dedicaria palavras tão elogiosas quanto às dedicadas a ele, nem a Machado de Assis, nem a Camilo Castelo Branco, duas de suas maiores paixões literárias. Como explicar tal deslumbramento? Sustentamos que Nietzsche lhe apontou o caminho no momento da ruptura entre sua consciência ingênua e a formação da crítica.
Em 1941, décadas depois de ter descoberto Nietzsche, o então renomado escritor, respondendo a enquête “Testamento de uma geração”, organizada por Edgard Cavalheiro para o Estado de São Paulo, fixou o que significou para ele o contato com o ex-professor da Basiléia. Recordava que ao abandonar o simplismo das explicações caseiras passara a fuçar filósofos em busca de uma visão de mundo mais consistente. Tentou, pelejou, procurou aqui e ali. Nada. Só encontrava sistemas rígidos, camisas-de-força, verdades reveladas. Casualmente, folheando uma brochura de Nietzsche que um colega carregava, leu algumas frases que chamaram sua atenção. Mergulhou no filósofo alemão e tomou a maior bebedeira teórica de sua vida. No auge do porre, segredava em carta a Godofredo Rangel: “Da obra de Spencer saímos spencerianos, da de Kant saímos kantistas, da de Comte saímos comtianos, da de Nietzsche saímos tremendamente nós mesmos”.
Monteiro Lobato encontrava no existencialismo de Nietzsche o que febrilmente procurava: o não sistema, a não rigidez, a ânsia por liberdade. Com Nietzsche, aprendera a escolher, a desconfiar, a construir autonomamente o seu próprio caminho, alheio ao que os outros pensassem, pouco se importando com a lógica dos sistemas filosóficos, com pressões políticas ou com modais escolas literárias. Na enquête de 1941, esclarece que um dos aforismos de Nietzsche marcou-o profundamente, pondo fim à crise mental em que se encontrava. “Queres seguir-me? Segue-te”. Nietzsche era dinamite. Monteiro Lobato também. Ao chocar-se com o louco da Basiléia explodiu. Foi fiel a si mesmo a vida inteira.
Torna-se muito difícil, - quiçá impossível - situar os ziguezagues de Monteiro Lobato sem compreender o encontro que, com pouco mais de vinte anos, ele teve com Nietzsche. Sem perceber o “segue-te” como essência lobatiana, fica-se às tontas, como tantos tem ficado, no esforço improfícuo de tentar reduzí-lo, associando-o a movimentos determinados. O que Monteiro Lobato está fazendo o tempo inteiro é “lobatizando-se”, ou seja, seguindo-se. Por isso, recomenda ao amigo correspondente: “Quanto a programa, Rangel, só conheço um que te sirva, rangeliza-te sempre e cada vez mais”. E em outra missiva que também lhe enviou em 1904: “Você me pede um conselho e atrevidamente eu dou o grande conselho: seja você mesmo, porque ou somos nós ou não somos coisa nenhuma. E para ser si mesmo é preciso um trabalho de mouro e uma vigilância incessante na defesa, porque tudo conspira para que sejamos meros números, carneiros de variados rebanhos - os rebanhos políticos, religiosos ou estéticos. Há no mundo o ódio à exceção - e ser si mesmo é ser exceção”.
Para os nossos propósitos, perda de tempo investigar outras prováveis relações entre ambos. O produto do encontro fora a ruptura (explosão). Nietzsche pegara Monteiro Lobato em estado latente e devolvera-lhe o chão. Daí para frente, cada macaco no seu galho.


Aluizio Alves Filho - Revista Achegas

A versão original deste artigo consta como anexo no livro “As Metamorfoses do Jeca Tatu - a questão da identidade do brasileiro em Monteiro Lobato”. Rio de Janeiro, Inverta, 2003.

sexta-feira, agosto 11, 2006

Cinzas do Norte


Milton Hatoum
Companhia das Letras

Milton Hatoum nasceu em Manaus, em 1952. Formado em arquitetura e mestre em letras, viveu na Espanha e na França, ensinou literatura na Universidade Federal do Amazonas e na Universidade da Califórnia, em Berkeley. Recebeu três prêmios Jabuti ( 1990, 2001 e 2006)

Olavo, chamado de Lavo, é o narrador deste Cinzas do Norte, um romance ambientado, na maior parte do tempo em Manaus. O melhor amigo de Lavo, Raimundo, sempre chamado de Mundo (não deve ser por acaso) é filho de Alícia que é casada com Jano mas este, logo compreendemos, não é o pai de Mundo, o mistério em torno desta paternidade permanece até a última página do livro, depois de pistas falsas semeadas.

Alícia amava Ran (Ranulfo) que era preguiçoso, beberrão e sem ambições materiais, então, cansada da pobreza em que vivia, ela casa-se com Trajano Mattoso, homem rico e herdeiro de grandes negócios, filho de um português. Alícia continua, entretanto, a se encontrar com Ran depois de casada.

Entre Mundo e Trajano há uma enorme distância, muitas páginas do romance são dedicadas a uma guerra entre o suposto pai e o filho sempre defendido pela mãe. Mundo quer ser artista, está sempre a desenhar e isso só faz aumentar a fúria de Jano. Na escola ele se aproxima de Lavo, sobrinho de Ran e essa amizade perdura até o resto da vida de Mundo.

Lavo torna-se advogado e Mundo vai, depois da morte de Jano, para o Rio com a mãe, de lá segue para a Europa. Antes disso, em Manaus, aproxima-se de um artista local, Arana que, no final das contas, revela-se uma caricatura de artista, um homem corrompido e sem compromissos com a arte, disposto a pintar o verde da Amazônia, araras e o que mais pedissem por dinheiro ou reconhecimento rápido.

Esse é o primeiro romance de M. Hatoum que eu leio, é um livro interessante, que o leitor percorre rápido, fácil de ler porque é muito linear, o autor conta a sua história sem muitas piruetas. Em alguns momentos a narrativa pareceu quase forçada (meio novela global), quando, por exemplo, o autor dá, ou tenta, umas rasteiras no leitor tentando desviar a sua atenção das relações pai-filho de Mundo e os outros três importantes personagens masculinos. A impressão que me deixou foi a de que, para manter esse mistério, o autor se embanana um pouco e compromete o caráter de Alícia, ela que parecia uma pessoa forte e decidida resvala para o contrário sem que o leitor estivesse muito preparado para tamanha mudança. Assim eu me senti, meio perdida nas linhas de Alícia. Mas é preciso dizer que, apesar destas derrapadas, é um livro envolvente, o leitor permanece atento ao clima, às descrições e ao destino das personagens até o final.
Leila Silva - Cadernos da Bélgica

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Beryl Cook e seus gorduchos



Beryl Cook nasceu em Surrey, Inglaterra em 1926. Depois de uma carreira de sucesso no teatro e no mundo da moda, a pintura surgiu na sua vida e daí em diante tornou-se um vício. Sua primeira exposição, Londres, 1976, deu a conhecer ao público seus trabalhos carregados de humor, um universo de personagens muito coloridos, sorridentes e gorduchos, irreverentes, alegres e irônicos. Cada um de seus quadros é uma crítica bem humorada à sociedade em que vivemos.
Vou postar aqui uma série deles.

Vera do Val – Rose Rose Rosebud

Beryl Cook – Bridge party

quarta-feira, agosto 09, 2006

Quadrinhos também são literatura

Maus
Art Spiegelman


Ed. Brasiliense, 1994/95


Art Spiegelman é um típico judeu nova-iorquino, como outros tantos, natural da cidade mais hebraica fora de Israel. Ele faz parte da primeira geração de judeus americanos após o holocausto da Segunda Guerra Mundial. Filho de Anja e Vladek Spiegelman, sobreviventes de Auschwitz, perdeu o irmão Richieu e grande parte de sua família nos porões nazistas.
Art cresceu e se transformou em um dos expoentes do cartoon, mídia inicialmente maldita, e mais bem aceita a partir dos anos 70. Ele participou ativamente, como desenhista da New Yorker, do processo de acreditação desse novo formato de arte.
De cartunista a autor de histórias em quadrinho foi um passo. Se os livros HQ geralmente têm um roteirista e um ilustrador, Art Spiegelman, pelo contrário, faz as vezes dos dois papéis, escrevendo as próprias histórias que desenha.
Maus conta o drama de sua família na Czestochowa, Polônia, das décadas de 30 e 40, frente ao crescimento do nazismo e a subseqüente invasão alemã. A história geral da Segunda Guerra é bem conhecida do grande público, principalmente devido à enorme freqüência do tema no cinema. "O resgate do soldado Ryan", "A lista de Schindler", "A vida é bela", para ficar entre os recentes. Um acontecimento desse porte é palco para muitos personagens intensos com suas histórias únicas de sobrevivência e morte. Não é diferente no caso dos Spiegelmans.
Se o assunto é já é um velho conhecido, o mesmo não se pode dizer da forma utilizada. Não apenas pelo fato de se tratar de uma HQ. Art Spiegelman cria uma fábula, transformando as várias nacionalidades em espécies diferentes de animais, que simbolizam a situação em que aquelas pessoas se encontram. Os judeus, por exemplo, subjugados pelo poderio bélico nazista, são os ratos do título ("maus", em alemão, quer dizer rato); os aliados de Hitler são gatos, inimigos mortais dos ratos; e os norte-americanos são cachorros; os poloneses não-judeus são porcos, por terem compactuado silenciosamente com a eliminação dos judeus; e daí por diante. Mais ou menos como se vê (escrito, e não desenhado) em "A revolução dos bichos", de George Orwell, analogia rural da Revolução Russa de 1917.
Outro aspecto que mostra a criatividade da obra é a forma metalingüística com que Art aborda a história. O livro começa no tempo presente (1973), quando ele conta como nasceu a idéia de biografar sua família em HQ, como surgiram as espécies animais em representação dos personagens, como se passaram as entrevistas com seu pai... No início do livro II, Art e sua namorada Françoise discutem qual bicho ela vai ser, uma francesa convertida ao Judaísmo. Ele aproveita o trocadilho e sugere uma sapa, já que os americanos, por influência da implicância britânica, chamam os franceses de "froggies". Todo o tempo ele alterna a história propriamente dita, de seus pais na guerra, e o contar a história, inventando metáforas e entrevistando Vladek.

Em 1998 Art Spiegelman veio ao Rio de Janeiro para uma conferência no Centro Cultural Banco do Brasil. E lá estava eu, os dois volumes de Maus em mãos, ao lado do Ed Motta, escutando o homem falar do seu livro. Saí com um autógrafo em cada um, e um desenho especial, feito à mão, na folha de cada livro. Além de um ótimo autor, é uma figura muito simpática, inseparável do cigarro e de seu filho Dashiel (que hoje deve ter uns 15 anos).
Phlavyus - Tente outra vez

terça-feira, agosto 08, 2006

Notas do subterrâneo

Notas do subterrâneo
Fiodor Dostoievski

Tradução Moacir Werneck de Castro

Bertrand Brasil

Um novo 'herói' apresenta-se na literatura mundial. Ele é ranzinza, fútil, briguento, solitário, anti-social. Ele é pobre, praticamente miserável. Nunca será um grande homem, seja lá o que isso possa significar. Não deixará marcas nas lembranças das pessoas que o conheceram ou dos raros 'amigos' que teve em sua vida. Não tem esperanças, expectativas, projetos, planos. Se os tivesse, como algum dia chegou a ter, seriam vãos, foram vãos. É um neurótico, preso em sua existência inútil. E é um mentiroso, mente para os seus colegas, para a dona da pensão onde ‘vive’, mente para o leitor e, principalmente, mente para si mesmo.
"Sou um homem doente... Sou um homem despeitado. Sou um homem desagradável. Creio que sofro do fígado".
Este homem se revela para nós, solta sua bílis, desnuda o lado sombrio do ser humano. "Quero contar-vos, senhores, mesmo que não desejeis ouvi-lo, porque nem sequer consegui tornar-me um inseto. Declaro-vos solenemente que muitas vezes quis tornar-me um inseto. Mas nem disso fui considerado digno". O prazer está em remoer sua própria humilhação, de sua incompetência social, de se saber, ou se considerar, mais inteligente do que as pessoas que o cercam e perceber que isso não adianta um mínimo. A ciência é uma falácia: "Não me trato e nunca me tratei, embora respeite a medicina e os médicos. Além disso, sou extremamente supersticioso; o suficiente, em todo o caso, para respeitar a medicina. (Tenho bastante instrução para não ser supersticioso, mas sou.)" Ideais, conceitos de beleza, grandiosidade, abnegação... ? Ora, são balelas, ilusões, sonhos dourados que se esgotam no canhestro cotidiano.
Quem é este homem, complexo, angustiado, relegado e esquecido, que não merece sequer ser jogado pela janela em um briga de bar, ser xingado, ou enfrentado? Um tapa na cara seria exultantemente recebido, pois significaria que alguém teria reconhecido sua condição de ser existente, vivo, presente. Mas, ele?! Nada. Até uma dor de dente é bem vinda, pois é viva, latente, manifesta-se.
Quem é esse homem que irrompe na imaginação do contemporâneo, que obriga e "suja" a presença na cultura, nas artes, na literatura do século XX? Quem é este ser desprezível que assoma e toma ares épicos na obra de um Balzac, de um Flaubert, de um Kafka e que anda perdido, tantas vezes despersonalizado, jogado em uma realidade bruta e brutalizante, indistinguível, de regras absolutas e desconhecidas, verdadeiras rodas-vivas esmagadoras de consciências?
"Notas do Subterrâneo" é, em tudo e por tudo, reflexo e motor destas angústias e dos terrores trazidos por uma Modernidade avassaladora, destruidora, tecnologicamente impecável e impessoal, de conflitos sociais e de explorações econômicas nunca antes imagináveis e cujos limites e imposições estão escondidos, enevoados, descentrados. Nunca como antes a presença do dinheiro foi tão preponderante. Nunca como antes, valores humanos foram tão soterrados e humilhados, perdendo sua antiga validade, deixando no seu lugar ... a perplexidade.
Obra-prima de concisão, impacto e aterradora beleza de Dostoievski, "Notas do Subterrâneo" é uma autêntica dissecação a frio, ao vivo e sem contemplações do ser humano metido (ou enterrado) nesta tal Modernidade, com todas as suas indefinições, incertezas, dores e sofrimentos. A densidade psicológica e a acuidade perceptiva desta pequena novela (que nesta edição da Bertrand Brasil não possui nem cento e cinquenta páginas!) são comparáveis, em força e profundidade aos monumentais "Crime e Castigo" ou "Os Irmãos Karamazov".
Ao longo desse monólogo narrativo introspectivo, contraditório, complexo e intrincado, somos levados mais uma vez à confirmação de que a verdadeira obra-de-arte remete ao mais fundo da sensibilidade e do reconhecimento. Somos nós que estamos sendo retratados, carregamos este mesmo subterrâneo conosco, possuímos as mesmas dúvidas, embora quase nunca tenhamos a honestidade de confirmar-las, nem para si mesmo. O espelho foi construído e nunca é fácil olhar para a próxima imagem.
Como sempre, é impossível passar incólume por uma leitura de Dostoievski. Ainda mais quando ele está no auge de sua maestria.

Claudinei Vieira – Desconcertos

domingo, agosto 06, 2006

O deserto dos tártaros

O deserto dos tártaros
Dino Buzzati

Editora Nova Fronteira



Certos livros são perigosos. Perigosos porque retiram nossos pés do conforto habitual e nos fazem mergulhar em outras realidades. Cada vez que os lemos não são os mesmos. Mas também nós não somos os mesmos. Estabelecido tal círculo, estamos presos: passam a fazer parte de nós.
O deserto dos tártaros é um livro assim. Pode-se gostar ou não, mas ninguém o atravessa impunemente. Ele retrata a condição humana perante um mundo cheio de possibilidades. Possibilidades...Será? Qual é o destino final de todos nós?

Em tempo e lugar indefinidos, Giovanni Drogo acaba de se formar na Academia Militar. Agora, oficial, sonha com mulheres, dinheiro, aproveitar a vida depois de tempos difíceis na escola. No entanto, ao contrário de suas previsões, foi destacado para o forte Bastiani, um velho forte de fronteira.
Giovanni parte, deixando a família e os prazeres da cidade. A cavalo, o caminho é longo e solitário; é preciso subir e subir, pois a construção está situada no alto de uma montanha. Ele não está satisfeito, mas tem como certo poder voltar em pouco tempo. Nem sequer imagina que vai passar ali o resto de seus dias. Por quê, caro leitor, por que Giovanni, jovem e cheio de vitalidade, resigna-se a viver longe de tudo, desfrutando apenas da companhia de seus pares em uma fortaleza decadente? Há um mistério, um mistério que perpassa toda a obra e que te convido a desvendar.

Ao norte do forte Bastiani há uma grande planície, denominada deserto dos tártaros. Antigas lendas dão conta da existência desses vizinhos; vez por outra se vêem coisas por ali, sombras, objetos que mudam de lugar. Por isso a tropa deve estar sempre pronta para se defender de uma possível invasão. Existirão? Não importa. Importa é que eles são uma possibilidade. É preciso que existam para a dar sentido à vida daqueles homens. A esperança move o mundo e é ela que mantém Giovanni preso - é natural do ser humano querer se destacar da multidão. Giovanni sonha com a invasão dos tártaros e com a chance de fazer algo grandioso, ainda que morra na batalha.

O tempo passa e, movida pela esperança, chega um dia em que a existência humana termina. O livro também termina. E de modo supreendentemente previsível. Entretanto, mesmo após o final da leitura, não se consegue evitar aquele vazio, um vazio incerto, uma pontada na alma ressoando silêncios, uma certeza de que não estamos completos.


Umberto Krenak

sexta-feira, agosto 04, 2006

Leopoldina e Pedro I

LEOPOLDINA E PEDRO I
A vida privada na corte

Sonia Sant'Anna

Jorge Zahar Editor


O romance histórico de Sonia Sant'Anna narra de forma singular a trajetória da Imperatriz Leopoldina — "a mais doce de todas as princesas" e a "mais desprezada das esposas" — numa época em que casamentos reais não passavam de manobras políticas. Muito jovem, ingênua, possuidora de uma educação altamente refinada Leopoldina acaba se apaixonando pelo noivo (Pedro I) que conhece, ainda em Viena, apenas por retrato. Criada para ser submissa aos interesses do Estado, dada em casamento pelo pai, ela se resigna ao seu destino numa terra estranha (o Brasil), acreditando que o amor pelo marido tornará sua existência menos penosa longe de seus queridos parentes na Europa.
Mas Leopoldina não leva muito tempo para perceber seu engano: o que deveria ser seu trunfo (o amor por Pedro) se revela sua "maldição". O país que lhe haviam pintado como um paraíso, mais se assemelha a um inferno. A Família Real Portuguesa está muito aquém dos padrões de nobreza a que ela estava habituada. A despeito de tudo, ela cumpre seu dever político, envolvendo-se ativamente do movimento pela independência do Brasil, bem como trabalhando por seu reconhecimento pelas nações européias.
O romance se concentra, sobretudo, na vida pessoal de Pedro e Leopoldina, mas passam por suas páginas os acontecimentos na Europa e na América durante um período agitado da História: as guerras napoleônicas, a vinda da corte portuguesa para o Brasil, o Congresso de Viena que repartiu a Europa, os movimentos libertadores na América espanhola, a guerra em que se envolveu o Brasil pelo controle da Banda Oriental, e as razões da Independência. Um texto denso, emocionante, escrito com paixão, em que, além do prazer da leitura, pode-se ainda aprender muito sobre esta nossa terra. Um livro importante para todo brasileiro que se preza.

Wagner Campelo

quinta-feira, agosto 03, 2006

Nat. Morta - Cézanne

terça-feira, agosto 01, 2006

As Confissões

As Confissões
Jean-Jacques Rousseau

Atena Editora
São Paulo, 2 vol.
1952


Talvez os três maiores símbolos da grande revolução da burguesia francesa contra o poder despótico da dinastia dos Bourbons, ocorrida às vésperas da última década do século das luzes, sejam: a queda da Bastilha, em 14 de julho de 1789; a Marselhesa – o belíssimo Hino francês composto por Rouget de Lisle, em 1792; e o Contato Social – escrito por Jean-Jacques Rousseau (1712 – 1778), em 1762.
Mas o “Citoyen de Genève”, como se autodenomina Rousseau no frontispício da primeira edição de O Contrato Social - um panfleto fantástico que virou o mundo de ponta-cabeça a partir da revolução que trouxe a baila os ideais de “liberté, égualité e fraternité”, – ainda encontrou tempo para escrever outros livros que o passar dos séculos não consegue esquecer. Refiro-me ao “Discurso sobre as Ciências e as Artes” (1750), “A Origem da Desigualdade Entre os Homens” (1753), “O Emílio” (1762) e a “Nova Heloisa” (1761). Com o primeiro e o segundo Rousseau ganhou prêmios da Academia de Dijon. O terceiro é um tratado de pedagogia onde o autor defende a educação como maneira de assegurar a liberdade natural. Nesse livro, faz do jovem “Emílio” o personagem modelar, assegurador de sua utopia educacional. Emílio inspirou o nome da “dadeira de idéias” do Sítio do Picapau Amarelo, de Emília, a boneca de pano que virou gente e que nas estórias do neto do Barão de Tremembé encarna a “independência ou morte”, ou seja: a liberdade de ser. Quanto ao livro “A Nova Heloisa”, acrescenta dizer que Sade, ”O Divino Marquês” - como o qualificou Simone de Beauvoir - considerou que, juntamente com “Manon Lescaut” (1731), de Abbé Prévost, eram romances para todos e sempre.
Mas aqui importa falar de um outro Rousseau, não do mito, mas do mortal que, como qualquer outro, viveu a vida com o sangue correndo nas veias e um coração batendo no peito, às vezes saindo boca afora. Quero falar do suíço, filho de um modesto relojoeiro, do Jean-Jacques Rousseau que jovem veio para Paris e não pensava que poderia ser imortalizado pelo que viria a escrever, mas que simplesmente pretendia ganhar o pão nosso de cada dia vendendo cópias de partituras, inclusive de músicas compostas por ele; músicas que o vento carregou, ninguém sabe para onde.
Recorda o autor de “A nova Heloísa” que foi no ano de 1749, quando convalescia de uma febre que quase o levara dessa para melhor, que: “confirmei a sangue frio as resoluções que tomara durante o delírio. Renunciei para sempre a qualquer projeto de fortuna e ascensão”. E continua: “Determinado a passar na independência e na pobreza o pouco tempo que me restava para viver, apliquei todas as forças de minha alma a quebrar os ferros da opinião, e a fazer com coragem tudo o que me parecia bem, sem me importar absolutamente com o julgamento dos outros”. E conclui: “São incríveis os obstáculos que tive de combater e os esforços que fiz para triunfar deles. E venci tanto quando era possível, e mais do que eu próprio esperava”.
Conta o filho do relojoeiro suíço que uma das primeiras coisas que fez para concretamente assumir as resoluções que tomara em delírio, foi despojar-se daquela geringonça que fazia tic-tac para precisar o passar do tempo, tendo a respeito explicado o alivio que então sentira: “Vendi o relógio, dizendo com uma alegria incrível: ‘Graças ao céu! Não mais precisarei saber que horas são!’.” Comenta também que começou a reforma pelos trajes: “deixei os dourados e as meias brancas; passei a usar uma peruca redonda, abandonei a espada”. Os que o cercavam pensavam que ainda era o delírio da febre que o levava a proceder de maneira que achavam, no mínimo, extravagante e pressionavam-no: “Está maluco? Está maluco?” – e ele firme na sua resolução.
Quando soube que Denis Diderot, seu melhor amigo, havia sido trancafiado na torre de Vincennes em 24 de julho e 1749, um frio há de ter corrido pela sua espinha. Preso pela edição de “Letres sur les aveugles”. Preso pelo crime de escrever coisa que não agradara os olhos de poderosos. “Imaginei-o preso para o resto da vida”. Dessa vez sim, Rousseau quase ficou maluco, quase enlouqueceu. Assim que soube, agarrou um papel e, entre indignado e alucinado, escreveu uma carta a Mme. Pompadour, pedindo que mandasse soltar Diderot ou então que obtivesse que fosse preso com ele, por cumplicidade. O “Citoyen de Genève” observa que nunca recebeu resposta a esta missiva.
Dias depois da prisão, uma boa notícia. Rousseau soube que Diderot havia saído da Torre, continuava preso mas podia ser visitado em Vincennnes. Assim que pode correu para lá. Diderot estava com outros presos também vítimas do Absolutismo. Entre estes se encontrava o filósofo D’Alembert, que juntamente com Diderot dirigiu durante boa parte de tempo o que viria a ser a primeira Enciclopédia que circulou na Europa. D’Alembert era filho bastardo de pai endinheirado, abandonado numa Capela próxima a Notre-Dame de Paris, e criado pela mulher de um pobre vidraceiro. Coração aos piparotes, Rousseau entrou voando no recinto e nem viu D’Alembert. Só viu Diderot. “Momento indescritível” - é como se refere ao acontecido. “Dei um salto, um grito; colei meu rosto ao seu, apertei-o estreitamente sem lhe falar senão com as minhas lágrimas e meus soluços”. Rousseau achou que Diderot estava abatido demais na prisão, observando que as Torres lhe haviam feito muito mal.
Durante os quatro meses em que Diderot esteve preso, Rousseau visitou-o amiúde. Sendo sua grana muito curta, não tendo dinheiro para pagar passagens, caminhava cerca de duas léguas – de Paris a Vincennes - para ver e confortar o amigo. O calor era sufocante e às vezes, exausto de tanto andar, descansava deitando-se no chão. Nunca deixava de levar alguma coisa para ir lendo no caminho. Explica Rousseau que: “Um dia, levei o Mercúrio de França, e enquanto caminhava e o percorria, vi aquela questão proposta pela Academia de Dijon para o prêmio do ano seguinte: ‘Se o progresso das ciências e das artes contribuiu para corromper ou apurar os costumes’.”
Quando chegou a Vincennes estava em estado de euforia que se aproxima do delírio. Sua cabeça não parava de girar, pensando sobre como desenvolver a questão proposta no concurso da Academia de Dijon. Gesticulando muito, explicou ao amigo o que se passava e Diderot discutiu algumas idéias com ele, incentivando-o a concorrer ao prêmio. Foram muitas as noites que Rousseau passou em claro, trabalhando no manuscrito, até que o “Discurso sobre a Ciência e as Artes ficou pronto”. Embalou o texto e enviou-o para os promotores do concurso. Depois, chegou até a esquecer-se dele. Muita água passou por baixo da ponte até que um dia foi comunicado que seu texto fora o premido pela Academia de Dijon. Após a sensação agradável dos primeiros momentos, Rousseau refere-se a este acontecimento como “uma verdadeira desgraça”, considerando que: “enquanto vivi ignorado pelo público, fui amado por todos os que me conheceram, e não tive um único inimigo; mas assim que tive um nome, não tive mais amigos”. Acrescenta que com o sucesso do “Discuso...” vieram os invejosos e o fim da tranqüilidade e da paz que vivia como “ilustre desconhecido”. Em relação ao sucesso imediato que o laureado texto de Rousseau obteve, escreveu-lhe Diderot – um dos raros amigos que manteve ao longo de sua travessia – o seguinte bilhete: “subiu as nuvens; não há exemplo de um êxito igual”.
São coisas vividas, umas alegres, outras tristes e, em regra, marcadas por paradoxos, como os presentes nos textos acima destacados e comentados que compõe “As Confissões” de Jean-Jacques Rousseau; confissões originalmente publicadas em francês e em dois volumes (1781 e 1788), sendo que o primeiro chegou às livrarias três anos após a morte do autor.
Rousseau principia “As Confissões” chamando a atenção para o pioneirismo do manuscrito que estava escrevendo: “Dou começo a uma empresa que não há exemplos, e cuja execução não terá imitadores. Quero mostrar aos meus semelhantes um homem em toda verdade de sua natureza; eu serei esse homem”. Prossegue: “Sinto meu coração e conheço os homens. Não sou feito como nenhum dos que já vi; e ouso crer que não sou feito como nenhum dos que existem. Se não sou melhor, sou, pelo menos, diferente. E só depois de me haver lido é que poderá alguém julgar se a natureza fez bem ou mal em quebrar a forma que me moldou”. Em seguida, como quem está concluindo: “Soe quando quiser a trombeta do juízo final: virei, com este livro nas mãos, comparecer diante do soberano Juiz. Direi altivo: ‘Eis o que fiz, o que pensei o que fui. Disse o bem e o mal com a mesma franqueza’.”
José Brito Broca (1903 – 1961), paulista nascido em Guaratinguetá, autor do clássico A vida literária no Brasil em 1900, e um dos nossos mais argutos críticos literários, estabeleceu uma importante distinção entre livro de “memórias” e de “confissões”. Distinção que nos ajuda a compreender o pioneirismo contido no referido livro de Rousseau. Escreveu Brito Broca: “Nas ‘memórias, às vezes escritas com furioso part pris, como nas de Saint-Simon, o autor não empenha toda a personalidade”. Portanto, a preocupação de quem escreve memórias é a de não se expor, resguardando a privacidade. Ora, ocorre o inverso com quem escreve confissões. Nestas: “o autor vem a público realizar uma espécie de desnudamento moral”. Brito Broca considera que no caso se enquadram “As Confissões” de Jean-Jacques Rousseau e o Diário Íntimo de André Gide.
Pioneiro no gênero, Rousseau se desnuda por inteiro em “As Confissões”. Fala abertamente de suas amantes, de suas práticas sexuais, de suas relações com Teresa – uma mulher simples que foi sua companheira durante décadas e com quem se casou no fim da vida -, dos cinco filhos que com ela teve, todos entregues a Casa do Expostos, e das razões de tão inacreditável conduta. Fala também de seus amigos e inimigos, da maneira como odiava Voltaire (que o humilhara), das jovens que sem razão difamou e de outros deslizes que cometeu, dos ofícios exercidos, de literatura, filosofia, ciências, poder e arte, e de muitos outras questões, sempre passando a idéia de que está colocando forte dose de emoção em tudo o que está confessando.
Por fim, vale dizer que há uma sutil diferença entre o Rousseau do Emilio e o de “As Confissões”. Se no primeiro, o autor, com base no seu princípio filosófico maior, ou seja, “o homem nasce bom e a sociedade o corrompe”, escreve sobre os cuidados que o educador deveria ter para que a “bondade natural” do educando (Emílio) fosse mantida, nunca sendo maculada pela sociedade; no segundo, se apresenta como um produto da vida social e despe o “mito” diante do mundo.
Visitar ou “As Confissões” do “Citoyen de Genève”, mais de dois séculos após a sua morte é como viajar por dentro da alma humana.

Aluizio Alves Filho. Prof. de C. Política da UFRJ - Achegas
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