quarta-feira, novembro 29, 2006

'Point to Point Navigation': luminar desdenhoso ofusca astros

Point to point navigation
Gore Vidal

O título de "Point to Point Navigation" (navegação ponto a ponto) de Gore Vidal se refere ao feito perigoso de conduzir um navio sem a ajuda de uma bússola. Também diz algo sobre o percurso em ziguezague da vida ricamente agitada de Vidal. E sugere uma visão de uma viagem marítima na qual figuras célebres dos reinos da arte e da política servem como marcos. Apesar dele gotejar de forma cativante os nomes destes outros luminares, Vidal reserva para si mesmo o papel importante de Estrela do Norte.
Como um livro de memórias (seu segundo, após "Palimpsesto"), "Point to Point Navigation" é tão cheio de rodeios quanto seu título indica. Isto é um elogio: é preciso um narrador hábil para saltar de forma tão divertida entre assuntos aparentemente não relacionados sem perder de vista o destino final de cada caso.
Caso tivesse sido organizado de forma mais rigorosa, este livro teria sofrido grandes lacunas e inconsistências ficariam aparentes. Da forma como está, o imenso charme de Vidal transforma o superficial e indireto em virtudes inesperadas. Como exemplo, entre as muitas fotos incluídas em "Point to Point Navigation" há uma foto lisonjeira (é claro) de Vidal, em seus arrojados 30 e poucos anos, pairando sobre "Claire Luce", como a legenda soletra erroneamente seu primeiro nome. (Era Clare.)
Ambos estão elegantes em trajes de noite e ela olha para cima para ele, extasiada. Mas Luce não é mencionada em qualquer parte do texto do livro. E estão em uma festa em 1961 que Vidal não descreve. O que esta foto está fazendo aqui? O sentido, se é que há um, é que Vidal foi presidente do júri do Festival de Cinema de Veneza quase 30 anos depois. Esta foto foi tirada naquele que foi o estúdio de Robert Browning. "Cada um o citou equivocadamente", disse a legenda. E é isto: uma memória livre, breve, enganadora e divertidamente convoluta. Sua simples irrelevância em relação ao restante do livro é o que a torna tão perfeita.
"Eu observei recentemente a um gravador de passagem que já fui um romancista famoso", escreve Vidal com o típico acanhamento no início do seu livro. "Eu ainda estou aqui, mas a categoria não." Este tom de lamento zombeteiro é o que dá a "Point to Point Navigation" verdadeiro lastro e impede as memórias desgarradas do autor de se afastarem em todas as direções. Apesar do ritmo prolífico da produção de Vidal poder significar que há muito mais por vir, ele compôs este volume em um espírito de despedida. Ele partirá em uma nota de graça eloqüente caso este realmente venha a ser seu último.
"Aqueles de nós cujas carreiras começaram no século 20 agora estão rapidamente fugindo do 21, por um bom motivo", escreve Vidal, que diz estar com a saúde frágil e no mês passado completou seu 81º aniversário. Ele considerou chamar este livro de "Entre Obituários" e, novamente, por um bom motivo.
Suas passagens mais comoventes descrevem a morte de seu amado companheiro por 53 anos, Howard Auster. Vidal inclui uma foto de si mesmo perto do que será seu túmulo compartilhado. Auster está enterrado no Rock Creek Cemetery em Washington, "como estarei no devido tempo", escreve Vidal brejeiramente, "quando eu descansar de minha agenda movimentada".
O espírito de adeus se estende a muitos amigos e colegas perdidos, resumido nos sentimentos que veriam entre afetuosos e felinos de Vidal, de forma que Susan Sontag é lembrada como "a vencedora de muitas rusgas em sua longa campanha contra o esquecimento". Se há um tom cáustico, competitivo, em sua avaliação da obra dela, também há um apreço irônico com o local de descanso final dela em Paris, perto dos de Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre.
"Nada mal para alguém formada em Hollywood High", ele escreve.
Qualquer um com ligações com Roosevelt-Kennedy-Fellini-Earhart-Garbo-Capote-Tennessee Williams (e muitos mais) poderia transformar sua autobiografia em algo razoavelmente glamouroso. Mas Vidal, que não precisa se esforçar para fazer estas referências, consegue tanto explorar como ofuscar a todas. Sua sagacidade, da qual Vidal se gaba tanto quanto outros, é de longe o atributo mais atraente deste livro. E quando se trata de entretenimento contencioso, nenhum alvo está a salvo - certamente não este jornal, pelo qual ele nutre uma aversão cômica, que queima lentamente.
Um dos grandes dons estilísticos de Vidal é sua capacidade de estruturar seus pensamentos da forma como outros fabricam guarda-chuvas. Considere esta lenta abertura sobre "uma dama transatlântica" chamada Alice Pleydell-Bouverie: "Ela era ao final mais inglesa que americana e vivia em uma espécie de solar inglês próximo da vila de Rhinebeck, às margens do Rio Hudson, não distante de seu incessantemente irritável e irritante irmão Vincent Astor, que era dono de grande parte de Nova York". Em um microcosmo, isto ilustra como todo o livro funciona. Vidal começa com pequenas observações que crescem até ascenderem à devida grandiosidade - e grandeza.
Como qualquer homem que pode escrever sobre si mesmo que "ao contrário da lenda, eu nasci de uma mulher mortal, e se Zeus me gerou, não há registro no Cadet Hospital na Academia Militar dos Estados Unidos", Vidal está bem interessado em sua própria lenda. Ele passa a parte menos interessante deste livro fazendo objeções esquivas a críticos e biógrafos, casualmente mencionando que um grande número deles tem dedicado grande interesse à sua vida e obra. Mas se uma acadêmica escreveu que Vidal "explora as congruências entre as críticas do determinismo genético, genital e tecnológico", ele não precisa necessariamente repetir suas palavras.
No final ele é sua própria melhor propaganda, com uma vida digna de observações cortantes e insights combativos e afiados a seu crédito.
Adicione vaidade, arrogância e audácia na mesma escala, e você tem um homem cujo novo livro de memórias e imperdível. Certamente ele seria o primeiro a concordar.

Janet Maslin - The New York Times

Tradução: George El Khouri Andolfato

terça-feira, novembro 28, 2006

Victor Brecheret - Santa ceia

sexta-feira, novembro 24, 2006

Diario de um Cucaracha


Henfil

Reli, há alguns meses, este Diário do Henfil depois de ter vivido, eu mesma, a experiência de cucaracha. Sei que há duas versões deste livro, uma com a foto, muito realista, da barata e uma edição, soit disant, feminina, sem a barata. A edição que eu tinha, há uns 15 anos, era com a bendita barata, alguém me deu de presente ou me repassou o livro, não me lembro mais e, tampouco, sei onde ele se encontra hoje. A edição que reli agora e que meu irmão comprou no sebo (vai ver é o mesmo livro dando voltas) traz também a barata horrorosa. Isto para dizer que nunca vi essa edição sem a barata….

O livro é bacana, engraçado e por vezes triste. Foi escrito quando Henfil estava nos Estados Unidos procurando um tratamento para a hemofilia, em 1973. Encontrei aqui neste Diário de um Cucaracha uma das melhores explicações para Thanksgiving, eu também tinha dificuldades em entender o significado da data, como todos os estrangeiros. Segundo Henfil:

“Impressiona mesmo é ver este traço da forte e preservada cultura Americana. A história parece que começou no tempo dos pioneiros, que, um dia, vendo que finalmente tinham conquistado e dominado a terra (dos índios), resolveram dar graças a Deus. Isto há mais de um século. Aí fizeram um festão e foram convidar quem? Os Indios. Que, Segundo a gravura dos livros escolares, estavam ressabiados olhando a alegria religiosa dos novos senhores da terra. E, nessa primeira festa, o peru foi acompanhado por uma frutinha vermelha que serviu muitas vezes de alimento para os pioneiros esfomeados. Pois bem, Zé, esta frutinha nativa foi conservada no hábito da festa e até hoje é comida junto com o peru. Mas é ruim, quase intragável.”

A tal frutinha a que ele se refere é cranberry, a fruta em si não é ruim* mas o modo como a preparam para o tanquisguívim* é mesmo quase intragável.

Henfil começou sua carreira na revista Alterosa, em Belo Horizonte, onde trabalhava com o escritor Roberto Drummond que sugeriu a assinatura Henfil ao invés de Henrique de Souza Filho ou Henriquinho, como era chamado pelos amigos. O engajamento político de Henfil e seus irmãos é conhecido, lutou contra a ditadura, pelas diretas já, pela anistia, enterrou os pelegos (simbolicamente, claro. Um dos enterrros mais conhecidos é o de Elis Regina por causa de uma apresentação para o exército). Neste período em que viveu nos Estados Unidos, chegou a negociar um contrato com Universal Press Sindicate para a publicação dos seus fradinhos (Mad Monks em inglês), porém, o público americano ficou tão chocado com o personagem que o acordo foi desfeito. Seus personagens mais conhecidos são: Fradim Baixim, Fradim Cumprido, Graúna, Capitão Zeferino, Bode Francisco Orelana.

Henfil, um dos maiores cartunistas que o Brasil já teve, morreu em 1988, ainda não tinha completado 44 anos.

.....
*Parece que hoje em dia é possível encontrar esta fruta no Brasil
*Grafia de Henfil.


Diário/cartas de NY, 1973

Leila Silva Terlinchamp - Cadernos da Bélgica


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terça-feira, novembro 21, 2006

“O leopardo”: entre Lampedusa e Visconti



O Leopardo - Il Gattopardo
1963
Luchino Visconti


Com: Burt Lancaster (Don Fabrizio Salina), Claudia Cardinale (Angélica), Alain Delon (Tancredi), Paolo Stoppa (Don Calogero), Rina Morelli (Maria Stella), Romolo Valli (Padre Pirrone)

Uma excelente notícia para os cinéfilos, no fim do ano passado, foi o aparecimento, em DVD, da versão integral de “O leopardo”, em geral considerado a obra-prima do cineasta Luchino Visconti, em edição dupla, com muitos comentários e informações extras É uma produção mitológica, de 1963, que foi cultuada por outras gerações. Os cinéfilos sempre se queixaram de que a cópia existente em VHS deixava muito a desejar e o filme ficou esquecido por muito tempo.. Agora, o trabalho, cujo esplendor depende muito da fotografia de Giuseppe Rotunno (que fez também a de “Amarcord”, de Fellini), volta à sua glória.
Aconteceu comigo o que acontece com muita gente que milita na crítica cinematográfica do país: conhecia o filme, não conhecia o livro que lhe dera origem. No Natal passado, decidido a ignorar a chateação das festas de fim de ano, isolei-me o quanto pude e dediquei-me à leitura desse “O leopardo”, escrito pelo italiano Giuseppe Tomasi de Lampedusa. Descobri o que muita gente, claro, já sabia – que o escritor, também Príncipe de Lampedusa e Duque de Parma, nascido em Palermo em 1896, foi grande. Mas, curiosamente, passou 25 anos engendrando esse romance histórico, que transcorre em sua Sicília natal, baseado na figura de seu avô, e só há de seu – encontrável nas livrarias do Brasil, em pocket da LP&M - um outro livrinho de contos chamado “Histórias sicilianas”, que é engenhoso e tem encantos, mas não teria significado maior se não fosse do autor de “O leopardo”.

Quando decidiu pôr no papel a idéia que o obcecou pela vida toda, Lampedusa escreveu o seu romance com relativa rapidez, entre 1955 e 1956, e terminou-o poucas semanas antes de morrer. Parece bem o caso de um autor que, literalmente, viveu grávido de uma obra e tinha que pari-la, antes de ir-se para outro mundo. Não é um caso muito comum na vida literária, ou melhor, pode-se dizer que muitos escritores sonharam anos e anos com realizar uma obra que lhes era uma idéia fixa, mas a qualidade da obra realizada já em caminho fúnebre por Lampedusa é singular e faz pensar em Proust.


Elegia para uma classe

O melhor, no caso, é concentrar-se nessa obra. A muito conhecida saga do Príncipe Fabrizio Salina (conhecida mais por obra do filme de Visconti, sem dúvida) é um livraço, e parece que ninguém mais o lê, o que é para lá de lastimável. É uma prosa realista, cortada e recortada pela ironia, e é também de uma poesia melancólica, poesia da decadência – e nada mais apropriado para relatar o ocaso de um homem que personifica, sozinho, toda a aristocracia italiana, na época ameaçada pelas tropas revolucionárias de Garibaldi.
Salina – e a classe que representa – está em agonia. Antes de morrer, porém, ele tomará uma consciência cada vez mais precisa do mundo que representa e dirá uma frase célebre entre políticos e outros áulicos da classe dominante – “É preciso que alguma coisa mude para que tudo fique como está”. Sabe que essa agonia é, afinal de contas, relativa.
Muita gente cita essa frase como reveladora da perfídia dos senhores toda vez que uma revolução se aproxima – no Brasil, um bom equivalente seria o famoso “façamos a revolução antes que o povo a faça”, brado de nossas elites políticas, que podem ser acusadas de tudo, menos de não serem maquiavelicamente astutas. Assim, o nosso Príncipe siciliano não acha estranho que seu aristocrático sobrinho, Tancredi (no filme, vivido por Alain Delon), se engaje com os revolucionários. Parece um desses velhos ricos e conservadores que, espertos, sabem que os homens jovens de sua prole devem dar vazão a seu “sangue quente”, à sua mocidade, fazendo essas coisas que a juventude sempre faz – ou seja, dar-se a emoções fortes, inclusive as de uma guerra revolucionária, seguramente voltando para a casa dos mais velhos assim que a razão – e a necessidade – esfria seus ânimos e faz passarem seus faniquitos. Ele, apesar de todo o seu refinamento, de toda a sua superioridade intelectual sobre aquela gente siciliana que o cerca, é essencialmente pragmático, e casa Tancredi com Angélica, filha de um vulgar dono de terras que, como arrivista, está crescendo economicamente. Faz-se o enlace da superioridade aristocrática – que o homem rico e reles deseja – com o dinheiro – que os aristocratas precisam, para manter a pose, que outra coisa não têm mais. Conhece-se milhares de laços do gênero e variações. Em Lampedusa, isso avança – mais tarde, o Príncipe será consumido por um devastador auto-desprezo, porque tudo isso que ele faz por lucidez, faz contra seus princípios, seu refinamento, sua sofisticação estética, seus horizontes morais.
Lê-se o livro com uma admiração constante, pela emoção elevadíssima e poética contrabalançada pelo realismo duro. Apaixonamo-nos por aquela gente – a família de Salina e até seu cão, Bendicó. Essa gente, como a gente de todo grande romance, tem uma vida que ultrapassa tempo e circunstâncias.
É preciso suportar – e observar com lucidez – o que a família faz. Por exemplo, sair em plena guerra para passar uns dias ociosos numa estância de sua predileção, carregando seus criados e suas cestas de piquenique. É aterrador, mas não é assim que nossos senhores, os ricos, sempre foram e sempre são? E Lampedusa observa esses ritos com tranqüilidade, com certa nostalgia, e, no entanto, é tão implacável o realismo com que são descritos que não podemos achá-lo senão um grande escritor, sem cair na tolice de rotulá-lo como um “direitista decadente”, à velha maneira dos adeptos de Luckács. Esses ritos ficam imortalizados pela câmera de Visconti, que é um especialista em “decadência aristocrática” (basta que se lembre o grande “Senso” ou “Sedução da carne”). A suntuosidade do livro encontra eco mais que apropriado na suntuosidade do filme.
Há sempre um tom melancólico nesse luxo, e alguns compararam o filme de Visconti um pouco a “...E o vento levou”. Com isso na cabeça, alguém que não conheça a produção, chegando na abertura à mansão Salina, com a fotografia arrebatadora de Rotunno e a música maravilhosa de Nino Rota, poderá achar que está vendo uma réplica da Tara que Scarlett O´Hara preservou, a ferro e fogo. Mas o filme é pouco hollywoodiano, sua grandiosidade é de outra espécie. Lá está a família, reunida em torno do Príncipe, rezando uma ave-maria em latim, quer dizer, tentando rezá-la, enquanto das cercanias da mansão emergem gritos persistentes, que atrapalham a oração. Levam-na até o fim, de qualquer modo, exasperados, e saberemos que se tratava do barulho de empregados da casa ao encontrarem um soldado jovem, garibaldino, morto no pomar. Essa cena define todo o filme, magnificamente. A Morte ronda esses ritos fabulosos, há cheiro de cadáver – de revolução, de mundo a mudar – logo ali fora; não é possível rezar placidamente, em torno do velho patriarca, nem nunca mais será. Esse tom elegíaco percorrerá, como um arrepio, como uma brisa de piores presságios, toda essa belíssima produção.

Fidelidades e omissões

É surpreendente constatar como Visconti foi fiel a Lampedusa. Esse seu filme é, seguramente, ao lado de “Os inocentes” (adaptado de “A volta do parafuso”, de Henry James), a melhor adaptação de uma obra literária feita pelo cinema. Eu tinha a figura de Lancaster na minha cabeça, onipresente, enquanto lia a prosa de Lampedusa. Revendo o filme, senti que a fusão chegava perto da perfeição. Visconti fez com que tudo convergisse para a cena do grande baile (com valsa de Verdi), quando o espectador entende que aquele mundo feérico se esboroa, tudo passando pelo rosto do Príncipe, cuja velhice é constatada numa cena antológica, quando Lancaster (que ator ele se provou!) confronta-se com sua velhice no espelho.
Eis onde grandes artistas, e diferentes artes, se encontram: Visconti, admirador de Proust, filmou o baile elegíaco como se estivesse filmando “O tempo redescoberto”, último volume do septeto de Marcel, quando o escritor francês mostra todos os seus personagens num fantástico baile de espectros, envelhecidos, e expõe os fios do Tempo com toda a nitidez. Sabemos que é um mundo que se acaba, que aristocratas se fundem a burgueses de modo a não mais se distinguirem uns dos outros e que qualquer arrivista ou aventureiro americano já pode fazer parte daqueles salões da velha aristocracia caduca, que vive de seus sonhos em formol. E isso é ainda melhor porque, claro, Lampedusa era um proustiano. Ora, nada é mais proustiano que a decadência do Príncipe, que entrega seu sangue – Tancredi – a um burguês cuja única virtude é ter dinheiro (não há nem haverá nenhuma outra).
O espectador que tenha se envolvido profundamente com o filme sentirá até mesmo o fastio típico dos fins de festa, quando a madrugada se aproxima, os convivas vão se dispersando, e os gestos indicam que o sono tomou conta deles, que a grande ilusão se desmanchou e a banalidade da vida retoma seus direitos. É aquela hora da madrugada em que um friozinho tudo percorre, e, enquanto víamos aqueles corpos rodopiando, aquelas conversas, os mundanos estúpidos, os militares, as mulheres que deixarão de ser jovens e tagarelas daquele jeito dentro de certo tempo, não pensávamos nisso, mas a finitude está no epicentro dos prazeres, da vida social, e ninguém escapará. Com um naturalismo supremo, Visconti nos colocou na palpitação sensorial dessa idéia filosófica, de tudo isso, e só com imagens.
Mas há infidelidades, porque um filme é sempre um filme, e certas elipses são feitas necessariamente para que se erga como obra de arte autônoma, embora dependente de um texto e tão reverente a ele. O livro de Lampedusa não se encerra nesse baile, continua por muitas páginas ainda. Visconti, tendo filmado o talvez mais longo baile da história do cinema, termina com um plano distante de Lancaster na rua, numa vila siciliana ao amanhecer. O Príncipe dirige uma prece às estrelas e enfia-se por uma rua lateral, desaparecendo. Sabemos, sentimos que acabou-se, que, a partir daí, só fará esperar o momento de baixar à cova. Ainda assim, esse final teria tido mais força se, como no livro de Lampedusa, fôssemos introduzidos com mais clareza ao fato de Salina ser astrônomo reputado, de volta e meia citar estrelas, mas Visconti nada nos deu nesse sentido.
Mas, filmes assim têm que ser revistos sempre. Provam que o grande cinema resiste e que não precisamos nos desesperar com a enxurrada de ruindades que está por aí. Basta que não demos bola para ela e procuremos, em locadoras mais refinadas, o que de fato importa.

Chico Lopes

segunda-feira, novembro 20, 2006

Victor Brecheret - Eva


Lobato escreveu, em "Idéias do Jeca Tatu", sobre Victor Brecheret: "A mais séria obra de escultura que até hoje apareceu em São Paulo foi também uma Eva, a de Rodin. Dá-se essa classificação, primeiro por ser de fato uma obra prima, segundo o ser assinada pelo grande Rodin. Pois bem: diante da “Eva" de Brecheret, ora exposta na casa Byington, perde a de Rodin o primado absoluto e passa a ser ombreada por um rival, igualmente obra prima, e só inferiorizada pelo fato de a assinar um escultor brasileiro de nome ainda não trombeteado pelas buzinas da fama".

Aluízio Alves Filho
Revista Achegas

sexta-feira, novembro 17, 2006

A jovem Marguerite Duras e a verdade sobre seu amante

Cahiers de la Guerre et Autres Textes
Editora POL
Espanha

Acreditávamos que Marguerite Duras (Saigon 1914-Paris 1996) já tivesse contado tudo. Sobre sua infância pobre e feliz na Indochina, sua adolescência dramática no mesmo país, sobre sua difícil juventude, seu compromisso político, seus amores. Cadernos escritos entre 1943 e 1949 e que permaneciam ocultos em um armário desde que o IMEC (Instituto Memórias da Edição Contemporânea) os herdou após a morte da escritora, eles vêm completar o que sabíamos e, sobretudo, a mudar o tom do relato.
A editora POL publica, na Espanha, as 446 páginas sob o título de "Cahiers de la Guerre et Autres Textes" (Cadernos da guerra e outros textos). Por exemplo, para qualquer conhecedor da obra de Duras, a figura da mãe, como aparece no formidável "Uma Barragem contra o Pacífico", é a de uma mulher que luta contra o destino, uma heroína desesperada que enfrenta as ondas do oceano assim como luta contra a corrupção administrativa.
Se lembrarmos "O Amante", também lembraremos a delicadeza do amante chinês, sua paciência de homem apaixonado e o mistério dessa espera. A dor nos põe diante do regresso, do campo de concentração, de Robert Antelme, antropólogo e escritor de um único livro, "A Espécie Humana".
Em outros livros Duras nos põe em contato com o mundo em que viveu após o fim da Segunda Guerra Mundial. Trata-se de "O Marinheiro de Gibraltar" ou "Os Cavalinhos de Tarquínia", que lembram as férias italianas de Duras com seu marido, seu amante Dionys Mascolo e seu amigo editor e escritor Elio Vittorini.
Os cadernos que aparecem agora privam a mãe dessa grandeza de loucura de tragédia grega e a mostram como uma lutadora desequilibrada, como alguém que não suporta a menopausa, que tem grandes dificuldades para controlar filhos e criados, alguém que empurra sua filha para a prostituição para que seu amante lhe pague, a ela também, noites de álcool em Saigon, longe da casa em ruínas que não fica em frente ao Pacífico, mas diante do mar da China.
"Minha mãe foi para nós uma vasta planície pela qual erramos durante muito tempo sem encontrar sua dimensão", escreve Marguerite, referindo-se à difícil relação entre a mãe e seus filhos.
A vergonha da pobreza, de ser uma francesa colonizadora pobre, aparece em todas as notas de Duras. "Era a podridão de Saigon", diz sobre si mesma, repetindo alguns rumores segundo os quais "me deito com os indígenas". Nesse momento "tinha 15 anos e Léo ainda não havia me tocado". Vai sozinha ao cinema e não tem dinheiro para pagar uma poltrona entre a colônia francesa. "Quando cheguei as luzes estavam acesas. Era muito cedo, a sessão não havia começado. Ao fundo da platéia havia as três fileiras ocupadas por franceses. Tive de atravessar todo o cinema sob o olhar da platéia. Sozinha. Ninguém a acompanhava quando você ia para as cadeiras populares. Não dei um passo atrás. A travessia da sala por minha personagem se deu em meio ao profundo silêncio provocado pela própria aparição da personagem. Lembro que não lembro como caminhei. O mundo inteiro me olhava. Nunca tinha visto uma branca naquelas fileiras de cadeiras.
Tudo, sabia tudo o que pensavam e eu o pensava ao mesmo tempo. Tudo dançava diante de meus olhos e eu me sentia em um estado de irrealidade avançada. Mantinha uma relação estreita com a vergonha. Era a vergonha em marcha. Simplesmente, era ridícula."
A literatura, a capacidade de relacionar esse momento de angústia com a construção de uma vida, dentro da estrutura de um relato, havia dado outra dimensão a essa vergonha. Ela, a heroína dos romances, luta contra a vergonha ou é derrotada por ela mas a transcende, a situa em um contexto novelesco. No fragmento a jovem Marguerite encontra-se "sentada em uma cadeira de vime, transpirando a mar, com a bolsa nos joelhos" e a espera torna-se interminável até que as luzes se apagam e o filme lhe permite escapar do mundo.
A mãe a agride. O irmão mais velho bate ainda mais forte. "Pensei que meu irmão fosse me matar." Ele a atira de cabeça contra um piano. Os golpes acabam por jogá-la nos braços de Léo, o amante chinês, na realidade anamita.
E muito menos distinto e belo do que no romance: "Senti de repente um contato úmido e fresco em meus lábios. A repulsa que me causou é literalmente indescritível. Empurrei Léo e cuspi. Léo não sabia o que fazer.
Um feto tinha me beijado, a feiúra havia entrado em minha boca, havia comungado com o horror. Cuspi em um lenço, cuspi sem parar, cuspi a noite toda e no dia seguinte, ao lembrar, cuspia de novo."
Nem tudo remete aos anos na Indochina. Duras também opina sobre De Gaulle e se indigna quando este consegue capitalizar para si o trabalho da Resistência, opina sobre literatura e manifesta sua admiração por Rimbaud, Shakespeare, Dostoiévski ou Molière e seu tédio diante de Madame de Sevigné, Corneille ou Racine. "Prefiro as obras filhas da inspiração do que as que são fruto da inteligência humana. Na realidade só sou sensível à inteligência dos animais", disse, e relaciona essa atitude ao dano que lhe causavam os insultos - lixo, porca, verme - que lhe dispensava seu irmão e que ela considerava merecidos.
E, como sempre acontece nesses casos, idênticos às exposições que nos mostram os esboços mais ou menos inspirados que depois se transformaram em uma pintura imortal, somos obrigados a nos perguntar sobre o interesse real desses cadernos. Eles permitem ler a obra de Duras sob uma nova luz? A personagem ganha outra dimensão? O caráter abertamente autobiográfico da criação de Duras faz que os cadernos tenham um valor especial, que sejam lidos como parte integrante de um todo, como um capítulo a mais de um único livro que envolve romances, ensaios, teatro ou cinema. Em todo caso, ficam mais de 40 caixas de notas pendentes de leitura e análise.

Octavi Martí

El Pais

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

quarta-feira, novembro 15, 2006

Victor Brecheret - S. Francisco - afresco

sábado, novembro 11, 2006

Morte em Veneza

Morte em Veneza
Thomas Mann
Editora Nova Fronteira
Tradução de Eloísa Ferreira Araújo Silva

Ainda não assisti ao filme homônimo de Visconti (que imagino seja realmente tão belo quanto dizem), falha que pretendo corrigir em breve. Aqui trato apenas do livro, que li há muito tempo (nos anos 80, se não me engano). Eu deveria mesmo relê-lo para comentar adequadamente, mas não o farei: vou deixar que minha memória me ampare. O que mais me impressionou no livro foi perceber a que ponto determinadas obsessões podem chegar; os infinitos desdobramentos de fantasias pessoais tendo como base um outro que ignora inteiramente todo o universo de (im)possibilidades criado a partir dele; as "viagens" alucinantes desencadeadas a partir desse irrealismo materializado, do prazer e dor pela não-concretização do que só existe na mente de alguém que se desintegra aos poucos e — o mais estranho — conscientemente.
Combinando reminiscências da cultura grega com a idéia de decadência que dominava a Europa de então — às vésperas da Primeira Guerra —, Thomas Mann condensa em Morte em Veneza algumas de suas questões mais caras: a tensão entre o artístico e o natural, a luta contra a passagem do tempo e a decadência do corpo, e a doença como metáfora de um mundo em agonia.
Estamos nos primeiros anos do século 20, e o escritor alemão Gustav von Aschenbach está inquieto em sua velha Munique. Tomado por "uma espécie de vago desassossego", Aschenbach decide partir para Veneza. Considerado um dos mais importantes escritores de seu país, laureado com título de nobreza, Aschenbach representa o modelo do artista rigoroso, racional, ascético, obcecado com a perfeição da forma e a beleza ideal. Ao chegar à cidade italiana, ela mesma uma rara materialização do belo, Aschenbach hospeda-se em um luxuoso hotel à beira-mar. É aí que encontra o adolescente Tadzio, cuja beleza natural superava todos os esforços da arte. Fascinado pela perfeição física do jovem, o artista sucumbe a uma paixão platônica que o levará à ruína.
Thomas Mann nasceu em 1875, em Lübeck (Alemanha), filho de um rico burguês alemão e de uma brasileira. Após a morte de seu pai, em 1891, mudou-se para Munique, onde freqüentou os círculos intelectuais da universidade local.
Após trabalhar em um escritório de seguros e editar o jornal satírico-humorístico, Simplicissimus, fechado quando da implantação do regime nazista, ele resolveu dedicar-se exclusivamente à literatura. Seus primeiros contos estão reunidos em O Pequeno senhor Friedemann (1898). Em 1901, sacudiu meios literários europeus com a novela Os Buddenbrooks, baseado na decadência de sua própria família.
Em 1912, lançou Morte em Veneza , considerada uma de suas obras-primas.
Em 1924, Mann publicou A Montanha Mágica, obra onde ele compara o mundo, especialmente a Europa pós Primeira Guerra Mundial, a um sanatório de tuberculosos.
Recebeu o Prêmio Nobel de Literatura de 1929 e, quatro anos depois, quando Hitler se tornou chanceler na Alemanha, mudou-se para a Suíça e passou a editar o jornal Mass und Wert.
Nessa época Mann deu início à tetralogia bíblica sobre José, com o livro José e seus irmãos (1933), obra que condena o racismo em geral e o anti-semitismo em particular.
Em 1938, mudou-se para os Estados Unidos e lecionou na Universidade de Princeton. Entre 1941 e 1952, estabeleceu-se ao sul da Califórnia, recebeu o título de cidadão norte-americano e publicou Doutor Fausto (1947).
Mann visitou diversas vezes a Alemanha Oriental e Ocidental depois da Segunda Guerra, mas recusou-se a voltar a viver em qualquer uma delas. Em 1952, mudou-se para Zurique, onde faleceu, em 1955.

Wagner Campelo

segunda-feira, novembro 06, 2006

Dashiell Hammett e os mistérios da criação literária: um depoimento



É lícito, tem cabimento comentar a coletânea de contos de Dashiell Hammett, Tiros na Noite, agora lançada pela Editora Record, na primeira pessoa, em tom autobiográfico?
Ao menos, permitirá que fale de modalidades da leitura e da conexão entre criação literária e vida.
E meu depoimento mostrará que sou inocente! Que me aproximei da obra de Hammett, a ponto de acabar por lê-la toda e escrever um poema em sua homenagem, de modo involuntário. Que não cheguei lá por causa do mito, da projeção na mídia, de Humphrey Bogart no filme de John Huston, das biografias, de Lilian Hellmann, do registro da luta heróica contra o macarthismo. Tudo isso, para mim, veio depois.
No início dos anos 70, tinha à disposição um acervo ilimitado, em edições alemãs, de histórias de crime, detetives e policiais. Não era adepto do gênero. Passei a lê-las com um propósito: melhorar meu alemão. Os pequenos volumes das séries Krimiromanen, Rote Krimi etc., prestavam-se a isso pelo seguinte: alemão erudito é uma coisa, coloquial é outra - daí haver gente que aprende informalmente, falando, e comete erros, enquanto outros estudam a língua pelo caminho formal, mas não adquirem fluência. E aquelas narrativas, traduzidas, a maioria, do inglês, situavam-se a meio caminho entre um repertório e outro, o hochdeutsch, a norma culta, e o vulgar, quase plattdeutsch, possibilitando acesso a ambos.
Por isso, fui em frente. Encarei pilhas de relatos, a maioria de reduzido interesse. Os enredos de investigador inteligente, protagonizados por Nero Wolfe, Poirot etc., capazes de deduzir soluções de crimes, não me atraíam. Nem as histórias com um viés policial, como as de Ed McBain. Erle Stanley Gardner me deixou frio. Edgar Wallace, achei pré-histórico. Reconheci qualidades no arqui-violento James Hadley Chase, capaz de mostrar como eram as coisas pelo lado da bandidagem, especialmente em seu melhor livro, No Orchids for Ms. Blandish (em alemão Ein Grab voll roter Orchideen, um túmulo cheio de orquídeas vermelhas). Impressionou-me um autor chamado Richard Stark, de quem nunca mais vi nada, com sua história, na primeira pessoa, de um criminoso da pesada que empreende uma vingança e acaba arrebentado em uma cama de hospital, jurando que sairia dali para pegar quem o havia traído. E só. Do restante, retinha vocabulário, mais que enredos e construção da narrativa.
Isso, até chegar a vez de Hammett, na edição alemã dos contos de The Continental Op, O Detetive da Continental. OK, confesso que o prefácio de Lilian Hellmann, traçando o perfil de Hammett, despertou minha atenção para o que viria a seguir. Mas aqueles enredos onde predominava a ambivalência, sua linguagem precisa, direta, o estilo inigualável de quem escreve movido por um sentimento de urgência, achando que ia morrer de tuberculose, com pressa de dar seu recado, querendo contar o que havia visto enquanto trabalhava como detetive da agência Pinkerton, retratar a visão de mundo constituída por essa experiência sem perder tempo com literatices, enfeites e exibições de inteligência - tudo isso me mostrou, imediatamente, que estava diante de outra coisa, de algo com nível e propósitos distintos do que havia lido até então.
Com redobrado interesse, peguei, na seqüência, O Falcão Maltês. Daí em diante, não interessava mais tornar-me o homem que sabia alemão, através do método cômodo que havia inventado. Fui atrás das edições brasileiras e americanas. Li tudo: as narrativas longas, Estranha Maldição (The Dain Curse), A Chave de Vidro (The Glass Key), Ceia dos Acusados (The Thin Man), as coletâneas de contos, as publicações póstumas explorando seus fundos de gaveta, mais duas biografias, uma delas piegas, de Diane Johnson, outra não mais que correta, de Richard Layman. Ainda li Raymond Chandler, o autoproclamado seguidor, com sua obra desigual, embora pelo menos com um grande livro, O Longo Adeus; e mais a biografia de Chandler por Frank MacShane. Aventurei-me por autores mais modernos, como Ross MacDonald - mas esses já não me provocaram a mesma impressão, achei-os narradores competentes e não mais que isso. Quanto a Elmore Leonard, principal best-seller do gênero nas últimas décadas, o preferido de Hollywood (sua adaptação mais importante é Jackie Brown, de Tarantino), gostei do tratamento burlesco de personagens, da vivacidade e atualidade - porém, de novo, nada que impelisse a ir atrás do restante da obra.
Assim, foi a obra de Hammett que me pegou e proporcionou uma dessas experiências de revelação literária, leituras que são descobertas, análoga à que havia tido com poetas ou com prosadores qualificados em um repertório mais refinado. O paroxismo da descoberta foi quando, certa noite, abri uma edição dos seus contos do início dos anos 20, do Continental Op e da revista Black Mask, intitulada A Ferradura Dourada, com o excelente estudo introdutório de Steven Marcus, editado pela Civilização Brasileira (Hammett é um fantasma editorial, com as mesmas obras reencarnando no Brasil, sucessivamente, nos anos 30 através da Globo, nos anos 60 e 70 pela Civilização, logo em seguida pela Francisco Alves e Companhia das Letras, e agora na Record). Empreendi uma daquelas leituras de uma enfiada só, começando por volta das 8 para, alta madrugada, apagar simultaneamente o abajur e a consciência ao virar a última página. Despertei com o poema na cabeça, e fui escrevendo enquanto tomava café. Mais tarde acrescentei algo, conferi citações - mas Homenagem a Dashiell Hammett, publicado em 1981 em Jardins da Provocação, e que depois andou freqüentando antologias, inclusive, talvez como alusão às tentativas de aprender alemão na origem dessas leituras, Modernismo Brasileiro und die Brasilianische Lyrik der Gegenwart de Curt Meyer-Clason, esse poema saiu de modo espontâneo, direto, embora possa parecer construído, montado peça por peça.
E daí? A propósito de que esse culto, essa apoteose em torno de Hammett? Por várias razões, é claro. Uma delas, que a literatura norte-americana em prosa do século XX tem seus fundamentos em um punhado de narradores de grosso calibre, bem distintos uns dos outros, a maioria deles também grandes personagens biográficos, começando por Jack London e incluindo Hemingway, Fitzgerald, o próprio Hammett, Henry Miller, Malcolm Lowry, Paul Bowles, Jack Kerouac, William Burroughs. Aventureiros na escrita e na vida pessoal. Personagens de si mesmos, com alguma particular comunicação entre o que viveram e escreveram. Sua força vem daí, da autenticidade decorrente de, sendo cultos, nem por isso serem literatos de gabinete, acadêmicos, scholars, formalistas, burocratas da escrita.
Em Hammett, a conexão entre literatura e vida é radical e se processa de modo especialíssimo. Sustentei isso em outras ocasiões, e insisto: o melhor dele são os contos da fase inicial. Com o tempo, ganhou em fôlego e ambição, mas Estranha Maldição (The Dain Curse) é reciclagem de contos, emendados um ao outro. Sua última narrativa, A Ceia dos Acusados (The Thin Man) é, notoriamente, a mais fraca. Mesmo na obra-prima, O Falcão Maltês, há reaproveitamento de contos e inconsistências. Seu livro mais bem-acabado é aquele mais próximo do romance social, A Chave de Vidro. Encerrado o período produtivo de 12 anos, não fez mais nada. Tentou, buscou outros caminhos, saindo da esfera das histórias de detetive, mas não conseguiu nem mesmo expandir lampejos de narrativa psicológica, a exemplo do belo conto Medo de Tiro, que está nesta coletânea, Tiros na Noite, sobre o covarde moribundo que, depois de seu único ato de coragem, quer refazer a vida para ir atrás de todos os que o haviam humilhado.
Que mistério é esse? Como é possível alguém, à medida que se consolida como escritor, que se insere em uma cultura literária (por mais que a desprezasse - contam que, ao saber dos elogios de André Gide, exclamou: Tell that fag to take his hands out of my books! - Mandem essa bicha tirar suas mãos dos meus livros!) e ganha em consciência do que faz, ir perdendo a capacidade de criação? Colocar a culpa no alcoolismo é insatisfatório: basta pensar em Malcolm Lowry, no modo como projetou seu porre no indispensável Under the Volcano, Sob o Vulcão. Ou em Raymond Chandler, que freqüentemente tinha que tratar-se e, mesmo assim, cresceu como narrador ao longo da sua vida, além de oferecer um interessantíssimo contraste biográfico com Hammett, pois o autor de Lady in the Lake, A Dama no Lago, começou como poeta e estudioso de literatura, para depois, aos 40 anos, inserir-se em Black Mask e adotar os relatos de detetive. Percorreram, ambos, Hammett e Chandler, trilhas biográficas opostas.
Quando começou a publicar em revistas, Hammett havia parado de trabalhar como detetive por causa da tuberculose. Escrever era o que lhe restava a fazer. Alguns dizem que escrevem para não morrer: ele escrevia porque iria morrer. Sua escrita inicial é aquela de um revoltado, e também de um cínico, de alguém que não está mais aí, cuja vida perdeu sentido. Sem jamais ser panfletário, quis mostrar, com base no que havia visto e feito para a agência Pinkerton (por exemplo, atuar como fura-greves e presenciar, quieto, a morte encomendada de um líder sindical, conforme bem observado na introdução de Tiros na Noite), que a sociedade era fundada em uma farsa, onde negócios, política e crime se confundiam. Narrativas de investigação, até então, eram constituídas por um dualismo, a polaridade entre investigadores e investigados, bem e mal. Hammett confundiu esses pólos. Para ele, eram parte de um todo, o fluxo caótico que vinha a ser o mundo. Soube retratar o microcosmo, o dia-a-dia do caos. As vívidas descrições de pancadarias em alguns dos contos de Tiros na Noite são metáforas do salve-se quem puder geral.
Metáforas: aqui entramos na questão do Hammett filósofo, do modo como traduz sua visão de mundo. E em suas digressões, interpolações, narrativas embutidas em outra narrativa (mise en abîme, poderíamos dizer, se isso não o ofendesse tanto). A mais significativa, conforme bem observado por Steven Marcus, a história, inserida em O Falcão Maltês, do homem que levantou a tampa da vida, que, depois de escapar por pouco de um cofre lhe cair sobre a cabeça, mudou de vida e de família, para, ao final, em outro lugar, com outra família, continuar levando a mesma vida, fazendo a mesma coisa que antes da experiência de revelação causada pela iminência de morrer. O próprio O Falcão Maltês é uma grande metáfora, onde todos os protagonistas fingem um para o outro e se destroem, na caça a um tesouro dentro de uma estatueta que, na verdade, era vazia, não tinha nada dentro.
O mesmo vale para outras digressões importantes, como a história de náufragos canibais em A Ceia dos Acusados. Já nos contos de Tiros na Noite esse procedimento é utilizado, quando um dos personagens, por sua vez, passa a narrar uma história, a serviço da argumentação pessimista e niilista de que a vida é regida pelo sem-sentido, e tudo fatalmente volta a ser o que era, nada é aquilo que parece ser, tudo é outra coisa.

Na década de 80 publiquei algo sobre Hammett, inclusive um ensaio absurdamente longo, umas 20 laudas, no Folhetim da Folha de São Paulo. Escreveria mais.

Claudio Willer Revista Agulha
Foto filme de John Huston com Gladys George, George, Barton MacLane, Mary Astor, Peter Lorre, Humphrey Bogart - 1941

sábado, novembro 04, 2006

Victor Brecheret


Victor Brecheret nasceu em Virtebo, na Itália, em 1894. Frequentou o Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, em 1912, onde aprendeu desenho e decoração. Em 1913, de volta à Itália, estudou escultura com Arturo Dazzi. Abriu seu primeiro ateliê em 1915, em Roma. Foi influenciado por mestres renascentistas, pelo impressionista Rodin e por Mestrovic. Retornou ao Brasil em 1919, tendo trazido idéias de uma escultura moderna. No ano seguinte, conheceu os escritores Oswald de Andrade e Mario de Andrade e o pintor Di Cavalcanti. Em 1921, com bolsa do governo de São Paulo, foi estudar em Paris. No ano seguinte, participou da Semana de Arte Moderna de São Paulo. Nessa época, sua produção passou por uma simplificação de formas, influenciado por Brancusi e pela Arte Decô.

Foi premiado no Salão da Sociedade dos Artistas Franceses, em 1925. Participou da fundação da Sociedade Pró Arte Moderna, SPAM, em São Paulo. Em 1936, iniciou a execução do Monumento às Bandeiras, obra projetada em 1920 e inaugurada em 1953. A partir do final dos anos 40, sua obra apresenta temas nacionais e indígenas e formas cada vez mais orgânicas e essenciais, como Mãe Índia, Luta dos Índios Kalápagos e O Índio e a Suassuapara. Essas duas últimas obras deram a Brecheret o prêmio de Melhor Escultor Nacional na I Bienal de São Paulo, em 1951.

O artista participou, ainda, das III e IV Bienais de São Paulo e XXV e XXVI Bienais de Veneza (1950 e 1952). Morreu em 1955 em São Paulo.
Fontes:

Monumento às Bandeiras. Parque do Ibirapuera - SP Detalhe.

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