domingo, março 30, 2008

A grande arte da luz e da sombra

A grande arte da luz e da sombra
Arqueologia do cinema

Laurent Mannoni,
Unesp/Senac

Apesar de tão jovem, mal acabou de completar pouco mais de cem anos de idade, a arte cinematográfica possui uma considerável quantidade de estudos historiográficos, biográficos, analíticos e até filosóficos. Apesar disso, considerada a arte do século XX mesmo que muitas vezes cotada a desaparecer principalmente por conta do aparecimento da televisão, ela abriu o século XXI com toda a pujança e força de uma adolescente feroz. Este enorme número de materiais de estudo acaba nos levando a alguns perigos: primeiro, a de nos conduzir a um falso sentimento de conhecimento e tranqüilidade; é como se já soubéssemos tudo o que pudesse ser sabido. Por outro lado, faz-nos desconsiderar alguns temas considerados “marginais”, “sem muita importância”.
Exemplo claro dessa ambivalência é o nosso posicionamento geral perante os primeiros passos do cinema. É comum considerar o cinema mudo e preto-e-branco (os charles-chaplins e harold-loyds da vida) como os antecessores imediatos, e infantis, do “verdadeiro” cinema, sério, bem construído e estruturado. Esta é uma falácia comum que ultimamente está sendo destruída passo-a-passo. É até chocante perceber o quanto este cinema “infantil” não tem, na verdade, nada de primário e que muito da arquitetura dramática de todo o cinema atual já existia desde o começo, totalmente estruturada e conscientemente utilizada.
O que dizer então da Pré-História do Cinema? Aliás, qual é mesmo o sentido desta frase? Vejamos: a base da existência do Cinema é a Fotografia, não é mesmo? Se o Cinema em si é uma ilusão de ótica provocada pela rápida sucessão de fotografias fixas, sua “pré-história” seria o desenvolvimento da própria arte fotográfica, certo? Pois é... Não! A Fotografia é um dos fatores fundamentais, sem dúvida, mas não é o único.
O que Laurent Mannoni faz é descortinar um imenso universo de uma história fantástica. “A Grande Arte da Luz e da Sombra” resgata a história dos homens preocupados em construir aparelhos que projetem imagens. Em movimento. É uma relação impressionante de aparelhos, experimentações, pesquisas. É uma história empolgante e fascinante, narrada com uma simplicidade e fervor que atiçam ainda mais a leitura.
Essa preocupação pela projeção da imagem é muito antiga, vai alem do final do século XIX, passa do XVIII. Mannoni começa sua história ali pelo século XIII! Mais: se formos sérios podemos regredir até à Antiguidade... Afinal, o princípio da Câmara Escura é conhecido por Aristóteles.
CAMARA ESCURA. Lição de Física Básica Escolar. ÓTICA: Tome-se um ambiente completamente vedado à luz, uma sala ou uma caixa. Faça-se um pequeno orifício em algum ponto do ambiente. No lado ou parede opostos ao do orifício, ficará refletida a imagem do ambiente exterior. Se a parede estiver coberta com um material apropriado, tela branca por exemplo, a imagem ficará mais nítida. Este simples experimento ainda hoje impressiona, imagine-se então para um Aristóteles. Com um agravante, um detalhe que fez muito cientista perder o sono pelos séculos afora: a imagem refletida estará de ponta-cabeça e invertida, isto é, da esquerda para a direita e vice-versa. Fenômeno curioso mas facilmente explicável pela Ótica atual.
Lembremos que a imagem não está, por natureza, fixa e sem movimento. Se o ambiente fechado for uma sala e o ambiente externo for uma rua, a imagem captará toda a movimentação.
Isso leva diretamente a duas preocupações: por um lado, a da fixação desta imagem; e por outro, um problema óbvio, o da luz, já que não é sempre que existe luz natural do Sol. Por exemplo: à noite! Uma vela então é um bom substituto, mas muito provisório. Uma lanterna, lampiões, são bem melhores, mas precisam ser bem construídos para que não pegue fogo na caixa, na tela ou no próprio projetista. Jogos de espelhos e vidros, com lentes invertidas, ajudam ainda mais. Com uma projeção familiar, tosca e simples, e ao mesmo tempo tão eficiente leva-se à questão de O Quê ser projetado: um desenho pintado em um vidro transparente, amplia as possibilidades ad infinitum. Será uma imagem parada, mas há um truque muito simples e prático: mexa a vela ou o lampião de um lado para o outro! Ou então faça vários orifícios e aí então mexa na vela.
Veja-se bem: estamos falando dos séculos entre o XIII e o XIX, onde a Câmara Escura, ricamente trabalhada, pesquisada, renomeada como Lanterna Mágica é um sucesso popular absoluto. E se tudo isso parece á primeira vista muito bobo, então é porque o leitor nunca foi a um circo ou um parque de diversões e assistiu a um show de transformações da Monga, a mulher-macaco. Os lanternistas, os mascates com um caixa de lanterna-mágica nas costas que percorriam a Europa com suas projeções populares e “miraculosas”, só desapareceram completamente nos primeiros anos do Século XX!
Minuciosa, detalhada e pacientemente, Mannoni nos revela todos os detalhes, todos os passos, todos os percalços, máquina por máquina, experimento por experimento, pesquisador por pesquisador, cientista por cientista.
Este lado da projeção e da iluminação é um viés. Outra vereda histórica é o da fixação da imagem. Que se liga, embora não seja uma relação direta, a uma pequena característica do organismo humano, especificamente o da retina, conhecida como “persistência retiniana” ou “persistência da visão”. Todos sabemos o que é isso. Se olharmos fixamente para a luz de uma vela ou lâmpada, continuaremos “enxergando” um pequeno ponto luminoso, mesmo que fechemos o olho. O grande físico Isaac Newton foi um dos pioneiros na explicação deste fenômeno. Ele olhava para o Sol e anotava quanto tempo a iluminação permanecia em sua vista. Obviamente, quase ficou cego: durante meses, não conseguiu se livrar de um círculo negro que embaçava seus olhos.
A retina retém por um certo tempo a imagem de um objeto. Se substituirmos rapidamente esta imagem por uma outra parecida, mas com uma certa posição diferente e mais outra imagem e outra... voilá! A impressão que teremos é que estas imagens (que sabemos serem fixas) darão a ilusão de estarem se mexendo. Portanto, se juntarmos este principio da persistência retiniana, com o desenvolvimento da fotografia ou o daguerreotopia, em uma sala escura e com uma iluminação apropriada... teremos o Cinema, certo?
Ainda não. Resta o grande problema de fazer com que estas fotografias se sucedam de uma forma harmônica para que a ilusão seja perfeita. É necessário um aparelho que a) pegue a foto (ou o desenho), b) coloque-a devidamente no foco de luz, c) substitua-a no tempo exato para que a imagem não se perca ou seja “esquecida e d) tudo isso precisa ser manobrado do modo mais eficiente para que tudo não fique embolada,a fita não se quebre, a lâmpada não se apague ou provoque uma explosão e taque fogo na sala, na máquina, no projetista, etc e tal.
Uma grande sacada foi fazer pequenos furos nas margens das fotos, coloca-las em um mecanismo de roldanas com varetas que penetram nos furos, puxando-as e movimentando-as, com um motor que imprime um ritmo regular.
Mannoni descreve cada um destes aparelhos, sua sucessão e seu desenvolvimento: o coreutoscópio giratório, o estereoscópio, o bioscópio, o fantascópio, o fotobioscópio, passando pelas fantasmagorias e os polioramas, a fundamental zoopraxografia, a cronofotografia, o fonoscópio, o praxinoscópio, desembocando no quinetoscópio e no quinetógrafo. Isso só para citar alguns dos mais importantes.
Pois bem, com o quinetoscópio de Thomas Edison temos que quase praticamente os filmes tais quais como os conhecemos hoje em dia. Este aparelho era uma caixa individual com um visor onde cada pessoa mediante o pagamento do ingresso aproximava o rosto e via uma sucessão de imagens, às vezes até com um certo enredo.
Filmes, sim. Cinema...? Ainda não. Isto se concretiza de verdade quando em 1895, dois irmãos, os Lumiere (que nome magnífico para tais pessoas!, impossível ser mais apropriado), promovem com o seu cinematógrafo uma sessão aberta para várias pessoas ao mesmo tempo, em uma mesma sala, em uma mesma tela, onde todos sentem o impacto da imagem-que-se-mexe.
A emoção, a paixão, e o amor que Laurent Mannoni consegue passar para sua narrativa é o ingrediente indispensável para que o seu livro não seja uma simples sucessão de relatórios de maquinas de nomes exóticos. Lemos “A Grande Arte da Luz e da Sombra” como um verdadeiro romance de suspense, palpitante, misterioso e instigante. A bela edição das editoras Senac e Unesp respeita a farta iconografia original: o livro é recheado de desenhos, fotos e ilustrações. Nada menos que o necessário para tal obra.

Claudinei Vieira – Desconcertos

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segunda-feira, março 24, 2008

Darcy Penteado

Passeio no parque


Moça


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terça-feira, março 18, 2008

O botão de Puchkin

O Botão de Puchkin
Serena Vitale,
Ed. Record


Serena Vitale nos faz mergulhar nos quatro últimos meses da vida de Puchkin, o poeta nacional da Rússia. Mais do que uma simples biografia, no entanto, ela compartilha conosco toda a emoção da pesquisa, das informações desencontradas e dos debates acalorados que até hoje persistem. Ela nos conduz pelos labirintos das intrigas, nos faz presenciar a caça de documentos, de cartas escondidas, de outras desaparecidas para sempre e de outras que somente agora vieram à luz. Um verdadeiro trabalho de detetive e de dedução, tentando separar os fatos dos simples boatos, as acusações das maledicências puras, para somente depois de muita procura e averiguações, tentar chegar a alguma conclusão. Ela nunca faz uma afirmação sem especificar de quem foi buscar a informação e tentar entender a sua validade e veracidade.
As circunstâncias da morte de Aleksandr Puchkin ainda estão cercadas de muita polêmica. Não do duelo em si: no dia 27 de Janeiro (8 de Fevereiro, segundo o Calendário Juliano) de 1837, o poeta duelou com pistolas com Georges d'Anthès, um oficial francês que havia pouco tempo tinha se incorporado na guarda russa e se casado com a irmã da mulher de Puchkin, Natalia. O casamento provocou um verdadeiro furor na alta sociedade russa, pois todos sabiam (ou comentavam, ou fofocavam) que ele havia se casado somente para poder disfarçar sua verdadeira paixão, isto é, Natalia. Mas as investidas de D'Anthés não teriam parado mesmo com o casamento e Puchkin o desafiara, afinal, para defender sua honra. O poeta recebeu um tiro no estômago e morreu depois de três dias de agonia.
As paixões e os sentimentos aqui envolvidos complicam esta história que, em tudo, lembra o enredo de uma novela romântica, inclusive de algumas escritas pelo próprio Puchkin. Quando morreu, o poeta gozava do auge de sua fama. Estava somente com 37 anos de idade, mas já tinha moldado toda uma literatura: era o líder (e praticamente o fundador) do movimento romântico russo; suas baladas e suas sagas de personagens históricas, escritas em formas de versos, buscavam inspiração nas raízes culturais e folclóricas nacionais; foi o primeiro a utilizar a linguagem popular, cotidiana, em seu trabalho literário, criando uma mescla de beleza e alto rigor lingüístico ao mesmo tempo em que popular e acessível. É reconhecido como o criador da língua moderna russa.
É um verdadeiro herói em sua terra. A cada ano, uma caravana se dirige ao seu túmulo na data de sua morte levando velas e flores, passando a tarde declamando seus poemas.
Além disso, Puchkin era um satírico mordaz, um crítico inteligente e divertido, o que certamente só aumentava sua popularidade. Se como poeta podemos compará-lo ao romântico Lorde Byron e, como formador cultural, ao também romântico Goethe, como satírico é inevitável pensar em Voltaire, com a mesma crítica social e sátira corrosiva.
E há o mesmo relacionamento de amor e ódio para com a aristocracia. Mesmo não fazendo parte de nenhum partido político de oposição (potencialmente perigoso para uma sociedade dominada pela feroz autocracia czarista), ele incomodava e dava muito trabalho para os censores que, em troca, eram constantemente fustigados pelas palavras impiedosas do poeta.
Fama e popularidade, no entanto, não se traduziam em dinheiro. Nascido em família nobre, mas empobrecida, mesmo assim conseguiu casar com a mais bela moça da família Gontcharov. Todas as descrições são unânimes: por onde quer que passasse, Natália Nikolaevna brilhava e ofuscava todas as outras beldades, despertando a inveja das mulheres e a admiração dos homens.
E praticamente por aí acaba a unanimidade. Qual a personalidade de Natália, quais as suas idéias e sentimentos, é impossível saber. Não existe documentação, nenhuma carta sobrou. Ela está muda para nós. Só podemos ouvir os murmúrios de outros, percebemos ecos pelas cartas de Puchkin que chegaram até os dias de hoje. Sabemos que gostava de participar dos bailes, onde era a rainha incontestável. Palavras maldosas nos dizem que tanta beleza era uma magnífica capa para uma pessoa frívola e coquete cujo único propósito na vida era justamente (e somente) dançar. A verdade se dispersa no meio dos murmúrios.
Georges D'Anthés também não é tão fácil de discernir. Execrado pela sociedade russa, expulso das forças armadas do país, voltou para a França em desgraça. Sua vida estabilizou-se, viveu longamente (até os 83 anos) tornou-se político, anos depois foi embaixador designado pelo próprio Luís Bonaparte para fazer negociações (ironia das ironias!) com o czar. Até onde ele teria ido em suas investidas em Natalia Puchkina? Até onde ela teria cedido? Até que ponto tudo foi uma brincadeira inconseqüente? Ou uma traição consciente?
A grande qualidade do texto de Serena Vitale é o modo como ela consegue nos fazer sentir como se estivéssemos participando junto com ela desta investigação. Batemos cabeça, nos desesperamos com a falta de informação ou ficamos perdidos com tanta informação desencontrada. De repente, ela pára a narrativa, nos traz para o presente, diante de um baú da família dos descendentes de D'Anthés e encontramos cartas! Com emoção, abrimos os envelopes e gritamos de alegria: buracos inteiros da história são finalmente revelados, dúvidas são esclarecidas, a busca paciente valeu a pena. Tudo bem que novos problemas sejam colocados, isso também faz parte.
Um exemplo particularmente interessante é sobre as cartas anônimas. Alguns meses antes de sua morte, Puchkin e vários outros membros da sociedade receberam cartas anônimas dizendo que o poeta teria aderido ao Clube dos Cornos. Irascível, passional, ciumento, briguento, sensível para os mexericos desta sociedade que conhecia tão bem, Puchkin não precisava de muito mais para desafiar D'Anthés. Estaria ele também convencido da frivolidade de sua mulher ou foi somente para resgatar a humilhação do seu orgulho ferido? O fato é que estas cartas, das quais existem ainda duas cópias, foram a gota d'água.
Sua autoria nunca foi estabelecida ou provada, embora as discussões tenham sido intermináveis. Vitale repassa todos os possíveis culpados, compara suas letras, julga os possíveis (e os necessários) dotes culturais para a feitura da redação, relaciona os graus de amizade e relacionamento com a alta sociedade russa e, no final, com relativa segurança, indica-nos quem, na sua opinião, teria sido o responsável.
A impressão é que Vitale sabe tudo, leu tudo, conhece todo mundo. Para a autora, não se trata de personagens históricas, mas gente de carne e osso que amou, sofreu, odiou. Mais do que isso, ela consegue transmitir essa compaixão e sua empatia em um texto emocionante que lemos como se fosse um romance policial; viramos as páginas sofregamente, ansiosos não só para descobrir as novas revelações, mas o modo como isso foi feito. E para o leitor que for fisgado (o que é fácil, basta começar a ler) e chegar até o final, Serena Vitale nos recompensa com o fruto desse esforço, uma extraordinária e impactante conclusão.
Sem dúvida, um belo e instigante livro que consegue fazer do ato de escrever seu verdadeiro personagem principal.
Claudinei Vieira – Desconcertos

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quinta-feira, março 13, 2008

Tête-à-Tête

Tête-à-Tête
Hazel Rowley
Editora Objetiva
Tradução de Adalgisa Campos da Silva

No fundo, para quem já leu a autobiografia de Beauvoir e/ou também algumas biografias o livro de Hazel Rowley não é muito surpreendente em relação à Simone. É verdade que várias lacunas foram preenchidas e que descobrimos os motivos para que elas tenham existido, mas não há tanta "novidade" no que diz respeito à Beauvoir, pelo menos na minha opinião. Eu esperava encontrar mais "informações" sobre os últimos anos de vida de Simone (sem Sartre), mas estes derradeiros 6 anos ficaram restritos a menos de 4 páginas: uma lacuna que, para mim, continua a existir.
Entretanto, no que tange a Sartre, o livro foi para mim uma grande revelação, em muitos aspectos. Obviamente, Simone havia falado bastante nele em sua extensa autobiografia, mas o olhar externo, e talvez isento, da autora de Tête-à-Tête me ofereceu um Sartre bem mais humano (no sentido estrito da palavra) do que eu imaginava.
Em todo caso, considero Tête-à-Tête um livro importante para quem queira saber mais sobre Beauvoir e Sartre, tanto como indivíduos quanto como casal. Aliás, o ponto que achei mais interessante no livro foi justamente o caráter dual e equilibrado em que os "protagonistas" são mostrados ora conjunta, ora individualmente ao longo da narrativa.

Wagner Campelo

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quarta-feira, março 12, 2008

Darcy Penteado

Intimidade


Contando a arte de Darcy Penteado
Sílvia Mello
Editora Nova América

Em Contando a Arte de Darcy Penteado, Sílvia Mello, que é pesquisadora da obra do artista e trabalhou na elaboração do projeto da Pinacoteca Darcy Pentedo, mostra a riqueza e a versatilidade da obra desse artista, que dominava e criava em diversas linguagens.
Autodidata, expressou-se como desenhista, retratista, ilustrador, pintor, figurinista, cenógrafo, dramaturgo e escritor. A riqueza de sua arte está não somente na multiplicidade das técnicas aplicadas, mas na variedade de materiais com os quais trabalhou. Criatividade e ousadia são a tônica principal que movimenta sua arte, inspirada no cotidiano e reveladora da postura que o artista assumia perante a vida. De seus quadros ele diria: “têm algo do caipirismo, dos banhos aos sábados, das cores antigas e muito luto, que é como eu lembro a minha infância”.
A autora Sílvia Mello é graduada em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Desenvolveu por vários anos trabalho de resgate da memória da cidade de São Roque. Trabalhou também na elaboração do projeto da Pinacoteca Darcy Penteado.

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segunda-feira, março 10, 2008

O último voo do flamingo

O último voo do flamingo
Mia Couto
Companhia das Letras

Há pelo menos sete camadas de vôo em “O último voo do Flamingo” (a editora optou por manter, inclusive no título, a ortografia vigente em Moçambique), romance de Mia Couto. Vôos rasantes, rasteiros, sobremodo altos, amplos espaços – apresso-me a observar que essa gradação não diz respeito à qualidade do vôo, mas às suas variadas direções.
O primeiro vôo é a própria narrativa, a história e seu conteúdo: estamos em uma imaginária Tizangara, cercada por um mistério: corpos de soldados estrangeiros que começam, subitamente, a explodir. Um oficial das Nações Unidas, o italiano Massimo Risi, é destacado para investigar o caso. Tudo é contado pelo tradutor destacado pelos poderes oficiais da vila para acompanhar o italiano. Bem, quase tudo. À medida que os fatos se sucedem, outras vozes ganham espaço no texto, deslocando-se o foco narrativo para outros personagens: Massimo Risi, Estêvão Jonas -o administrador da vila-, a velha-moça Temporina, a prostituta Ana Deusqueira, o feiticeiro Zeca Andorinho e o velho Sulplício, o pai do narrador. Eles apresentam suas versões dos fatos, ou contam sonhos ou lembranças essenciais para a compreensão dos fatos – vôos sobre o tempo dos acontecimentos e o tempo da memória.
Os outros personagens, dona Ermelinda (a “administratriz”), Chupanga (o adjunto do administrador) e padre Muhando completam a atmosfera de Tizungara, envolta em verdade e ficção, realidade e magia, natureza e sobrenatural, o mundo dos vivos e o mundo dos mortos; e um presente que balança entre a força dos antepassados e a ausência de futuro.
O segundo vôo é a forma de que Mia Couto se vale para dar conta desse universo. Para falar de uma vila onde “acontecimento era coisa que nunca sucedia”, e que só “os factos são sobrenaturais”, o próprio autor parece tomado por um encantamento pela linguagem. Feiticeiro, ele mistura num caldeirão as culturas tradicionais africanas e a cultura ocidental, o português “colonizador” com as variantes dialetais da população moçambicana – há um glossário no final do livro.
Outros ingredientes são o uso de aforismos, desconstrução de provérbios e ditos populares (“contra os factos tudo são argumentos”). Mia Couto “desarranja” a linguagem, em muitos momentos a aproximar-se de Guimarães Rosa (“o motor nhenhenhou-se”) ou, mesmo, da sintaxe do poeta Manoel de Barros, já na parte final do romance (“as sujidades se definitivam”), e da qual emerge a relação profunda entre o homem e a terra.
O terceiro vôo tangencia as margens do realismo fantástico latino-americano ou, como sugere Mia Couto, o “realismo animista”, na expressão do angolano Pepetela. Há Temporina, com o rosto de velha e corpo de moça (mas que, em “flagrante de amor, juvenescia”); uma tia que, após morta, se transforma em louva-a-deus; um personagem que, quando toca em mulher, suas mãos aquecem até ficarem como “carvão aceso”; outro que, ao dormir, pendura os próprios ossos fora do corpo; determinados feitiços que faziam com que os enfeitiçados emagrecessem até ficarem do tamanho de formiga. Diante desses acontecimentos, resta ao italiano Massimo Risi, entre uma perplexidade e outra, temer pela veracidade do relatório que terá de entregar a seus superiores (“na capital, a sede da missão da ONU espera por notícias concretas, explicações plausíveis. E o que tinha ele esclarecido? Uma meia dúzia de estórias delirantes”).
Sobre esse ponto, aliás, vale reproduzir o trecho de uma entrevista que Mia Couto concedeu ao jornal português “Público”. Perguntado sobre se acreditaria no feitiço e na eficácia dos curandeiros ou feiticeiros da tradição moçambicana, o escritor respondeu: “a pergunta certa não é se acredita ou não. Também é necessário separar a feitiçaria do curandeirismo. São coisas diferentes. Mas ambas emergem de sistema de conhecimento que se sedimentaram ao longo dos séculos. A feitiçaria e o curandeirismo são emanações que são percebidas isoladamente do sistema total a que pertencem. Olhar para esses fenômenos sem compreender o contexto religioso e até filosófico em que se situam só pode produzir respostas erradas”.
O quinto vôo espraia-se no humor e na ironia. Às vezes predomina o sarcasmo, às vezes o espírito crítico, outras tantas ambos. Quando, por exemplo, um pênis decepado é achado, chamam a prostituta Ana Deusqueira para “identificar o todo pela parte”. Ou, em outra cena, o administrador relata: “Na véspera de cada visita, nós todos, administradores, recebíamos a urgência: era preciso esconder os habitantes, varrer toda aquela pobreza”. Mais ironia: contratado para traduzir, o próprio tradutor é desnecessário. Quando ele se apresenta ao italiano, este comenta: “Eu posso falar e entender. Problema não é a língua. O que eu não entendo é esse mundo daqui”.
A narrativa poética incendeia o sexto vôo, carregado de lirismo. Entre várias seqüências, o leitor há de perceber aquela em que Massimo Risi passa por um terreno minado como “Jesus se deslocou sobre as águas”. Pode também esse leitor acompanhar a mãe do tradutor desfiando a estória dos flamingos que empurravam o sol para que o dia chegasse ao outro lado do mundo.
Finalmente, o sétimo vôo é aquele que, ao término da leitura, redimensiona o olhar sobre Moçambique, um dos países mais pobres do mundo, recém-saído de três décadas de guerra civil fratricida, que matou ao menos 16 milhões de pessoas nesse período (em 2000, quando o livro foi publicado, comemorava-se os 25 anos de independência de Moçambique). Por “O último voo do flamingo”, Mia Couto recebeu o prêmio Mário António, da Fundação Calouste Gulbenkian, em 2001. Na entrega do prêmio, o escritor disse que seu romance fala de uma “perversa fabricação de ausência – a falta de uma terra toda inteira, um imenso rapto de esperança praticado pela ganância dos poderosos”. Contra esse estado de coisas, resta ao escritor uma posição ética, de posicionar-se contra “a indecência dos que enriquecem à custa de tudo e de todos”.
Mia Couto sabe criar o suspense para que passemos toda a narrativa a descobrir a causa da explosão dos soldados. Ao fim ao cabo – como diria Couto – importa mais conhecer o destino de um país que desaparece inteiramente, um país que talvez seja o principal personagem dessa alegoria. Para o mais otimista dos pessimistas, à margem de um céu subterrâneo, à beira do último abismo, é que se pode reinvestir na palavra “o mágico reinício de tudo”. Lá, como cá, estamos precisados de gente que ame a terra em que pisa.

Sobre Mia Couto
António Emílio Leite Couto, Mia Couto, nasceu na Beira, Moçambique, em 1955. Como jornalista, foi diretor da Agência de Informação de Moçambique. Estudou medicina e biologia, e trabalhou como biólogo em uma reserva natural moçambicana.
Sua obra está traduzida para diversas línguas – espanhol, sueco, francês, italiano e holandês. Tem 15 livros publicados, sendo que o de estréia é o único de poemas, “Raiz de Orvalho”, de 1983. Depois, publicou romances, crônicas e contos. O mais recente é “O fio das missangas”, lançado em 2004, de contos.
“O último voo do flamingo” é seu quarto romance. Antes, vieram “Terra sonâmbula (1992), “A varanda do Frangipani” (1996) e “Vinte e Zinco” (1999).

Fabrício Marques

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