terça-feira, outubro 31, 2006

Relações perigosas

Relações perigosas
Choderlos de Laclos


Nova Cultural

“Relações Perigosas” é um verdadeiro tratado de maquiavelismo pessoal e social. Os personagens principais, o Visconde de Valmont e sua amiga/amante/adversária Marquesa de Merteuil possuem um único propósito na vida: brincar com os sentimentos, a vida e os destinos das pessoas que, por azar, estejam sendo alvo dos seus interesses. À Marquesa de Merteuil interessa, por exemplo, desgraçar seu ex-marido: este tivera a ousadia de se separar dela para concluir uma fantasia: a de se casar com uma mulher pura e não maculada pela sociedade e para isso, escolheu uma menina recém-saída de um colégio de freiras. As garantias foram dadas e o casamento estava sendo marcado.
Realmente, a menina era uma tola e uma ignorante, segundo as concepções da Marquesa, mas seu plano era bem simples: pediu ao seu grande amigo e companheiro de aventuras, Valmont, para seduzir e “ensinar” a pequena Cecile, convencendo-a de que precisava conhecer todos os detalhes de uma vida de esposa para poder satisfazer de verdade seu futuro marido. E é lógico que todo esse “conhecimento” seria um segredo, uma surpresa para ser revelada somente na noite de núpcias.
Valmont, no entanto, rejeita o plano e a incumbência. Ele precisa de desafios, de grandes dificuldades, de obstáculos. Qual o sentido de seduzir uma menininha besta, saída de um colégio de freiras? Qualquer um faria isso! O primeiro que aparecesse! Isso até mancharia sua fama de grande sedutor.
Mesmo porque, ele está diante de um desafio verdadeiro, algo digno de suas potencialidades: a linda, fechada, beata e, aparentemente, incorruptível, Madame de Tourvel. Religiosa, devotada ao marido, incomunicável para o mundo. Conquista-la seria um grande premio para Valmont, uma das suas maiores façanhas.
Observamos as intrigas, as artimanhas e a imoralidade de dois grandes devassos em uma França que está preste a ser convulsionada pela Revolução Francesa no final do século XVIII. Acompanhamos suas tramas, os detalhes, as sugestões que eles se trocam quando um dos dois não está conseguindo avançar nos seus planos. O livro é montado através das cartas onde eles contam o que estão fazendo, o que aconteceu no dia anterior, o que não está dando certo e pedidos de auxilio.
O autor, no entanto, não os condena por serem indivíduos maus e degradados. A Marquesa de Merteuil e Valmont são representantes de uma sociedade falida e sem escrúpulos, sem nenhum senso de moral. E, ao mesmo tempo, vistosa, bonita e luxuosa. Impossível não ser conquistado, impossível não cair na sua lábia. É quase com prazer que somos sugados, usados como brinquedos e depois jogados fora quando a brincadeira não lhes rende mais diversão. Certamente, Valmont e a Marquesa são os vilões (coitadas das vitimas que caem em suas mãos!) e Choderlos de Laclos não nos deixa esquecer disso. Acontece que eles são simplesmente os mais aptos em uma sociedade onde se engana ou se é enganado, ou se pisa ou é pisado. Se eles são falsos ou imorais é porque todos são falsos ou imorais, todos fazem parte do mesmo jogo de destruição moral.
É interessante relacionar tudo isso com a própria vida do autor, Choderlos de Laclos, pelo fato de que não tinha, absolutamente, nada a ver com essa obra. Isto é, Valmont não era de forma alguma uma representação do seu criador. Nascido em 1741, Laclos foi militar, chegou a ser general sob as ordens do próprio Napoleão, mas deixou as armas para se dedicar aos seus escritos. Literariamente falando, sua única obra de real importância foi “Relações Perigosas” apesar de até ter escrito bastante: tratados de estratégia militar, crítica literária, poesia erótica... Um destaque é para uma espécie de manifesto escrito junto com sua futura mulher, Marie-Soulange Duperré, chamado “A Educação das Mulheres”, onde defendem a igualdade entre os sexos.
Um dos pontos altos de “Relações Perigosas” é justamente um momento quando a Marquesa de Merteuil se dispõe a explicar como acabou se tornando a pessoa que Valmont, e os leitores, conhecem. Ela demonstra como absorveu toda a educação recebida para ser uma mulher submissa e obediente. Estudou a sociedade, tornou-se uma observadora atenta, leu, conversou, perguntou. Acumulou conhecimento, tateou daqui, experimentou dali. Quando, então, por fim, consegue fazer tudo o que sempre quis, utilizando todas as ferramentas criadas para a sua submissão. E, o melhor de tudo, mantendo uma fachada irrepreensível de moral inatacável, a qual nem mesmo Valmont conseguiria quebrar. De leitura fácil e simples, as cartas de “Relações Perigosas” vão num crescendo de paixão, suspense e tensão. Pois chega um momento quando os lobos começam a se atacar, isto é, Valmont e a Marquesa de Merteuil se tornam inimigos. A sociedade estremece. E o mundo da literatura também.

Claudinei Vieira
Desconcertos

Pancetti - Ciranda

sábado, outubro 28, 2006

Cartas do Inferno

Ramón Sampedro

Ramón Sampedro trata aqui, com grande coerência, do direito à eutanásia, palavra que significa ´boa morte`. Ao mergulhar em uma praia, Sampedro fraturou o pescoço e ficou paralítico, depois disso passou 28 anos tentando provar que merecia e queria a ‘boa morte’. Embora não tenha conseguido convencer nem a família nem as autoridades, ele defende com maestria o seu direito, rechaçando com argumentos sinceros e muito bem embasados todas as cartas que recebe de diferentes pessoas: médicos, jornalistas, estudantes que escrevem com o único objetivo de convencê-lo a continuar vivendo. Descobrimos em Ramón uma pessoa doce e respeitosa, mas que pode se mostrar direto e quase brutal com aqueles que desrespeitam ou não compreendem a sua causa, sobretudo se os argumentos que a apresentam forem de ordem religiosa já que ele era ateu.

É interessante quando, na página 172, o autor afirma que a "‘arte da boa morte’ não nos foi ensinada porque aos dominantes interessa que o sofrimento seja visto como um dever moral porque esta é a sua fonte de prazer e bem estar. Assim, a sacralidade da vida teria sido ensinada por medo que os escravos renunciassem em massa ao inferno de suas vidas miseráveis."

Esta edição tem prefácio de Alejandro Almenábar, diretor do belíssimo filme Mar Adentro baseado no livro de Ramón Sampedro e que levou o Oscar de melhor filme estrangeiro em 2004.
Sobre o filme aqui.
Leila Silva Terlinchamp - Cadernos da Bélgica

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quinta-feira, outubro 26, 2006

A viagem de Machado de Assis na Barca de Gleyre


A literatura mundial não registra outra troca de cartas entre escritores que durasse tantos anos como a ocorrida entre José Bento Monteiro Lobato e Godofredo Rangel. Os dois se corresponderam com assiduidade durante 45 anos, de 1903 a 1948. Eles foram colegas na Faculdade de Direito de São Paulo, na famosa escola do largo de São Francisco. A correspondência começou quando Lobato, formado, regressou a Taubaté, sua cidade natal, e se estendeu ao longo da estrada da vida, só sendo silenciada com a morte do criador do Jeca Tatu, ocorrida na cidade de São Paulo, em 4 de julho de 1948.
Coube a Edgar Cavalheiro, já então escolhido por Lobato para ser o seu biógrafo, a primazia de prefaciar, em 1944, a primeira edição de A Barca de Gleyre, título que Lobato deu ao grosso volume
[1] que enfeixa as inúmeras cartas que enviou ao seu amigo Godofredo Rangel, autor de romances como Vida Ociosa e Os Bem Casados. Romances que embora nunca tivessem alcançado boa vendagem são considerados como de primeira linha por renomados críticos literários.
A Barca de Gleyre, como quase tudo que Lobato escrevia e publicava, vendeu como água, tendo o livro sido best seller tempos a fio. O título deriva de uma carta que endereçou a Rangel em 15/11/1904: “Nunca vistes reprodução de um quadro de Gleyre, Ilusões Perdidas? Num cais melancólico barcos saem. E um barco chega, trazendo á proa um velho com o braço pendido largadamente sobre uma lira – uma figura que a gente vê e nunca esquece. (...) Em que estado voltaremos, Rangel, desta nossa aventura de arte pelos mares da vida em fora? Como o velho de Gleyre? Cansados, rotos? As ilusões daquele homem eram as velas da barca – e não ficou nenhuma. Nossos dois barquinhos estão hoje cheios de esperanças novas e arrogâncias, atadas ao mastro da nossa petulância. São as nossas ilusões. Que lhes acontecerá?”.
O navegar pelas páginas de A Barca de Gleyre é deveras fascinante. É uma viagem pela história da primeira metade do século XX; viagem pelo que vai acontecendo e sendo reportada na astuta ótica lobatiana. Mas é também um singrar pelos revoltos mares do mundo das letras, tantos são os autores e livros que Lobato vai examinado e comentando com o correspondente. Mormente nas cartas anteriores a 1914 – quando Lobato passou a assinar coluna em O Estado de São Paulo e, em decorrência, a desfrutar de certa notoriedade - o propósito dos comentários era nitidamente a aprendizagem da arte de pensar e escrever com propriedade.
Ler A Barca de Gleyre, por outro lado, é praticar uma espécie de voyerismo literário. É como abelhudar uma conversa ao pé do fogo, conseguindo escutar só um dos lados. Sim, um dos lados, pois Godofredo Rangel - mineiro de Três Corações, professor, contador, promotor público e juiz de Direito em Santa Rita do Sapucaí (MG), falecido em Belo Horizonte em 1951, autor de romances, contos e de um punhado de traduções primorosas - nunca quis, autorizou ou permitiu que as suas cartas viessem a lume. E olha que Lobato – que considera Vida Ociosa como “o único livro nosso que pode ser colocado numa estante entre Brás Cubas e Dom Casmurro” – pelejou com Rangel para que publicasse a sua metade no todo da correspondência. Em 1943, lhe escreveu: “Estou datilografando minhas cartas, e espero que estejas fazendo o mesmo”. E pouco tempo depois insistia: “Já bateu na máquina revistas e podadas?”. O mineiro nada, Godofredo Rangel deixou em testamento que suas cartas jamais poderiam ser publicadas. Por quê?
Machado de Assis, autor que vira-e-mexe freqüenta A Barca de Gleyre, de quando em vez lá aparece nos comentários de Lobato. Na fase de aprendizagem, bem antes da estréia, Lobato escreve sobre ele: “Estilo, estilos... Eu só conheço uma centena na literatura universal e entre nós só um, o de Machadão. E, ademais, estilo é a última coisa que nasce num literato – é o dente do siso. Quando já está quarentão e já cristalizou uma filosofia própria, quando possue uma luneta só dele e para ele fabricado sob medida, quando já não é suscetível da influenciação por mais ninguém, quando alcança a perfeita maturidade da inteligência, então, sim aparece o estilo. Como a cor, o sabor e o perfume duma fruta só aparecem na plena maturação. Repare no Machado. Quando lhe aparece a cor, o sabor, o perfume? No Braz Cubas, um livro quarentão. Que estilo tem em Helena ou Yayá Garcia? Uma bostinha de estilo igual ao nosso” (15/7/1905).
Três anos mais tarde, teoriza: “Estou lendo Dom Casmurro. Já notaste como o Machado do Essau e Jacob, pelo fato de muito requintar o seu modus, prejudicou a obra e obscureceu-a? Machado de Assis tem três fases: uma romântica (Helena, Yayá Garcia, etc), insignificante como o que mais o seja – ilegível, outra fase do optimum absoluto, onde surge a sua maneira famosa – Braz Cubas, Dom Casmurro, Quincas. E outra, a última, começada com Essaú e Jacob , em que sua maneira passa além de optimum e entra a degenerar” (8/1/1908).
No ano seguinte, acrescenta o seguinte “p.s.” numa carta a Rangel: "Li também Memorial de Aires o livro mais difícil de ser feito de quantos livros difíceis se fizeram no mundo. Do que nós chamamos nada, Machado de Assis tirou tudo – tirou uma obra prima. Mas quantos compreenderão a beleza do livro?” (1/3/1909).
Há passagens na A Barca de Gleyre, em que Lobato demonstra estar desanimado com a possibilidade de tornar-se um escritor profissional, em virtude da baixa potencialidade do mercado editorial na sociedade brasileira. É com tal estado de espírito que, em 1911, tendo a obra de Machado de Assis como referencial, recomenda a Rangel: “Quanto a ganhar dinheiro com livro, e essas esperanças de criar um ‘nome vendável’, uma marca de fábrica que tenha saída , varra isso da cabeça! Tão cedo o livro não será negócio no Brasil. Sabe que o pior negócio da Granier foi a edição completa do Machado de Assis? O Paulo, gerente da livraria Alves em S. Paulo, disse-me que ‘o Alves não quer a obra do Machado de Assis nem de graça porque não passa dum entulho de prateleiras’ – tão divorciadas andam entre nós a glória e o valor comercial”. (2/4/1911).
Mas, sem dúvida, para além de Flaubert, Camilo Castelo Branco ou do seu amigo Godofredo Rangel, autores que Lobato tanto admira e seguidamente elogia, Machado de Assis foi a sua grande paixão literária. Com tal sentido, em 30/8/1909 escreveu: “Machado de Assis é o clássico moderno mais perfeito e artista que possamos conceber”. E, anos mais tarde, em 3/6/1915: “Não pode haver língua mais pura, água mais bem filtrada, nem melhor cristalino a defluir em fio de fonte. E ninguém maneja melhor tudo quanto é cambiante. A gama inteira dos semitons da alma humana. É grande, é imenso, o Machado. É o pico solitário das nossas letras”. Lobato termina o parágrafo com uma espécie de brado, onde rende loas ao bruxo do Cosme Velho:“Os demais nem lhe dão pela cintura”.


[1] A partir da 1ª edição das obras completas de Monteiro Lobato (1946), A Barca de Gleyre passou a ser publicada em dois volumes.

Aluízio Alves Filho Revista Achegas

Imagem - Charles Gleyre - Ilusões perdidas

domingo, outubro 22, 2006

Uma novela exemplar


Na literatura brasileira, não são numerosos os prosadores que conquistaram um grande público leitor. Desse punhado de best-sellers, nenhum foi tão popular como Jorge Amado. E isso se deve a vários aspectos. O escritor baiano não se preocupou em criar uma linguagem inovadora, nem mesmo em estruturar ou organizar a narrativa com ousadia, como fez Osman Lins em Avalovara, Nove, Novena e A rainha dos cárceres da Grécia. No entanto, se a obra de Amado é carente de forma e de rigor na linguagem, é rica no universo ficcional. Em seus primeiros romances, ele se aproximou de um regionalismo empenhado em registrar a vida da gente pobre da Bahia urbana e rural.
A partir da década de 1950, sua obra dá uma guinada: a denúncia social passa a ser vista por outro ângulo e a ser trabalhada por outro viés, subtraindo ou atenuando a intenção ideológica para encontrar no exotismo, no humor, na sensualidade e no autoritarismo da sociedade baiana as forças de sua nova ficção. Em romances como Gabriela, cravo e canela e Dona Flor e seus dois maridos, o lugar dos personagens sofridos de Capitães de areia e dos pobres-diabos que se amontoam no cortiço de Suor torna-se mais restrito. O novo romance de Amado é povoado de prostitutas, rufiões, malandros, vagabundos, funcionários públicos, poetas, jogadores, marinheiros, cafetões, coronéis e proprietários poderosos e inescrupulosos.
A facilidade com que Amado escrevia, seu jeito bonachão, sua alegre e despretensiosa obsessão de apenas narrar boas histórias, tudo isso gerou comentários implicantes e irritadiços de alguns críticos e até mesmo escritores. Mas nada disso diminuiu seu público leitor, pois em todos os continentes a obra de Amado ainda é a mais lida, conhecida e traduzida da literatura brasileira. Quanto aos críticos e escritores, não se deve omitir os comentários relevantes e certeiros de Graciliano Ramos, Antonio Candido, Alfredo Bosi, José Paulo Paes, Ferreira Gullar e Vinicius de Moraes, entre outros. Isso sem contar a produção de críticos mais jovens, que têm publicado dezenas de teses e ensaios sobre a obra de Amado. Sem dúvida, algumas restrições são legítimas. Por exemplo: o narrador idealiza com freqüência os pobres e humildes da Bahia; um exotismo exagerado pode transmitir a muitos leitores um sentimento de exaltação dos valores e da cultura africana e baiana, que, afinal, fazem parte da cultura brasileira.
Uma mudança de tom e dicção separa o narrador culto das personagens populares, e essa disparidade pode ser um problema. Apesar das falhas, a obra de Jorge Amado se impôs. Ele soube traduzir sua experiência cultural e lingüís tica numa prosa que parece não ter excluído nenhum estrato social da imensa pirâmide humana presente em seus romances. Nesse sentido, ele lembra um romancista prolífico da Europa do século XIX e anterior a Flaubert. Ou seja, um prosador despreocupado em erigir um monumento estético, mas com a vantagem de possuir a verve e a imaginação de um narrador oral do Norte da África.
É notável o diálogo entre o “defunto” e os amigos. E não menos notável a andança dos vivos com o morto até o cais
Aos que nunca leram um livro de Amado, sugiro começar por uma novela: A morte e a morte de Quincas Berro Dágua. Nesse breve relato, além de ter encontrado o tom e o tamanho apropriados ao gênero, não há o desenho irregular de alguns romances excessivamente longos. A novela, mais próxima da concisão e da intensidade do conto, evita digressões, descrições e diálogos excessivos. Também nesse aspecto, A morte e a morte de Quincas Berro Dágua é uma narrativa bem realizada. Como diz o título, a novela refere-se a duas mortes do mesmo personagem. Há ainda uma terceira, que é a morte moral da família depois que o protagonista abandona o lar. Antes de ser o “cachaceiro-mor de Salvador”, o “rei dos vagabundos da Bahia”, jogador, marinheiro e farrista, Quincas foi Joaquim Soares da Cunha: o pacato e correto pai de família e funcionário público.
Morto, os familiares tentam recuperar a dignidade do outro, quando vivo. A novela trabalha com esses dois registros: a vida exemplar e a vida vagabunda. A primeira refere-se ao tedioso cotidiano de uma família de classe média de Salvador: a mulher rabugenta de Joaquim, sua filha não menos ranzinza, seu genro e seu irmão. Dois personagens na mesma pessoa, e dois passados de vidas opostas, no mesmo morto. Mas trata-se realmente de um morto? Durante o velório no quartinho de um cortiço na ladeira do Taboão, o defunto dirige a sua filha “um sorriso cínico, imoral, de quem se divertia”; xinga a tia Marocas com um apelido nada edificante e faz com o polegar um gesto de deboche. Quando os amigos chegam ao velório, não acreditam que Quincas está morto.
É notável o diálogo entre o “defunto” e os amigos. E não menos notável a andança dos vivos com o morto pelas ruas de Salvador até o cais, onde Quincas, velho marinheiro, embarca num saveiro para uma viagem ao fundo do mar. Durante uma tempestade, Quincas Berro Dágua se deixa envolver por sua própria vontade “num lençol de ondas e espuma”. Essa reviravolta do destino – o morto que se revela vivo e escolhe a hora e a maneira de morrer – é típica da novela enquanto gênero.
Mas algo nos diz que ele realmente está morto. Essa ambigüidade, que a narrativa explora o tempo todo, é um dos grandes feitos da novela. A farsa que Joaquim, ainda vivo, arma para a família, arma de novo enquanto defunto. Para o leitor, esse jeito farsante de morrer permanece em suspenso, como a reiteração de uma dúvida anunciada na abertura dessa novela de fato extraordinária, como poucas na literatura brasileira.


Milton Hatoum
Foto de Jorge Amado de Sebastião Salgado

O Rosebud Livros agradece ao escritor Milton Hatoum a gentileza de nos ceder este texto originalmente escrito para a revista Entre Livros

Pancetti - Marinha

quinta-feira, outubro 19, 2006

Madame Pommery, de Hilário Tácito

*
Em 1919 José Maria Toledo de Malta publicou sua única obra literária, sob o pseudônimo de Hilário Tácito. Surgido três anos antes da Semana de Arte Moderna, Madame Pommery está ausente de quase todas as interpretações históricas da tradição literária brasileira. Parece-me que o responsável pela redescoberta da obra foi Mário Chamie. Porém, sua releitura teve como limitação a tese de que o livro era um precursor do pan-sexualismo de Oswald de Andrade. Como precursora, uma obra é pensada como algo inacabado, cujo sentido último se revelaria no tempo, por outros textos. É o paradoxo de uma idéia como “pré-modernismo”, hoje pouco usada, mas ainda pressuposta em vários trabalhos de crítica literária: a projeção da imagem de que a temporalidade é regida por um destino, como se certos textos fossem meras amostras canhestras daquilo que os sucederia. Mas reconhecemos o serviço que o poeta Mário Chamie prestou a todos nós, lendo e discutindo o livro de Hilário Tácito.
A edição de 1977 foi realizada pela Academia Paulista de Letras, com um prefácio de Osmar Pimentel, em que se diz que Madame Pommery é um retrato da São Paulo do começo do século. Mas, que tipo de retrato seria esse? A obra já se expõe como artefato ficcional na contracapa, onde Hilário afirma que o livro é “crônica muito verídica e memória filosófica de sua vida (da personagem principal), feitos e gestos mais notáveis”. O signo do livro, e isso é dado de mão beijada ao leitor, é a ironia. Como retrato, Madame Pommery seria uma fotografia na qual o fotógrafo aparecesse fotografando a si mesmo, diante do pano de fundo de uma cidade enevoada, parecida com qualquer cidade grande (São Paulo, por exemplo...).
A história é a de uma cafetina que conseguiu criar um bordel muito bem organizado, lucrativo e influente nos altos meios sociais da cidade. Madame Pommery, e sua sabedoria prática, política e empresarial, seria para a prostituição brasileira o mesmo que Machado de Assis para a literatura, sua redenção. Apresentado ainda como farsa filosófica, o livro pode ser entendido como paródia de manual do sucesso, da construção de uma carreira sólida.
Os títulos dos capítulos de Madame Pommery lembram o estilo dos ensaios de Montaigne. Tome-se, como exemplo, o terceiro: “Em que o autor se empenha grandemente para responder a estas perguntas – Quem é Mme Pommery? Donde veio? Por que veio? E onde a lenda supre a história...” Mas além disso, a escrita de Hilário Tácito segue os mesmos contornos tortuosos dos ensaios do filósofo. Cada pequena aventura dá ensejo a uma digressão, cada acontecimento é motivo para uma reflexão de cunho moral. Mas tudo de modo a se representar um baile de teorias pretensiosas, infundadas, sarcásticas. A sinceridade do ensaísmo é então abolida pela mentira que se assume. Como diz o autor, o leitor precisa saber que “Madame Pommery vive e respira, é tão real como eu, que escrevo”. Mas, por outro lado, é bom saber que um jogo desse tipo não cai no fetiche do fracasso do pensamento, ou no mutismo dito pós-moderno.
O cético experimenta a alegria de mentir, mas ao se definir como mentiroso incorrigível também pretende ser aquele que desmascara as pretensões da verdade e da moral. Assim, só para dar um exemplo, um dos freqüentadores do bordel, Mangancha, apresentou sua versão pessoal para a implementação da eugenia social – a criação de uma raça de super-homens a partir do alcoolismo como meio de seleção. Segundo Mangancha, o álcool seria calor em estado puro, o alimento mais concentrado de todos. Depois de uma hiperexposição das pessoas aos efeitos do poderoso alimento, apenas os mais fortes sobreviveriam.
O livro não fica somente nisso, traz um filosofia do amor, discute teses econômicas e religiosas, analisa a complementaridade entre os ideais da família e a prostituição. A ironia de Madame Pommery é a constatação de que a sociedade não comporta um lugar privilegiado para as verdades e a moral. Estas, são expressões dos jogos, sutis ou brutais, do desejo. A eugenia do bêbado que defende o álcool em nada difere da eugenia do ariano que pretende “branquear” a nação. Cristãos, judeus e muçulmanos, pretensos portadores da verdade, são mentirosos que se agridem diante de um espelho. A única vantagem de Hilário Tácito é sua sinceridade quando diz estar mentindo, a literatura é a farsa escolhida para desenhar a trama dos desejos em conflito.


Daniel Faria - e-mail:
krmazov@hotmail.com

*Foto- Madame Pommery – ed.Unicamp - 1992

segunda-feira, outubro 16, 2006

Uma triste memória de Gabo

Memória de minhas putas tristes
Gabriel Garcia Márquez

Editora Record

Procura-se Gabriel García Márquez, o outro, não este de Memória de mis putas tristes, que tenho diante de mim. Já na capa o destaque é o autor, não a obra. O seu nome, “ele”, este ser entre aspas que para os editores é ouro de garantida liquidez, anuncia-se em letras maiores, de cor laranja, no alto. Abaixo, em letras menores, vem o que na capa é um subtítulo, Memória de mis putas tristes. Depois, a imagem de um senhor curvado, encanecido, a caminhar de pijama, de costas para o leitor. Insinua-se como um segundo ele, semelhante ao nome em destaque no alto, como um autor que escreve suas memórias no outono da sua vida. A armadilha está aberta, a cilada para os pássaros se encontra a ponto de disparar. Os incautos, os que vão procurar a memória das putas de García Márquez, entram. E caem. Pero nosotros, no. Jamais cairíamos em armadilha tão primária. Nós, os cultos, os que admiramos o gênio de Márquez, não. Sabemos que o autor não tem culpa da enganadora capa do livro, sabemos e compreendemos que não se culpa um artista pelo comércio que a casa editora faz da sua arte. E por nos guiar a esperança, a memória que temos do autor, também entramos. E caímos, também.
Assim como em um reencontro, em que primeiro vemos com os olhos da recordação, lemos a primeira frase de Memoria de mis putas tristes, “El año de mis noventa años quise regalarme una noche de amor loco con una adolescente virgen”, com os olhos da lembrança dos outros Márquez. E assim também como num reencontro, a realidade física e imediata acaba por se meter entre as realidades guardadas, até que se mostre sobre a face da recordação. E esta nova camada, a do Gabriel García Márquez de Memoria de mis putas tristes, não é boa. Vejamos-lhe sem medo as linhas desse rosto.
Este livro não se realiza como narração, e isto, este ato frustrado, não se faz por incapacidade técnica do autor, por supuesto. A sombra da sua história, as suas realizações anteriores fazem-no um homem realizado como criador. O seu fracasso neste livro é a vitória de uma impossibilidade mais íntima. Uma leitura de superfície anotaria que há no relato “quebradizos” do gênero literário romance, que em lugar de o fortificarem mais aumentam a sua fraqueza, pela descontinuidade, pela frouxidão que trazem ao relato. Para ser um refletido e aprofundado, digamos, um largo conto, falta a Memória uma concentração obsessiva, uma seleção rigorosa do mundo e da ação do seu personagem, como um rigoroso close de um indivíduo na multidão, mas um close que integrasse o ambiente em volta, do que dá cara e mais que três dimensões ao homem em foco. Essa ausência de organização inteira, com a força de um olhar que abarca todo o essencial, seria anotado por um leitor de passagem, mas que não é um leitor ligeiro, porque vem de um aprendizado com A Morte de Ivan Ilitch, ou até mesmo de um relato menos fecundo que o russo, como O Velho e o Mar. Vendo menos ligeiro, percebe-se que a explicação da fragilidade de Memoria de mis putas tristes se dá por uma gênese anterior à forma, antes mesmo da pura e simples técnica: há um esvaziamento do objeto narrado – nada resta, nada consegue firmar-se em pé do Velho periodista e do seu Mar de putas. E não por acaso, o “narrador”, o personagem central, o personagem sobre o qual tudo gira, apesar de periodista famoso, sequer tem nome.
O vazio do nome, com dois ou três apodos, mencionados de passagem numa só linha, sem qualquer conseqüência, esse vazio de substância do personagem mais se ressalta quanto mais ele fala de si. Assim como uma mentira vazia que mais se mostra oca quanto mais se adorna de características gratuitas, o personagem, para se mostrar um velho, nos diz:

“Em la quinta década había empezado a imaginarme lo que era la vejez cuando noté los primeros huecos de la memória. ... Um dia desayuné dos veces porque olvidé la primera... Para entonces tenia en la memória una lista de rostros conocidos y otra con los nombres de cada uno, pero en el momento de saludar no conseguia que coincidieran las caras con los nombres.”

Ora, um homem que escreve todas as semanas, que durante décadas foi um “inflador de cables”, não chega à decrepitude dessa maneira. Isto é o que nos dizem a experiência observada e a pesquisa científica. Intelectuais ativos envelhecem nas faculdades mentais mais lento que os indivíduos cultivadores da pura saúde física. No caso particular do personagem, é de se notar que ele é, ou pelo que diz ser, um homem acostumado ao estudo, ao ensino e ao exercício do latim. No entanto, a prosa desse homem lembra mais a de um outro velho conhecido, a do escritor García Márquez. Na escrita do personagem não há palavras preciosas, de sabor da etimologia, nem aquelas linhas lapidares, que sobrevivem independentes como pedras unidas, que são quase um vício dos latinistas. Dizendo de modo mais simples, inexistem arcaísmos e exibição de latim nesse velho professor de latim. Poderia ser dito, esse latinista só existe na caricatura de professores de latim. Concordo, mas dois pontos: 1 – a linguagem desse latinista não pode nem deveria ser a de Gabriel García Márquez; 2 – mais sério: esse latinista deveria ter um humanismo que assimilasse o latim como uma contingência da sua vida pessoal, nada mais que isso.
Há uma contradição interna entre personagem e narrador. Por exemplo, “ele”, o velho de 90 anos, se expõe ao ridículo, conscientemente. Isto, esta exposição, a vida nos ensina, fere o amor-próprio de indivíduos que não são escritores. (Já se vê o ser degenerado que é um escritor – não recua nem mesmo diante da ferida mais íntima, para assim melhor alcançar a verdade.) É próprio da gente humana evitar a dor, a recordação da dor, o rememorar uma humilhação. Quem viu Carta a meu pai, de Kafka, quem viu Rousseau, sabe que a expressão do que fere envergonha, dói, magoa, mas não detém o escritor. Diferente do comum da gente normal, que evita mostrar o fundo feio à sociedade. Mas o personagem de Memoria, não. Ainda que se confesse ausente da vocação e virtude de um narrador, e ignorante por completo das leis da composição dramática (o que já em si é uma ignorância, o acreditar em “leis” da composição), ainda assim, aqui e ali se expõe ao ridículo, que não se envergonha nem de reclamar que às vezes lhe arde o cu. É claro, isto são palavras de broma do escritor Gabriel García Márquez, não do velho periodista.
Essa mistura de vozes, do escritor Gabriel e do personagem, leva com certeza a dificuldades na frase da página impressa. Em parágrafos do livro há frases que não acompanham, pior, que se desconectam, que se desunem da situação e fato a que se referem. Há períodos que se assemelham a frases de montagem, inserção mal feita dos comandos “recortar” e “colar” do programa Word. Por exemplo:

“Ximena iba haciéndose más voraz cuanto mejor nos conocíamos, se aligeraba de corpiños y pollerines a medida que apretaban los bochornos de junio, y era fácil imaginarse el poder de demolición que debía tener en la penumbra”. E na mesma linha, de imediato, depois do ponto da palavra penumbra: “A los dos meses de noviazgo no teníamos de qué hablar, y ella planteó el tema de los hijos sin decirlo, tejiendo botitas en crochet de lana cruda para recién nacidos.” Ora, da Ximena voraz na penumbra ao crochet alguma coisa deve estar faltando, por supuesto.

As anotações feitas até aqui dizem respeito mais a um público exigente, desejoso e amante da escrita de Gabriel García Márquez. Mas existem algumas importantes para o grande público, aquele que esgota edições de cem mil exemplares em três meses. Esse grande público deseja ação, sexo, e dá um valor especial a um livro pelo enredo. Para esse grande consumidor de hambúrguer e best-seller anotamos: do título Memoria de mis putas tristes, do número de putas anunciadas e prometidas pelo narrador, “hasta los cincuenta años eran quinientas catorce mujeres con las cuales había estado por lo menos uma vez”, até a frase final vai uma grande frustração. Excluídas Ximena e Damiana, que não são putas, o narrador relata 3, três, Casilda, Castorina, Delgadina. Dizemos relata e nisto vai uma imprecisão de vocábulo. Com exceção de Delgadina, a donzela que ele não desvirgina, as outras duas são pequenas variações ao tema (supondo que haja um), são fugas, mais dispersivas que orgânicas de Bach. Em todas, o que é muito desagradável, ocorrem linhas que são versos medíocres de boleros ruins, que soam como uma imitação pobre de lirismo:
“Nadie merece ser más felices que ustedes” , ou “y conté las doce campanadas de las doce con mis doce lágrimas finales...”. Diante disto, qualquer comentário será apagado e vil.
Este livro de García Márquez é bem típico do que a máquina do mundo faz de um escritor. E isto não é simplesmente a máquina editorial, mas a máquina mais ampla, do business, que transforma um criador num pop star. Quando Scott Fitzgerald relatava em The Crack-Up, A Derrocada, que “parecia um bom negócio ser um homem de letras bem sucedido”, mas que se descobriu prematuramente como um fracasso, Hemingway zombou cruelmente de Scott. Tão diferente de Fitzgerald, ele, Hemingway, massa de músculos, viril, de cojones de propaganda, jamais escreveria um texto como A Derrocada, porque era um vitorioso, um herói, de magazines, de business e de fama. Mas o processo da vida é mais sutil, astucioso e delicado. Hemingway também chegaria a um crack-up, até o blow up, com uma espingarda, amplo e insofismável na testa. Em um caso e outro, a máquina do mundo, que não escolhe carne, prepara a sua matéria-prima antes. Utiliza a fama para secar, desidratar um escritor do seu húmus, o que vale dizer, reduz o criador a uma griffe, o que vale dizer, faz do seu estilo um trade mark assinado, o que vale dizer, faz do estilo e do homem uma caricatura. Assim, nessa moenda vitoriosa da máquina, ser García Márquez é escrever à maneira de Garcia Márquez, é reproduzir ao tédio seus cacoetes, ampliar blow up seus defeitos de letras de boleros ruins nas frases, expor um crack-up de piadas de mau gosto, porque afinal isso é puro Gabriel García Márquez. Mas nada, nada que se compare ao criador antes da fama, aquele de frases virgens, desconcertantes, como em El coronel no tiene quién le escriba, onde havia uma personagem que de tão pequena e elástica parecia atravessar paredes.

Procura-se Gabriel García Márquez, o outro, antes do trade mark.

Urariano Mota – jornalista e escritor

sexta-feira, outubro 13, 2006

Vislumbres da Índia



Octavio Paz

Vislumbres da India - Um diálogo com a condição humana.
4a edição.
Octavio Paz.
Tradução de Olga Savary, Editora Mandarim.
ISBN 8535400044.

Quando vivia na Ásia planejei, mais de uma vez, viajar pela Índia, tal viagem nunca se deu por mais de uma razão: desorganização, incompetência, falta de tempo, um certo medo, talvez. O fato é que nunca lá estive. Semana passada comprei, em Florianópolis, este Vislumbres da Índia – Um diálogo com a condição humana - e pus-me a viajar com Octavio Paz. Melhor companheiro de viagem não poderia haver, sobretudo em se tratando desse destino.

O autor conhece bem a Índia pois viveu lá trabalhando, primeiro como segundo secretário na embaixada do México e, anos depois, como embaixador. Vislumbres da Índia é um pequeno livro, um ensaio de, exatamente, duzentas páginas nessa edição Mandarim de 1996 que adquiri. Octavio Paz explica que escolheu a palavra ‘vislumbres’ por significar ‘indícios’, ‘realidades percebidas entre a luz e a sombras’, o que quer dizer que “esse livro não é para especialistas”. Pode até não ser, mas mesmo os especialistas devem ganhar muito com a leitura dele, é riquíssimo em impressões, análises da cultura, religião, línguas, cozinha, o sistema de castas, política, etc. Eu não desgrudei do livro enquanto não cheguei à última página, ou melhor, só por uns minutos durante um vôo em que Dona Lucrécia se sentou do meu lado e não parou de falar, olhou para a capa do meu livro, perguntou se Octavio Paz era brasileiro, teceu algumas considerações sobre a Índia, meditação e pobreza....mas esta é outra história.

Nas primeiras páginas em que conta a sua chegada à Índia, o autor se pergunta “O que me atraía?” e fala daquele deslumbramento quase ingênuo que temos ao nos vermos diante de tanta coisa nova ao mesmo tempo, tanta que não conseguimos discernir. Na impossibilidade de responder à pergunta sobre o que o atraía, Octavio Paz recorre a T.S. Eliot “O gênero humano não pode suportar tanta realidade.”

Sublinhei vários trechos que chamaram a minha atenção, que eu gostaria de ler melhor depois e que também pensei em colocar aqui....mudei um pouco de idéia quanto a isolá-los assim nesse apanhado rápido, num momento de puro entusiasmo quando acabo de fechar o livro e mal digeri o que li. Descontextualizar pode ser um ato perigoso. Ainda assim vou arriscar uma citação que se refere à democracia. Nos Estados Unidos a maioria da população repete essa palavra a torto e a direito, inclusive com ela justificando guerras, mas nunca ou quase nunca, me parecia, indo ao âmago da questão que seria se perguntar de vez em quando, o que é o real significado da palavra e como ela está sendo usada por um político e outro. Então, para Octavio Paz:

“Certamente a democracia também pode ser tirânica, e a ditadura da maioria não é menos odiosa que a de uma pessoa ou a de um grupo. Daí a necessidade da divisão de poderes e do sistema de controles. Mas as melhores leis do mundo convertem-se em letra morta se o governante é um déspota, um homem que domina os demais porque é incapaz de dominar-se a si mesmo.”


E um dos epigramas selecionados por Octavio Paz como exemplo da arte literária hindu:

Amor

Admira a arte do arqueiro:
Não toca o corpo e rompe corações.


Leila Silva Terlinchamp - Cadernos da Bélgica

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quinta-feira, outubro 12, 2006

Pancetti - Marinha

segunda-feira, outubro 09, 2006

O feitiço do tempo

O feitiço do tempo
(Groundhog Day)

Todos os anos, no dia 2 de fevereiro, na cidade de Punxsutawney em Pennsylvannia, acontece o Festival da Marmota (Groundhog Day). Reza a lenda que a marmota hiberna durante todo o inverno, e nesse dia, ela acorda e sai da sua toca pela primeira vez. Se a marmota sair e vir a sua sombra, ela volta a hibernar por mais 6 semanas, num inverno prolongado. Se ela não vê sua sombra, mantendo-se do lado de fora, isso é o sinal de que a primavera vem mais cedo.
O Feitiço do Tempo(1993), sob a direção de Harold Ramis, é uma comédia que toma esta tradição com ponto de partida. Phil Connors (Bill Murray) é um apresentador de TV de metereologia, egocêntrico ao extremo, sem amigos, nem amores. Phil é o “homem do tempo”, aquele que prevê o tempo no mundo e que se vê como “o dono” do tempo. Tanto ele como a marmota que também se chama Phil teriam a capacidade de prever o tempo – a duração do inverno. Inicia-se a alegoria.
Phil é enviado para Punxsutawney, para uma entrevista chatíssima e insignificante sobre o tal dia da Marmota. Devido a uma nevasca, pernoita na cidade e, após um dia em que tudo dá errado, Phil passa a acordar repetidamente naquele mesmo dia, sem que mais ninguém, além dele, se perceba da situação.
No repetir sucessivo dos dias, o protagonista tem tempo suficiente para reavaliar suas respostas ao meio. Aceita ser impossível transformar o que lhe vinha externamente, e gradualmente, passa experienciar o lugar, as pessoas com quem convive, abrindo-se para novas aprendizagens e outras formas de se relacionar, aprofundando-se nelas e em si mesmo. Ao reconhecer que não é capaz de mudar a realidade externa, descobre que pode, sim, mudar seu modo de lidar com esta realidade, modificando suas atitudes. Passa a agir diferentemente, descomprometido com os resultados imediatos de seus atos, não mais tratando o tempo como inimigo, mas como uma contingência inevitável, que passa a usar em seu favor. Aprende, aperfeiçoa-se, doa-se ao outro, adquire a capacidade de se preocupar e descobre-se capaz de amar.
O Dia da Marmota, título original do filme, cria uma espécie de vácuo existencial para o protagonista onde um único dia é revivido à exaustão até que este possa perceber que lhe é possível, sim, ser o criador de seu próprio tempo. O filme aponta também para o fato de que é crucial que o tempo vivido, para que seja transformador, precise ser um tempo criado pelo próprio indivíduo.
Creio que a idéia central deste filme, é, através de uma história fantástica, denunciar a existência, a cada dia, de pequenas repetições aprisionantes, grilhões invisíveis do cotidiano, que nos tornam prisioneiros do tempo numa escala, a princípio, imperceptível. O roteiro nos convida a questionar não só a capacidade transformadora do homem em relação a seu destino, como também foi capaz de exprimir uma experiência temporal que usualmente não é acessível através das palavras.

O tempo é sucessão ou duração? É finito ou infinito? Aponta em direção à irreversibilidade? Existe independente de nós?
Buscamos sempre dar um sentido ao mundo, um senso de existência que nos permita estar inseridos neste e que preserve uma certa continuidade, apesar dos conflitos e choques inevitáveis causado pelas interações com o meio. E dar sentido significa ter de desconstruir e novamente reconstruir os fenômenos e experiências que são trazidos para dentro de nós. Implica em dar nomes, transformar o desconhecido em conhecido, transformar o inexplicável em explicável, em buscar uma causa que justifique um evento, atribuir características de modalidades aos fatos, estabelecer analogias.
É uma tarefa de reconstrução simbólica que fica, no entanto, a serviço de dois senhores, por assim dizer:a necessidade de sustentação, característica de todo ser humano, muitas vezes erroneamente buscada no mundo exterior, sob a forma de dogmas, verdades absolutas ou paradigmas a serem seguidos fielmente; e a plasticidade, essência do viver e da experiência criativa, mas que traz em seu bojo o desconforto da mutabilidade.
Para Bergson, a vida interior é de natureza temporal, o instante não existe e uma experiência pode ser encurtada ou alongada de acordo com aquilo que é vivido pela consciência. O filme seria um exemplo máximo deste postulado bergsoniano.
O minuto que passa não é o minuto pensado, mas o vivido. O tempo do sempre é então o tempo vivido pelo sujeito fora do tempo compartilhado, preso num outro tempo, subjetivo, isolante, terrível. O tempo que é marcado pela não mudança, mas por um tempo que impede a transformação.
Como reza uma antiga oração judaica:
- “Bendito é o Deus que muda as horas”.

Neyza Prochet (Nina) -
Almas inquietas

quinta-feira, outubro 05, 2006

Dickens - Um conto de duas cidades

Um conto de duas cidades
Charles Dickens

Charles Dickens nasceu em 1812, em uma Inglaterra convulsionada pelas maravilhas e terrores da Revolução Industrial. Pobre, foi obrigado a começar a trabalhar aos doze anos em uma fábrica, pois seu pai não conseguiu escapar dos credores apesar das mudanças de residência e foi preso por não saldar suas dívidas. Ao morrer, em 1870, Dickens era rico, respeitado e idolatrado como um dos escritores mais populares da literatura inglesa e universal.
Semanal ou mensalmente, conforme o jornal ou revista que o estivesse publicando, seu trabalho era avidamente esperado. Mais um capítulo para saber o que aconteceria ao pobre Oliver Twist, ou ao desventurado David Coperffield, ou a Lucie Manette, heroína de “Um Conto de Duas Cidades”. Suas alegrias e tristezas, aventuras ou descobertas eram seguidos fielmente, durante meses, vários meses, às vezes anos. Tal e qual qualquer telenovela de hoje em dia. “Oliver Twist”, por exemplo, começou em 1837 e foi sendo publicado mensalmente até abril de 1839; “Martin Chuzzlewit”, foi de 1843 até julho de 1844. Mais tarde, esses capítulos eram reunidos, se transformavam em livros e ajudaram a fazer a fama de Dickens pelo mundo.
A própria vida de Dickens daria um folhetim de bom tamanho: seu pai recebeu uma pequena herança e pôde, assim, pagar suas dívidas. Durante um curto espaço de tempo, Charles conseguiu se dedicar somente aos estudos, mas seu pai continuava incompetente em manter uma vida equilibrada e estável e foi preso novamente.
Apesar de tudo, conseguiu estudar trabalhando e lia muito nos seus momentos de folga. Em 1833, trabalha como repórter para um jornal londrino, emprego que não rende muito dinheiro, mas que permite circular na alta sociedade. Conhece e se apaixona por Maria Beadnell e inicia um romance que termina abruptamente com o veto do pai da moça. O detalhe é que ele era banqueiro.
Dickens começa a escrever no jornal, despretensiosamente e sob pseudônimo, pequenas histórias do dia-a-dia, crônicas, historietas, que vão, aos poucos, fazendo sucesso. O seu pseudônimo, “Boz”, fica conhecido, a tal ponto que os editores têm a idéia de fazer uma seção que junte seus textos com os desenhos de um famoso chargista de turfe. Dickens não gosta tanto da idéia, pois seus textos seriam subordinados aos desenhos, seriam comentários escritos para a estrela maior, Robert Seymour, o chargista. O trabalho mal havia começado quando o artista comete suicídio.
Diante de situação tão trágica, o caminho fica aberto para Dickens. Produz histórias, então, sobre um londrino, um intelectual que junto com uma sociedade de companheiros intelectuais, sai em busca de entender e descobrir a verdadeira Londres, se metendo em situações absurdas e engraçadas.
O sucesso é retumbante. A Inglaterra foi tomada por um escritor com um profundo senso de humor e de crítica social sem nunca perder um carinho pelos seus patéticos e atrapalhados personagens. Até hoje, ainda podemos sentir a força do perfeito senso de humor inglês dessa obra.
“As Aventuras do Sr. Pickwick”, como ficou conhecido entre nós, foi publicado entre 1836 e 1837 e marcou a popularidade de Dickens por toda a sua vida. Nunca a perdeu. Seu segundo livro foi o lacrimoso e melodramático “Oliver Twist” que saiu da sua linha leve e humorística para descrever as agruras de um menino órfão no centro londrino.
A densidade e a crítica social foram aumentando. O Dickens que escreve o autobiográfico “David Copperfield” em 1850, o pesado “A Casa Soturna”, de 1853 ou o seco e desiludido “Grandes Esperanças”, de 1861, é bem diferente do irreverente autor do “Sr. Pickwick”.
Nunca parou de escrever. Ás vezes escrevia duas ou três histórias ao mesmo tempo, editava suas próprias revistas, viajava bastante, dava palestras e conferências pelo mundo todo. Quando morreu, estava quase no final de uma novela, “O Mistério de Edwin Drood”, cujo mistério ficou, dessa forma, insolúvel.
Dickens está completamente presente entre nós. Basta lembrar o mais-que-arquiconhecido “Conto de Natal”, onde os espíritos do Passado, do Presente e do Futuro fazem com que o avarento Mr. Scrooge re-avalie sua vida e comece a fazer o bem.

“Um Conto de Duas Cidades” apareceu em 1859 e possui todos os elementos de sua literatura. O seu inicio é célebre: It was the best of times, it was the worst of times, it was the age of wisdom, it was the age of foolishness, it was the epoch of belief, it was the epoch of incredulity, it was the season of Light, it was the season of Darkness, it was the spring of hope, it was the winter of despair, we had everything before us, we had nothing before us, we were all going direct to Heaven, we were all going direct the other way.
(Aquele foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos; aquela foi a idade da sabedoria, foi a idade da insensatez, foi a época da crença, foi a época da descrença, foi a estação da Luz, a estação das Trevas, a primavera da esperança, o inverno do desespero; tínhamos tudo diante de nós, tínhamos nada diante de nós, íamos todos direto para o Paraíso, íamos todos direto no sentido contrário. tradução da editora Nova Cultural).
Essa época é o da Revolução Francesa. As duas cidades referidas são Paris e Londres. Os personagens principais são Charles Darnay, um nobre francês, cujo verdadeiro nome é Charles Evremonde; ele esconde seu nome, pois é filho de um dos irmãos gêmeos Marqueses de Evremonde, odiados na França; Sydney Carton, advogado inglês, muito parecido fisicamente com Charles Darnay, porém com personalidade oposta; Lucie Manette, filha do Dr. Alexandre Manette, casa-se com Charles. O Sr. Manette havia sido, há algum tempo, preso injustamente por causa de acusações fajutas forjadas, alguém pode adivinhar?, pelo pai do doce e honesto Charles Darnay. Mais não pode ser dito para não estragar o prazer das sucessivas surpresas.
História mirabolante, desencontros fortuitos, paixões desenfreadas, maniqueísmo feroz, momentos melodramáticos e emocionantes, maldade absoluta, humanidade e esperança (mesmo que bem mal-tratadas). “Um Conto de Duas Cidades” é uma fábula com todos os elementos dickensianos à flor da pele.

Claudinei Vieira – Desconcertos

terça-feira, outubro 03, 2006

Interpretações do Brasil

José Pancetti


JOSÉ PANCETTI
marinheiro, pintor e poeta
(1902-1958)
Textos: José Roberto Teixeira Leite, Max Perlingeiro, Quirino Campo Fiorito, Flavio de Aquino e Mario Barata.

Edições Pinakotheke
RJ - Brasil.


O livro abrange o período inicial do artista, em 1933, até sua morte, em 1958 e mostra seu trabalho ligado ao mar e sua vida de marinheiro. Muitas das obras estão aqui reproduzidas pela primeira vez e o livro é organizado tematicamente e em ordem cronológica em 6 partes: retratos, naturezas mortas, paisagens e marinhas do Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia e Paisagens de Minas Gerais.
Teixeira Leite comenta: “Não foi Pancetti um intelectual, não bebeu nos livros sua sabedoria – que era exclusivamente pictórica, adquirida a duras penas na prática, descontado o breve e irregular aprendizado no Núcleo Bernardelli. Seu mundo de idéias plasmou-se por sua vez na escola da vida, amadurecido pela infância infeliz, pela adolescência errática, na luta constante contra a doença, nas incontáveis paixões, somando-se a tudo isso uma personalidade por índole romântica e arrebatada, que longos anos de Marinha não disciplinaram de todo. Disciplinada foi, isso sim, sua pintura, para a qual sempre encontrou a composição sintética, o tom exato, a emoção contida”.

Giuseppe Gianinni Pancetti (Campinas SP 1902 - Rio de Janeiro RJ 1958). Pintor. Muda-se para a Itália em 1913. Em 1919, ingressa na Marinha Mercante italiana e viaja por três meses pelo Mediterrâneo. Em 1920, de volta para o Brasil, executa diversos ofícios; trabalhando em fábrica de tecidos, como ourives e garçom, entre outros. Conhece o pintor Adolfo Fonzari (1880-1959) e auxilia-o na pintura decorativa de uma residência. Em 1922, alista-se na Marinha de Guerra brasileira, onde trabalha por mais de vinte anos. Em 1933 ingressa no Núcleo Bernardelli e recebe orientação de Manoel Santiago (1897-1987), Edson Motta (1910-1981), Rescála (1910-1986) e principalmente do pintor polonês Bruno Lechowski (1887-1941). Participa das exposições do Salão Nacional de Belas Artes, sendo premiado em várias edições. É considerado um dos principais pintores de marinhas do país.

Vera do Val - Rose Rose Rosebud
Fonte: Itaú Cultural

domingo, outubro 01, 2006

Amélie Nothomb


Biografia da Fome[1]


Amélie Nothomb é uma escritora belga que nasceu em 13 de agosto de 1967 em Kobe, no Japão onde o pai trabalhava como diplomata. Seus livros são traduzidos em 35 países, ela publica em média um livro por ano, vende sempre em torno de 700.000 exemplares de cada.

Biografia da fome é, certamente, um título estranho, mas o personagem do livro não é realmente a fome e sim a própria Amélie Nothomb, ela e sua fome de tudo, doces, vida, amor. As primeiras páginas não me interessaram muito e a sua tentativa de explicar a escolha do assunto partindo de Vanuatu, um lugar que vive na abundância - o problema ali não é a fome, mas o contrário - parece uma introdução meio forçada. A partir da página dezesseis já começa pelo menos a ficar engraçado. O humor, a ironia, sobretudo ao tratar da infância, são os pontos fortes de A. Nothomb. É, então, ao falar da China e fome, que começa o interesse dessa sua narrativa autobiográfica, ‘a campeã da barriga vazia é a China’, diz a autora, e é por isso mesmo, pela necessidade de transformar tudo em comida que os chineses atingiram a excelência, o refinamento na arte culinária e não pararam aí, a fome os levou a descobrir tudo, a pensar em tudo, a tudo ousar “Estudar a China, é estudar a inteligência.” Escreve Nothomb.

Amélie narra neste Biografia da Fome a sua infância no Japão onde ela começou a estudar no Yôchien (Jardim de infância), ali ela era a única criança não-nipônica, certo dia foi desnudada pelas outras crianças que queriam se certificar se ela era ‘toda branca’. Ela conta ainda que seus pais foram educados na fé católica, esta fé eles perderam para sempre ao chegarem ao Japão e serem confrontados a outras religiões, ao perceberem que outros povos viviam de forma ‘sublime’ sem nunca terem ouvido falar no cristianismo. Era como se tivessem lhes pregado uma peça durante a vida toda ao lhes incutirem o dogma de ‘uma só religião boa e verdadeira.’

Em 1972 a família se muda para a China, o primeiro choque para a pequena Amélie que tinha nascido ali no Japão e que julgava que aquele fosse o seu país. A China era para ela o estrangeiro, em tudo o contrário do seu Japão, vivia fechada num gueto reservado aos estrangeiros, proibidos de dirigirem a palavra aos chineses pois isso equivaleria a enviá-los a uma prisão. Em Pékin Amélie vai descobrir outras nacionalidades além dos japoneses, belgas e os raros americanos que via no Japão. É sempre com muita ironia que a autora trata disso e de outras descobertas, prioriza sempre o ponto de vista da criança que era. Volta e meia relembra o Japão de forma nostálgica, quanto mais vive a China, mais sente falta do Japão.

Três anos depois, em 1975, o pai é transferido para Nova Yorque. Amélie tem oito anos, ela e a irmã, Juliette, um pouco mais velha que ela, ficam cada vez mais unidas e tentam tirar o máximo desta experiência, da liberdade que lhes era oferecida ali. Os pais também saem muito, vão ao teatro, cafés. Um dos maiores problemas de Amélie nesta época era equacionar o número de meninas apaixonadas por ela no Lycée Français onde estudava, ela estava apaixonada só por duas e havia dez se arrastando atrás dela, algumas a irritavam, outras ela tratava com uma condescendência de rainha. O seu sucesso se devia ao fato de ser ela a melhor aluna da classe. O outro problema era tentar ser amada ao extremo pela mãe e por Inge, a linda baby sitter belga que ela tentava seduzir com poemas. Foram mais três anos em Nova Iorque e, em 1978 partem para Bangladesh. Pode-se imaginar o choque, sobretudo para as duas irmãs, elas preferem passar o tempo em casa lendo. Um dia o pai leva a família a Jalchatra onde uma belga tinha criado um leprosário e se ocupava dia e noite dos doentes. Dormem ali por alguns dias, no meio do nada, sem luz elétrica, vendo a belga tratar dos doentes e sem compreender aquela abnegação, mas respeitando. O pai, que estava tentando conseguir ajuda do governo belga para o leprosário decidira que a família devia participar com ele da viagem, não costumava poupar as filhas das realidades dos lugares onde viviam.

Quanto mais se aproxima do final, mais interessante se torna a sua história e mais rápida também são as passagens. Anorexia na adolescência, alcoolismo (segundo ela desde a tenra infância), a ida para Bruxelas aos dezessete anos para estudar Letras na Université Libre de Bruxelles e, finalmente, a volta para o Japão depois de se formar. Esta experiência no Japão é relatada no seu livro Stupeur et Tremblements
[2] que foi transformado em filme[3], um bom filme, aliás, saiu em 2003, mas acho que não foi muito além do circuito europeu.

Mais de uma vez a autora faz referência a seus livros anteriores, primeiro refere-se a Métaphysique des tubes
[4] (p.31) e depois Le Sabotage Amoureux[5] (p.61), quando fala da mudança para a China. Conheço os dois, são todos autobiográficos como este e tratam também da infância.

Mais sobre A. Nothomb na Wikipedia.
Em português aqui e aqui.


[1] Biographie de la faim. Amélie Nothomb. Le livre de poche – Albin Michel, 2004
[2] Temor e Tremor. Bizâncio 2000 e ASA 2004. Medo e Submissão, editora Record, 2001.
[3] Filme de Alain Corneau, França, 2003, com Sylvie Testud, Kaori Tsuji, Taro Suwa, Bison Katayama, Yasunari Kondo
[4] A Metafísica dos Tubos, Bizâncio, 2001 e Editora Record, 2003.
[5] Literalmente, A Sabotagem amorosa, não sei se foi traduzido para o português.
Leila S. Terlinchamp - Cadernos da Bélgica

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