quinta-feira, setembro 28, 2006

Hilda Hilst

"Também são cruas e duras as palavras e as caras
Antes de nos sentarmos à mesa, tu e eu, Vida
Diante do coruscante ouro da bebida.
Aos poucos
Vão se fazendo remansos, lentilhas d’água, diamantes
Sobre os insultos do passado e do agora".

Hilda Hilst - Alcoólicas

Poucos escritores foram tão insultados pela omissão dos contemporâneos como Hilda Hilst. Provavelmente a reclusão voluntária no interior de São Paulo, em Campinas, terá contribuído para transformar a extraordinária poeta em vítima e cúmplice do incompreensível esquecimento que editores e leitores lhe devotaram quase a vida inteira.
Com efeito, apesar de sua obra já estar traduzida para algumas línguas e ser conhecida de gente culta e bem pensante há décadas, a maioria de seus livros foi publicada apenas por pequenas editoras, com notável destaque para Massao Ohno. De todo modo, ela venceu, como prova a origem da epígrafe deste artigo, cujos versos foram extraídos de “Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século”, escolhidos pelo crítico e professor universitário Ítalo Moriconi (Rio, Editora Objetiva, 2001).
E como o município que ela escolheu para viver a tratou? Vejamos o que nos informa Silvana Guaiaume, correspondente do Estado de S.Paulo em Campinas: "A escritora enfrentou uma grave crise no final da década passada, quando a prefeitura de Campinas quis cobrar impostos atrasados sobre sua propriedade, ameaçando levar sua casa a leilão".
Ao cobrir a morte da escritora, nossa imprensa, descontando-se mancadas antológicas, forneceu ao leitor abundantes matérias, por norma negadas quando viva. Ainda assim, seu cadáver ainda quente, um comentarista da Rádio CBN lamentou que ela tivesse demorado a conquistar os leitores e para fazer sucesso ela escrevera até mesmo livros de auto-ajuda, como Perdas e Ganhos, há tempos freqüentando a lista dos mais vendidos. (O livro em questão é de Lya Luft e não é de auto-ajuda). Hilda Hilst escrevendo livros de auto-ajuda! Esta foi para o Febeapá de Stanislaw Ponte Preta, edição póstuma, revista pelo espírito do autor, psicografado pelo comentarista em seu notável escorregão. Por se tratar de programa de rádio, a correção poderia ter sido feita instantaneamente, mas não o foi e a confusão teve ter feito escola, pois repetir é recurso ordinário na terra dos papagaios.

Angústias de Hilda

Carlos Heitor Cony, entretanto, no mesmo programa de rádio, destacando a importância dos livros de Hilda Hilst, a audácia dos temas e até o vezo pornográfico que imprimiu a alguns poemas, lembrou que, não apenas a obra, mas também a escritora era muito irreverente e propusera à amiga Lygia Fagundes Telles a fundação de um bordel geriátrico.
Hilda Hilst estreou como escritora no esplendor dos vinte anos, com Presságio. A nuvem de melancolia que pairava sobre sua obra foi o Brasil quem estendeu. E foi fruto de uma desgraça nacional: mais de meio século depois de sua estréia, o país ainda não foi alfabetizado e a riqueza dos livros continua concentrada como todas as outras, com a exceção natural do talento, que viceja misteriosamente em indivíduos aleatoriamente escolhidos pelo que chamamos também Destino. E este era o caso de Hilda Hilst.
Mas esses indivíduos não estão imunes ao meio social. Este problema foi magistralmente abordado por Thomas Mann em Os Buddenbrook:
"Haverá sempre homens que têm direito àquele interesse pelo próprio eu e a essa observação minuciosa dos seus sentimentos: poetas que sabem dar forma segura e bela a sua privilegiada vida interior, enriquecendo assim o mundo sentimental de outras pessoas. Mas nós nada mais somos do que simples comerciantes, querida, as nossas auto-observações são desesperadamente insignificantes".

Profusão e diversidade

Outra mancada consistiu em mudar o local de nascimento da escritora, de Jaú para Campinas. Mas foi compensada largamente pela qualidade do que disseram as personalidades escolhidas para repercutir o desaparecimento da escritora.
"Hilda é um caso raro na literatura brasileira", disse Marçal Aquino, explicitando que ela tinha legiões de fãs, apesar do trabalho solitário e pouco reconhecido. O poeta Álvaro Alves de Faria, que a visitara havia pouco tempo, lembrou que ela estava preocupada com o que fariam depois de sua morte com os seus 70 cães.
Tomara que não façam o que a escritora revelou num artigo que publicou no jornal “Correio Popular”, de Campinas (1/3/93):
"E um outro cara que eu conheci, todo tímido, parecia sempre um urso triste, também gostava de poesia... Uma tarde veio se despedir, ia morar em Minas... Perguntei: ‘E todos aqueles gatos de que você gostava tanto?’ Resposta: ‘Tive de matá-los’. ‘Mas por quê?!’ Resposta: ‘Porque gatos gostam da casa e a dona que comprou minha casa não queria os gatos’. ‘Você não podia soltá-los em algum lugar, tentar dar alguns?’ Olhou-me aparvalhado: ‘Mas onde? Pra quem?’ ‘E como você os matou?’ ‘A pauladas’, respondeu tranqüilo, como se tivesse dado uma morte feliz a todos eles. E por aí a gente pode ir, ao infinito. Aqueles alemães não ouviam Bach, Wagner, Beethoven, não liam Goethe, Rilke, Hölderlin (?????) à noite, e de dia não trabalhavam em Auschwitz? A gente nunca sabe nada sobre o outro. E aquele lá de cima, o Incognoscível, em que centésima carreira de pó cintilante sua bela narina se encontrava quando teve a idéia de criar criaturas e juntá-las?"

Tarefa urgente

Houve diversas tentativas de assassinato por esquecimento premeditado. A todas Hilda Hilst resistiu com talento, pertinácia e irreverência – suas grandes armas para enfrentar o descaso de um país inteiro diante do que de melhor seus filhos já produziram, como ocorreram a tantos outros escritores. E a escritora morreu certa de que, se não teve em vida os leitores que desejava, teve o reconhecimento que nunca procurou, que sua obra granjeou naturalmente entre aqueles que por ela se interessaram.
Na década de 1970 ocorreu processo semelhante com Clarice Lispector, de quem foi requerido, como de hábito, o atestado de óbito para o reconhecimento.
Hilda Hilst inspirou grandes poetas brasileiros em atividade, como é o caso de Neide Archanjo, que acaba de lançar livro novo em Paris e vai ter toda a sua obra publicada pela editora A Girafa.
Como o escritor é a lenha de sua própria fogueira, que a morte de Hilda Hilst nos leve à formulação de novas estratégias para o livro, que evite tanto descaso. Ainda não é tarde, pois nunca é tarde para recomeçar. E a tarefa é urgente.


Deonísio da Silva - Observatório da imprensa

terça-feira, setembro 26, 2006

Tess of the d’Urbervilles



Thomas Hardy


O autor de Tess of the d’Urbervilles, Thomas Hardy, nasceu em 02 de junho de 1840 em uma região rural da Inglaterra, Dorset. Permaneceu um autor obscuro até a publicação de Far from the Madding Crowd em 1874 e, finalmente, Tess of the d’Urbervilles, publicado em 1891, garantiu de vez o seu futuro financeiro. Esta novela, seguida de Jude the Obscure (1895) trouxe-lhe fama e conforto, mas também muitos aborrecimentos por parte da sociedade conservadora da época.


Tess of the d’Urbervilles, a mais famosa de suas novelas, foi levada ao cinema por Roman Polanski em 1979 com Nastassja Kinski no papel de Tess Durbeyfield, a personagem principal. Esta é a história de uma bela moça de família simples, vítima das circunstâncias, da moral cristã e vitoriana e do próprio encanto. O pai, Mr. John Durbeyfield não tem muito senso de responsabilidade, prefere beber a trabalhar ou se dedicar à família. Um dia esse homem descobre, por acaso, que descende de uma família nobre, os d’Urbervilles, corre para o pub contar a novidade aos amigos e ali ouve dizer que há uma senhora d’Ubervilles muita rica, vivendo em mansão, não muito longe de Marlott que é onde vive Tess e os seus. Mr. John e esposa, Mrs. Joan Durbeyfield, enviam Tess a essa senhora com a missão de pedir-lhe ajuda financeira. É aí que os verdadeiros problemas de Tess começam, exatamente onde Alec d’Urberville entra na história. Este que ele supõe ser seu primo, na realidade não o é, o pai de Alec juntou uma grande fortuna, mas faltava-lhe um nome nobre, ele pesquisou a história de algumas famílias e decidiu tomar este nome de ‘empréstimo’ para dar uma ‘envernizada’ no passado. Tess é seduzida, nos termos de hoje diríamos violentada, por Alec e perde o único valor que uma mulher tinha na época, a honra. Ela segue até o fim pagando por um crime que não cometeu, muito ao contrário, foi vítima.


Algum tempo depois Tess encontra Angel, um dos personagens mais interessantes do romance, um livre pensador, um homem que abandona as certezas e o caminho traçado pelo pai para seguir fiel a si mesmo, respeitando o seu próprio modo de ver o mundo. Nem mesmo Angel com o seu refinamento e sua bondade consegue entender e aceitar o drama de Tess, ou melhor, precisa deixar o seu meio, vir ao Brasil e quebrar a cara, para voltar arrependido quando já era tarde demais.


Thomas Hardy trata principalmente desta hipocrisia da moral cristã, da dominação masculina, das injustiças da era vitoriana ligadas à idéia de classe social e da confusão e mudanças que ocorriam nessa época. Os D´Urbervilles tinham um nome nobre, mas era só, a família de Alec tinha dinheiro, mas eram vulgares e tentaram resolver a questão usurpando um nome.
As controvérsias envolvendo Tess of the d’Urbervilles e Jude the Obscure desaninaram a tal ponto Hardy que ele abandonou as novelas e passou a se dedicar inteiramente à poesia.

Foto Nastassja Kinski no papel de Tess.

Mais sobre o filme aqui e aqui.

O clássico A bem-Amada, de Thomas Hardy é publicado no Brasil pela editora Conex, nada encontrei sobre a tradução de Tess.

Leila Silva - Cadernos da Bélgica

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segunda-feira, setembro 25, 2006

Beryl Cook - Tea in the garden

sexta-feira, setembro 22, 2006

Elizabeth Bishop - Inéditos

Acaba de ser publicado em Nova York um livro com mais de 350 páginas com todos os inéditos de Elizabeth Bishop, incluindo trinta ou quarenta esboços de poemas escritos no Brasil. Ela viveu por mais de vinte anos em nosso país, de 1951 até o começo da década de 70.
Os trabalhos agora revelados em “Edgar Allan Poe & the Jukebox” (Farrar, Straus and Giroux) raramente podem ser considerados poemas completos, e muitas vezes funcionam como registro de observações cotidianas, com variantes de possíveis versos à margem do texto principal. De qualquer modo, há muitas curiosidades para o leitor brasileiro, como as estrofes dedicadas a Carlos Lacerda por ocasião da morte de Getúlio Vargas. Têm por título “Suicídio de um Ditador Moderado”, e dizem, por exemplo, que Os jornais já tinham sido vendidos; as bancas/já estavam fechadas. Mas de qualquer modo, durante a noite/as manchetes se escreveram sozinhas (...) Este é um dia que está bonito também,/e quente e calmo. Às sete da manhã eu vi/os cachorros sendo levados para passear pela praia famosa/como sempre, numa aurora de brilho cinza e verde,/deixando a marca de suas patas na areia úmida./(...)Às oito, dois meninos empinavam pipas.
Nada além de um esboço, talvez, mas pode-se intuir a sugestão de uma indiferença natural diante da história mesmo num evento incomparavelmente traumático como a morte de Getúlio. A beleza esmagadora da paisagem carioca teria o efeito de acentuar a desproporção brasileira entre História e Natureza. De resto, para quem nasceu num país em que vários presidentes foram assassinados, a idéia de um presidente suicida deve ter um componente a mais de estranheza; é nesse sentido que “as manchetes se escreveram por si mesmas”, como que sem intervenção humana.
Dedicando o poema a Carlos Lacerda, principal carrasco político de Vargas, Elizabeth Bishop parece investir sobretudo numa idéia de purificação. Cumpriria, em tese, celebrar o fim de um governo corrupto e elogiar a atividade de denúncia jornalística; numa estrofe anterior ela fala de uma “verdade” que finalmente aparecerá, como o conteúdo de um cinzeiro sujo. Ao mesmo tempo, o quadro da praia de Copacabana ao amanhecer mistura imagens de pureza cotidiana com uma sensação de neutralidade, acima do mundo das responsabilidades políticas reais. “Parabéns, o ditador está morto, mas não se sinta um assassino em função disso”: se esta interpretação é correta, o poema estava enveredando em caminhos emocionais e éticos de tal modo tortuosos que não admira ter sido abandonado.

Transcrevo, de qualquer modo, o original em inglês.

This is a day when truths will out, perhaps;/leak from the dangling telephone ear-phones/sapping the festooned switchboards’ strength;/fall from the windows, blow from off the sills,/ --the vague, slight unremarkable contents/of emptying ash-trays; rub off on our fingers/like ink from the un-proof-read newspapers,/crocking the way the unfocused photographs/of crooked faces do that soil our coats,/our tropical-weight coats, like slapped-at moths.// Today’s a day when those who work/are idling. Those who played must work/and hurry, too, to get it done,/with little dignity or none./The newspapers are sold; the kiosk shutters/crash down. But anyway, in the night,/The headlines wrote themselves, see, on the streets/and sidewalks everywhere;/a sediment’s splashed/ even to the first floors of apartment houses.//This is a day that’s beautiful as well,/and warm and clear. At seven o’ clock I saw/ the dogs being walked along the famous beach/as usual, in a shiny gray-green dawn,/leaving their paw prints draining in the wet./The line of breakers was steady and the pinkish,/segmented rainbow steadily hung above it./ At eight two little boys were flying kites.

Marcelo Coelho –
Blog do Marcelo

terça-feira, setembro 19, 2006

Os Olhos Verdes



Marguerite Duras (1914-1996)

Editora Globo, 1988
Tradução de Heloisa Jahn

O livro Os olhos Verdes é uma reunião de vários textos de Marguerite Duras escritos para a Cahiers du cinéma, revista que tem permanecido por muitas décadas, a publicação mais respeitada na área de cinema no mundo. Marguerite Duras foi responsável pelo número especial de junho de 1980. Era um costume da revista convidar cineastas para dirigirem edições especiais, Godard e Wim Wenders já tinham passado por esta experiência antes de Duras.

Marguerite Duras é uma provocadora, provoca o leitor, o espectador, o crítico e decerto a si mesma porque não é, ou melhor, não era, uma dessas pessoas contentes. Mas não é uma provocadora vazia, alguém que contesta por contestar ou para ganhar espaço, fosse assim já teria sido esquecida. Duras é extremamente autêntica e pessoal. Eu, inclusive, nem gosto da provocação em si de um modo geral. Muitos usam isso como método para promoção, a regra é ‘provocar’....ou melhor, me expressei mal, a provocação é boa sim porque tem a vantagem de despertar, de dar uma sacudida, de levar à dúvida e é sempre bom ter dúvidas, o que não aprecio é uma certa atitude atual do ‘sou contra’, é um espernear confundido com provocação. Duras era muito inteligente e perspicaz para ser uma ‘esperneadora’, nela sim, o termo provocadora cai bem. Devia ser terrivelmente chata porque não aceitava compromissos em nome de nada, preferia fazer um filme para meia dúzia de pessoas do que ceder, trabalhava com orçamentos baixíssimos. Pagava um preço alto para ser sempre ‘ela mesma’ e na verdade é conhecida e respeitada por essa mesma razão, por essa obstinação em ser a Marguerite Duras, ainda que isso doesse muito. E eu acho que doía.

Um dos textos deste livro é dedicado ao espectador, é um dos meus preferidos. Uma cineasta que pensa ‘realmente’ no espectador e fala dele e com ele talvez não seja assim tão fácil de encontrar. Certo, muitos pensam no espectador, mas como um número, um cliente, um sujeito passivo, Duras não, ela pensava nele com respeito, como ser humano, ou melhor, como indivíduo e sem ser condescendente em momento algum. Ela aceita que há um tipo de espectador que nunca vai ser atingido pelo seu cinema e prefere (preferia) não fazer cinema para muitos, trabalhar com pequenos orçamentos e ficar livre de compromissos para trabalhar em outros.

Em outro artigo, Fazer cinema, a autora discorre sobre as diferenças do seu trabalho cinematográfico e aquele cinema feito pelos profissionais. Um, os cineastas quantitativos, e outro, cineastas como Duras, nunca se encontram e nunca terão o mesmo público. Para ela está bom assim.

Em outro momento ela faz um paralelo entre Woody Allen e Chaplin, ama Chaplin por ser ele universal e não aprecia os limites geográficos de W. Allen (América do Norte, Nova York, Manhattan). Diz que ao lado de Chaplin Woody Allen é um ‘avaro’, um ‘economizador’. Lembrando mais uma vez, são artigos dos anos oitenta, de lá pra cá, W. Allen fez muitos outros filmes. Esse de quem ela fala é o cineasta de Annie Hall, já muito bem visto na França, por isso mesmo ela escreveu sobre ele.

Outro artigo tem por título Renoir, Bresson, Cocteau, Tati, em cada parágrafo ela coloca o nome de um dos cineastas e logo depois coisas do tipo: gosto, não gosto. Ela mesma diz que ‘ esse pessoal do Cahiers du cinéma’ a deixou muito livre para escrever ‘o que quisesse’, ‘como quisesse’. Um dos parágrafos deste artigo trata da cineasta....Duras. “Não gosto de tudo que Duras fez, mas India Song, Son nom de Venise dans Calcutta désert, Le camion....sei que são das coisas mais importantes que já se fizeram no cinema.”

Outra parte do livro trata da crítica que, segundo ela, não sabe realmente criticar, julga os filmes pelo orçamento. Excetuando um ou dois, não há mais ‘descobridores de filmes’. E volta a Chaplin em outro artigo, uma citação que vale a pena: “Dizem que a grande sorte de Chaplin foi ter chegado na época do mudo. Digo que essa dimensão do mudo jamais foi atingida no falado.”

Recebi este livro de presente em 1990, de amigo invisível, aliás. Quem disse que a gente só recebe porcaria de amigo invisível? Das pouquíssimas vezes em que participei de um recebi Os Olhos verdes da amiga Tereza, está escrito aqui o nome, a data e uma dedicatória. Tereza era colega dos cursos de francês e perdeu-se nesse labirinto de meses, anos, décadas...e eu gostava dela. O livro já tem umas páginas amareladas, ficou muitos anos fechado, agora o reli com mais prazer do que naquela época e ‘naquela época’, 1990, Duras vivia ainda. Fiz algumas pesquisas e não encontrei nada mais sobre este livro na internet, acho que nunca mais foi reeditado. O prefácio é de Inácio Araújo, destaco uma parte de seu texto: “Também ela uma deslocada, essa francesa nascida na Indochina, parece apresentar-se como o judeu, cuja pátria de origem é, sempre, o exílio. Ao contrário de tantos diretores para quem o cinema tornou-se uma espécie de ‘verdadeira pátria’, para Marguerite Duras ele se constitui – tal qual a língua – em outro exílio.”

O verdadeiro nome de Duras é Marguerite Donnadieu, ela nasceu em Saïgon, em abril de 1914 e morreu em Paris em março de 1996. Foi escritora, roteirista, cineasta, seu trabalho mais conhecido deve ser o livro autobiográfico O Amante que lhe rendeu o importante prêmio Goncourt, foi traduzido para mais de 40 línguas e levado às telas por Jean-Jacques Annaud, o resultado parece não ter agradado em nada a escritora. Outro de seus trabalhos conhecido é o roteiro do famoso Hiroshima mon amour de Alain Resnais, uma das obras primas da Nouvelle Vague.

Leila S. Terlinchamp - Cadernos da Bélgica

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Tango -Beryl Cook

segunda-feira, setembro 18, 2006

I Love Billy Wilder

Eu sou apaixonado por Billy Wilder.
Acho tolice nomear "o melhor", mas em minha mitologia particular, BW é o melhor de todos. Nenhum cineasta me deu mais prazer do que ele, à exceção recente de Buñuel.
Mas Billy tem uma vantagem insuperável: ter experimentado todos os gêneros narrativos - comédia, drama, romance, policial, etc.
Alguém disse que ele era o último dos grandes cineastas da época de ouro do cinema. Perfeito. Eu acrescentaria apenas, definindo essa "época de ouro": o último grande de um cinema essencialmente literário.
Ainda que faça um uso magistral e, ao mesmo tempo, muito simples dos recursos narrativos do cinema, Billy é um escritor sofisticado, autor de diálogos memoráveis e um criador de situações inigualável.
E nos deixou ao menos esta cena, que eternizou Marilyn Monroe - e é certamente uma das 10 cenas que encarnam o cinema no imaginário universal.
(As outras nove? Não sei... O olho cortado à navalha, em O Cão Andaluz, de Buñuel; Carlitos com o menino, em O Garoto; Bogart e Bergman no aeroporto, em Casablanca; Gene Kelly dançando na chuva, em Cantando na Chuva; faltam cinco ainda...)
Aliás, ninguém disse isso ou ressaltou isso: Billy Wilder era um apaixonado pelas mulheres, certamente um sincero Don Juan.
Marlene Dietrich, Marilyn Monroe, Audrey Hepburn, Shirley Maclaine, só pra citar as que lembro de cabeça porque (com exceção de Dietrich) objetos do meu desejo.
E isso sem falar em Greta Garbo que ele não dirigiu, mas a quem fez sorrir, como autor do roteiro de Ninotchka.
A outra cena que me encanta nesse filme - O Pecado Mora ao Lado - é a de Marilyn descendo a escada que liga seu apartamento ao de seu vizinho.
A escada estava, na verdade, desativada - justamente para que o proprietário do imóvel pudesse dividir em dois o que antes era uma espécie de duplex. De repente, no meio da noite e em pleno delírio amoroso do vizinho, a escada se abre do teto e Marilyn começa a descer, lenta e majestosa, um sorriso radiante nos lábios. E nem nós, nem o vizinho podemos dizer se é verdade ou se é, de fato, um delírio.
Essa incapacidade fundamental de se dizer EXATAMENTE o que é, o que ocorre - que tanto nos maravilha quanto nos aterra - essência da arte e condição da existência é o que constitui a "ironia filosófica" de Wilder e o coloca ao lado dos maiores criadores de todos os tempos.

Antonio Caetano Café Impresso

sexta-feira, setembro 15, 2006

A história do governo Lula em charges


E agora Lula?
Márcio Malta ( Nico
)

Ed Marimba

A última pesquisa do instituto Datafolha indica vitória do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no primeiro turno da disputa presidencial, com 51% das intenções de voto. O chargista Nico não poderia ter escolhido melhor hora para lançar o livro de charges "E agora, Lula? Charges do desastrado governo" (Marimba, R$ 12). A pergunta que dá nome à obra é feliz porque soa ambígua. Ao mesmo que recupera, em desenhos, como foram os últimos quatro anos de Lula, provoca o presidente sobre como seria em eventual segundo mandato.
A obra mistura trabalhos inéditos com outros, já publicados no jornal "Pasquim 21". Como toda boa charge, usa o humor para dar o tom da crítica. Crítica que não falta nas 40 páginas do livro. Além dos desenhos, Nico compilou frases do presidente Lula, ditas ao longo deste mandato. Chamou de "Guia de Frases Besteirol do Presidente Lula"
O carioca Márcio Malta, o Nico (o apelido o acompanha desde a infância), não esconde a frustração em relação ao Partido dos Trabalhadores. Foi militante de 2000 a 2003. Abandonou o barco e migrou para o PSOL, do qual é um dos fundadores. A política o acompanha na vida, nas imagens e nas letras também. Ele termina um mestrado em Ciência Política na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Estuda a figura do Jeca Tatu, do histórico cartunista J. Carlos. Analisa obras de 1919 a 1960.

O lançamento do livro se dará nessa quinta feira, dia 21/9 na Livraria Espaço Cultural, pátio do IFCS/UFRJ, Largo de São Francisco, Centro, 1 - Rio de Janeiro/RJ, juntamente com "A Presidência Lula - Passos e Tropeços" do historiador Lincoln de Abreu Penna.

Paulo Ramos – Blog dos quadrinhos

Party girls - Beryl Cook

terça-feira, setembro 12, 2006

O Diário de Kafka: Antologia de páginas íntimas

Antologia de páginas íntimas
Franz Kafka

Guimarães Editores - Portugal

Tento aqui sistematizar um pouco algumas reflexões que são produto de leituras esparsas que, nas minhas incursões pelo mundo das letras, fiz de diversos escritos de Franz Kafka (1883 – 1924). Aquele moço magricela e desajeitado que num Congresso de Escritores realizado em Viena na última década de vinte foi apresentado a Otto Maria Carpeaux, por alguém que lhe segredou tratar-se de um sujeito meio tantã que publicara uns contos que ninguém compreendia. Os anos correram com velocidade de raio até que um dia “aquele magricela tantã” foi e continua sendo saudado como um dos maiores gênios literários do século XX.
Depois de ter lido aqui e ali O Processo; Cartas ao Pai e também as Cartas a Milena; quebrado a cabeça com A Muralha da China, esbugalhado os olhos na Colônia Penal, sofrido com o agrimensor em O Castelo e roído tudo quanto é unha em A Metamorfose, caiu-me nas mãos a Antologia de Páginas Íntimas. Era uma edição portuguesa, de 1961, da Guimarães Editores (Lisboa) que pesquei remexendo um sebo. Peguei o livro na estante e folheei-o, mas como nos casos de amor à primeira vista sabia que não ia resistir. Passei no caixa, e para não interromper a tradição pedi desconto, o cara tirou uns tico-ticos, paguei e solicitei que embrulhasse. Li tudo de uma hora para outra, de lambida, na maior sofreguidão. Só quem constantemente viaja pelos livros é capaz de bem sentir o que estou dizendo. Queria descobrir alguma coisa, ver se conseguia penetrar naquele enigma chamado Kafka.
O erudito e bem fundamentado prefácio da Antologia de Páginas Íntimas foi escrito por um certo Alfredo Margarido (que não tenho a menor idéia de quem seja). Logo nas primeiras linhas ele me acertou um soco na boca do estômago que me fez ver estrelas, ao escrever: “Um dos fatos mais impressionantes que ressaltam da leitura dos ‘Diários’ do judeu alemão Franz Kafka é, sem dúvida, a contínua presença de referências a nomes que podemos encontrar entre as vítimas dos campos de concentração nazis”.
Bem, não vou aqui chover no molhado refazendo e examinando o que já foi muito dito sobre as adversidades históricas, especificidades culturais e familiares que serviram como argamassa para fazer de Kafka um verdadeiro kafkiano. Basta lembrar que ele descendia de uma família judia e que nasceu em Praga, quando reinava um forte anti-semitismo na região, incorporada ao império austro-húngaro sob o domínio dos Habsburgos. Acrescente-se a isso as difíceis relações que Franz manteve com o pai, que descreve como um fanfarrão, arbitrário, prepotente e dominador.
Claro que não foi Kafka que autorizou a vinda a lume do diário onde fizera anotações entre maio de 1910 e junho de 1923, publicado em Portugal com o título de Antologia de Páginas Íntimas. Aliais Kafka, pediu a um de seus raros amigos, Max Brod, que quando morresse metesse fogo naquela papelada, nos seus cadernos cheios de escritos e que se apinhavam por diversos espaços de seu modesto quarto. Considerava que informações sobre ele, que haveriam de ser apagadas pela posteridade, bastava as contidas nas páginas das míseras tiragens de alguns livros de contos que bancara com seus próprios caraminguás, economizados com grande sacrifício. Livros que permaneceram encalhados e entristecidos em locais pouco iluminados. Talvez por desconfiar da forte potencialidade dos escritos do amigo e até como forma de homenageá-lo, mantendo viva a sua memória, Max Brod no lugar de queimar a papelada, pouco a pouco, a publicou. Devemos, portanto, ao infiel amigo de Kafka, e também escritor, termos acesso a sua obra monumental. Devemos a ele o ordenamento dos capítulos de O Processo assim como, entre tantos outros, conhecer o diário de Kafka – Antologia de Páginas Íntimas.
Kafka nasceu em 1883, ano que Karl Marx faleceu. O escritor tcheco foi bem contemporâneo do grande sociólogo alemão Max Weber (1864 – 1920). Respiraram portanto o ar envenenado da chamada 1ª Guerra Mundial (1914 – 1918) numa mesma região geográfica em época em que forte industrialização aumentava substantivamente, dando visibilidade, ao fenômeno burocratização. A questão da burocracia é central em ambos os autores – no literato e no sociólogo.
Kafka, que ganhou o pão de cada dia como empregado de uma seguradora especializada em acidentes de trabalho, esteve entre os primeiros pensadores a deixar pistas críticas sobre os efeitos desastrosos do processo de burocratização, tanto sobre o indivíduo quanto sobre a organização social, pelo seu caráter alienante e abstrato. Críticas facilmente identificáveis, entre outros, em O Processo, O Castelo e A Muralha da China. No último romance citado, o autor utiliza metáfora semelhante a Montesquieu em Cartas Persas (1721), ou seja: vale-se do Oriente para criticar o Ocidente. No romance, a burocracia é responsável pela construção de uma muralha em diferentes espaços físicos da China, entretanto as diversas partes levantadas constituem-se em um quebra-cabeça, nunca conseguindo se encontrar, apesar de cada etapa e passo da construção, envolvendo o trabalho de milhares de pessoas, ser minuciosamente planejado. Inversamente a Kafka, Max Weber destaca a burocracia como instrumento de racionalização da produção, que tenderia a crescer acompanhando a prosperidade industrial, organizando-a. Mas Weber parece tangenciar questões implícitas em Kafka, ao considerar sobre o que poderia ser o produto “final” da administração racional (burocrática): “neste último estágio de desenvolvimento cultural , seus integrantes poderão de fato ser chamados de especialistas sem espírito, sensualistas sem coração; nulidades que imaginam ter atingido um nível de civilização nunca antes alcançado”.
A Antologia de Páginas Íntimas é um texto de inestimável valor humano produto da pena hábil de um homem dotado de extraordinária sensibilidade, imaginação, capacidade crítica e que se preparava no dia-a-dia, com afinco, para vivenciar a única coisa que realmente o interessava: exercer o ofício de escritor. E como às vezes é a vida que imita a arte, Kafka, da mesma forma que Alceste, personagem do Misantropo (1666) de Molière, refugiou-se no mundo das letras. O segundo em protesto contra as bazofias dos salões fidalgos, o primeiro – provavelmente - para tentar ver se entendia de alguma maneira o que estava fora e dentro dele. Parece que não conseguia ter certeza, como Antoine Rouquentin, de A Náusea (1938) de Jean Paul Sartre, se era ele que estava dentro da náusea ou se era a náusea que estava dentro dele.
Estou longe de pensar, como costumam fazer a maior parte dos comentadores de Kafka, que ele era soturno, insociável, esquizóide, em suma: quase um mero objeto psicanalítico. Depoimentos de contemporâneos de Kafka referem-se a ele como alguém que gostava de remar, que comparecia com regularidade a encontros literários e que publicou vários livros. Em seu diário ficamos sabendo que ele fazia palestras e sonhava viver da literatura. Kafka simpatizava com os anarquistas e sua obra é inteiramente perpassada pela crítica as instituições políticas e sociais, vistas no prisma de seus desastrados efeitos sobre a psique dos indivíduos. Considero que algumas das contradições estruturais que fazem de Kafka um kafkiano, ou seja: autor de textos tensos e complexos que se movem em torno da contradição entre uma natureza humana pensada como explosão de liberdade e a sociedade que coloca grilhões nela, está bem configurada em um trecho de seu diário, em anotação feita em 21 de agosto de 1913: “O meu emprego é insuportável porque contradiz o meu único desejo e a minha única vocação , a literatura. Como sou apenas literatura e como não quero nem posso ser outra coisa, o meu emprego não poderá nunca seduzir-me, só poderá pelo contrário destruir-me totalmente”.

Aluízio Alves Filho Revista Achegas
* Antologia de páginas íntimas foi publicado no Brasil sob o título de Diários

domingo, setembro 10, 2006

A morte feliz

A morte feliz
Albert Camus

Tradução de Valerie Rumjanek
Editora Record

O mais sombrio — e belo! — dos livros de Camus, na minha opinião, A morte feliz me seduziu desde a primeira página, e me marcou profundamente. Talvez minha empatia com o texto de Camus se devesse ao momento confuso no qual me encontrava, exilado de certa forma, tentando descobrir que direção dar a minha existência, mas tendo que dividir com outrem as rédeas desse "transporte" denominado vida — um equívoco que jamais voltarei a cometer. A leitura do livro também foi feita, alternadamente, por dois olhares distintos, o que talvez tenha contribuído para torná-lo ainda mais interessante — ler e comentar /questionar/especular ao fim de cada capítulo: um "exercício" e tanto! Foi o último livro de Camus que li — e me pareceu tão definitivo que não tive ânimo para ler os dois livros do autor que acabei adquirindo algum tempo depois. Preciso me livrar dessa sensação de finitude e me dedicar a O Homem Revoltado e também a Núpcias e O Verão. Os demais livros de Camus já conheço e recomendo. Na revolta latente do homem, na preocupação com a justiça e na busca incessante da liberdade, Albert Camus (1913-1960) encontrava as justificativas para sua vida e obra. Transformou em tema constante o absurdo da condição humana, sempre levado às mais extremas e delicadas situações. E trazia consigo uma idéia tão simples quanto marcante: "A arte e a revolta só morrerão com o último homem". A morte feliz, publicado postumamente, é um livro típico de Albert Camus, escritor profundo, formado em Filosofia. A morte como temática é encontrada também em outros livros de sua autoria, tanto quanto é o cenário deste romance sua terra natal. A época é a década de 30, e a história se desenrola principalmente na Argélia. No enredo de A morte feliz, o protagonista é Patrice Mersault, obscuro empregado subalterno, que por intermédio de Marthe, jovem com quem está vivendo um caso amoroso, conhece seu ex-amante, Roland Zagreus, homem fino, instruído e de posses, porém inválido. Mersault alimenta antigos sonhos de independência financeira, único meio que vê para livrar-se da vida medíocre que leva, e não perde a oportunidade quando ela se apresenta: mata Zagreus para roubá-lo, ato que marca profundamente o personagem. Cometido o crime, Mersault torna-se o que sempre almejara ser, independente, dono de seu tempo, e com o dinheiro do roubo empreende uma viagem a Praga. A estada em Praga (na segunda parte do livro), compreende um período curto do enredo, que prossegue com a volta de Mersault à Argélia em busca do sol a que estava acostumado e que não pôde encontrar igual na Europa. Passa, nessa época, por duas experiências opostas: vive na Casa Diante do Mundo, em comunidade com suas amigas Catherine, Rose e Claire; e posteriormente, tendo desposado outra jovem, Lucienne, dedica-se a uma existência de total solidão. E compreende então que temer a morte significava ter medo da vida, e que, de todos os que tinha dentro de si, escolhera realmente aquele que criara seu destino, decisão tomada consciente e corajosamente. Albert Camus nasceu na Argélia (na época uma colônia francesa), em Mondovi, às vésperas da Primeira Guerra Mundial, que vitimaria seu pai, um ex-operário. Isso obrigou a família a mudar-se para Argel, a capital, onde viveriam em extrema penúria com a pensão de guerra fornecida pelo governo. Mesmo assim, Camus conseguiu concluir o curso secundário e bacharelar-se em letras graças a uma bolsa de estudos, presente de um antigo professor. Vítima de tuberculose, casado e já divorciado aos vinte e um anos, trabalhou como escriturário, funcionário público e vendedor de peças de automóvel, e teve, nesse meio tempo, passageira ligação com o Partido Comunista, antes de interessar-se por teatro e partir para a carreira jornalística. Sua primeira obra, O Avesso e o Direito (L'envers et l'endroit), foi publicada em 1937, um ano antes de ingressar no jornal Algérie Républicaine, de onde sairia após ser convidado a deixar o país por suas constantes críticas à censura. Estabelecido na França como secretário de redação no Paris Soir, começou a escrever O Estrangeiro, lançado em 1942, juntamente com O mito de Sísifo e a edição clandestina de Cartas a um amigo alemão. Já em plena Segunda Guerra Mundial, entra para o jornal Combat de resistência aos nazistas, e monta duas peças teatrais, a primeira, " Le Malentendu", em 1944, com pouco sucesso, compensado pela magnífica repercussão de Calígula, no ano seguinte. Considerado o "profeta do absurdo", Camus salientava a importância de estudar profundamente as coisas absurdas da vida para poder combatê-las. Seja em A peste (1947) ou em O Homem Revoltado (1951), quando rompeu definitivamente com o existencialismo de seu ex-amigo Sartre, seja como cronista ou dramaturgo, Camus jamais abandonaria seus anseios de justiça e revolta, sempre em favor da vida, nunca contra ela. Premiado em 1957 com o Nobel de literatura, famoso e respeitado em todo o mundo, o escritor argelino cruzaria ainda uma vez com as agruras do destino, que certa vez profetizara: "Morreremos todos de morte violenta neste mundo de doidos..." Em janeiro de 1960, na estrada que liga a cidade de Sens a Paris, uma derrapagem causa violento acidente. No automóvel, três sobreviventes e uma vítima fatal: Albert Camus, quarenta e sete anos incompletos.

Wagner Campelo

Beryl Cook

sexta-feira, setembro 08, 2006

Os três mosqueteiros

Os três mosqueteiros
Alexandre Dumas

Ed Larousse do Brasil

Os franceses são um povo meio complicado. Depositária de uma herança que ajudou a moldar a mentalidade, o pensamento, a cultura do planeta, principalmente do seu lado ocidental, a França sempre foi um viveiro de pensadores, cientistas e artistas das mais variadas espécies: pintores, músicos, escritores, cineastas, etc. Criadora de movimentos culturais e políticos com repercussões mundiais e permanentes. Além de abrigar manifestações do mundo inteiro: a França foi a segunda pátria para jazzistas norte-americanos que fugiam do racismo em sua terra natal e recebiam, muitos pela primeira vez, respeito, admiração e espaço para trabalhar e criar; os franceses foram os primeiros também a reconhecer Hitchock como um verdadeiro artista, acolheram os filmes noir de Hollywood e, ao mesmo tempo, montaram seu reverso, a Nouvelle Vague. Enfim, essa lista poderia se estender ad infinitum.
Por outro lado, é a mesma França que concede a Legião de Honra para um Paulo Coelho e sua "inestimável contribuição para a humanidade". Bom, isso em si não seria um verdadeiro crime (já que Paulo Coelho "enfeitiçou" o planeta inteiro), não fosse um pequeno fato ocorrido no final de 2002: Em novembro desse ano, os restos mortais de Alexandre Dumas começaram a ser transferidos de Villers-Cotterêts para o Panteão em Paris. O fato pode ser pequeno, mas seu significado é tremendo.
Para se ter uma idéia apropriada, é preciso saber que o Panteão abriga ídolos franceses centenários, personalidades que carregam o próprio significado de sua identidade nacional, pessoas como Voltaire e Vitor Hugo. Ser depositado ali quer dizer que Dumas foi colocado no mesmo nível desses outros gigantes. Como disse Gilles Lapouge na ocasião: "O que espanta não é o fato de Alexandre ser admitido no Panteão. O que precisamos dizer é exatamente o contrário: por que o Panteão demorou tanto tempo para acolher as cinzas desse gigante da literatura francesa e mundial?". Lapouge também dá a resposta que, infelizmente, é muito simples: Dumas sempre foi considerado, pelos franceses, "como um autor de segunda categoria". O escritor francês mais traduzido no mundo inteiro, cujas obras alcançaram a imaginação e a vivência de gerações inteiras, que ajudou a espalhar e generalizar símbolos da história, da sociedade e da força tipicamente francesas e que era admirado e respeitado por escritores do quilate de um Vitor Hugo e Honoré Balzac, demorou mais de cento e trinta anos depois de sua morte para ser considerado um escritor sério e competente com direito a ficar do lado de autores clássicos!
Depois de um Paulo Coelho receber a tal Legião de Honra e tal, foi um francês quem disse que o Brasil não era um país sério.
A literatura de Alexandre Dumas caracteriza-se justamente por uma agilidade narrativa impressionante, com altas cargas de emoção, suspense e ação. Ele não se envergonhava de ser melodramático, sentimental, exagerado. Sua maior qualidade eram os diálogos: rápidos, cortantes, inteligentes, incisivos. Além de serem agradabilíssimos de ser lidos, constituem elementos fundamentais para a trama e por meio deles o enredo é alavancado. Nisso, Dumas continua sendo um mestre indiscutível até hoje. Além do que, o carisma, a empatia e a densidade com que conseguia envolver seus personagens, transforma-os em verdadeiras personalidades que marcam indelevelmente nossa mente.
São romances de aventuras, de intrigas palacianas, de heróis destemidos e de vilões malignos que fazem ferver a imaginação e, acima de tudo (pecado dos pecados!), são divertidos!! Dumas foi desprezado e desdenhado pela intelectualidade porque possuía uma característica que o incapacitava: era popular! Como tal escritor poderia ser considerado "sério"?
A própria vida de Dumas daria um enredo perfeito para algum de seus romances (e certamente passou muita coisa de sua experiência própria para os livros). Começou sua carreira como dramaturgo, já com muito sucesso. Escreveu por volta de quinze peças (pelo menos uma das quais, "La Tour de Nesle", considerada como uma obra-prima do melodrama francês), mas foi quando se voltou para o romance que ele realmente "estourou". Ficou famoso e idolatrado, ganhou rios de dinheiro e gastou-os na mesma proporção, com festas, mulheres, viagens, palácios e, portanto, estava sempre envolvido em luxo e dívidas, caçado pelos credores. Possuidor de um ritmo frenético de trabalho, escreveu milhares de páginas. Quando morreu, deixou por volta de duzentas e cinquenta obras. Escrevia tanto e tão rápido que durante um certo tempo pairou a suspeita de que ele, na verdade, pagava uma equipe de secretários para isso e ele só assinava. Intrigas da Academia.
Athos, Porthos, Aramis, capitaneados pelo cativante d'Artagnan, e o seu brado de guerra e declaração de amizade infinita, o "Um por todos e todos por um", são conhecidos até mesmo por quem nunca chegou sequer perto do livro. D'Artagnan, o jovem ansioso por aventuras e honrarias, recém-chegado a Paris com alguns trocados na bolsa e cujo maior sonho é se tornar mosqueteiro, é o verdadeiro líder da turma; Athos é o nobre de alma pura que carrega um terrível segredo escondido; Aramis é o galanteador, gosta de armar e participar de intrigas e, ao mesmo tempo sonha em se tornar padre; e Porthos é o Hércules: forte, íntegro, ingênuo e burro. Os quatro colocam a França de pernas para o ar: se envolvem em uma luta contra a personalidade mais poderosa da época, o Cardeal Richelieu, auxiliam a Rainha em apuros, enfrentam a bela e maligna Milady, a vilã - protótipo de todas as "femmes fatalles" que se seguiram... Tudo isso recheado com um humor escrachado, repleto de frases de efeitos, tiradas memoráveis, cenas inesquecíveis.
O que nem todo mundo sabe é que os quatro realmente existiram. Dumas "chupou" os personagens de um libretinho assinado pelo d'Artagnan, pretensamente escrito pelo próprio. Dumas se apropriou dos caracteres e da trama em geral, enxertou uma certa ambientação histórica, sem tanta preocupação com a veracidade científica, e moldou-os a sua própria vontade (aliás, tal como fazia um outro autor, inglês, um autêntico plagiador que também cometeu o tal pecado de ser popular, fazer sucesso e ser profundo, chamado Shakespeare).

"Os três mosqueteiros" foi o ápice absoluto da carreira de Dumas, apesar de várias outras obras de bastante repercussão como "O Conde de Monte-Cristo", "A Tulipa Negra" ou "A Rainha Margot". Ele continuou a história dos heróis por bastante tempo, em "Vinte Anos Depois" e foi até a morte de cada um, em "O Visconde de Bragelonne", onde inclusive está inserida uma outra aventura famosa, "O Máscara de Ferro".
Esqueça os filmes que porventura você tenha assistido; deixe de lado as histórias em quadrinhos, os desenhos de animação, as adaptações infantis. Se ainda não leu "Os Três Mosqueteiros", está perdendo tempo e marcando passo em sua vida.

Claudinei Vieira Desconcertos

quarta-feira, setembro 06, 2006

Sede de Amor


De Yukio Mishima (1925-1970)
(Pseudonyme de Kimitake Hiraoka)



Este livro de Mishima com título que lembra os romances Sabrina concentra-se na personagem da jovem Etsuko. Fria, ela assiste com certo prazer à morte do marido, Ryosuke, que, ela imagina, a enganava e a tratava com a mais dolorosa indiferença. Viúva, passa a viver na casa do sogro, Yakichi, e torna-se sua amante. Na mesma casa, no campo, vivem os cunhados, cunhadas de Etsuko e as crianças.

Etsuko, uma aristocrata, apaixona-se por um dos empregados da casa do sogro-amante, o jovem, belo e vazio Saburo. Guiada pela paixão, pelo egoísmo e pelo ciúme, Etsuko manipula o sogro e o próprio Saburo que mal percebe o que acontece ao seu redor e muito menos os sentimentos que inspira. Na sua simplicidade de homem do campo o rapaz é mais dado às sensações que aos sentimentos, ele e Miyo, também empregada da casa, fazem amor quando sentem vontade de fazer amor, sem refletir sobre o sentimento em si, sem nada que os una além da atração física. Miyo fica grávida de Saburo e é nesse ponto que a narrativa corre e todas as facetas de Etsuko são claramente mostradas. Saburo é indiferente a tudo, inclusive à paternidade e deixa que os outros decidam por ele a atitude a tomar com relação a Miyo. Etsuko, por seu lado, não pode perdoar a Saburo o fato de amá-lo e não ser correspondida (se é realmente amor o sentimento que ela nutre), o fato de sofrer por ele, quer que ele pague o preço da sua confusão. Ele paga, sempre sem compreender o que está acontecendo.

Mishima nasceu em Tóquio, em 1925, é mais conhecido no ocidente pela morte espetacular do que pela obra em si. Em 1970 suicidou-se segundo o ritual do
Seppuku[1] , o suicídio foi minuciosamente preparado, segundo alguns biógrafos esta preparação levou um ano e Mishima organizou toda a sua vida antes de partir desta forma dramática. Ao final do ritual ele teve a cabeça decepada, como mandava o figurino. Masakatsu Morita, aparentemente amante de Mishima, tinha sido designado para esta tarefa mas não foi capaz de executá-la. Koga terminou o trabalho e Masakatsu, por sua vez, matou-se também de acordo com o ritual.

Mishima escreveu 40 novelas, uma vintena de peças de teatro, mais de vinte livros de conto e vários ensaios. Foi três vezes candidato ao prêmio Nobel e é o escritor japonês mais conhecido no Ocidente. Numa de suas viagens pelo mundo esteve no Brasil, visitou um amigo na cidade de Lins e viu o carnaval do Rio de Janeiro que muito o impressionou.
Notas:
[1]Outro termo usado é Hara-kiri, não é muito comum em japonês por ser considerado grosseiro e vulgar.

Há também um ritual de suicídio para as mulheres, o Jigai, é bastante diferente do Seppuku, não necessita de assistência e consiste no corte da jugular. Antes de se matar a mulher deve amarrar as pernas uma na outra para ser encontrada numa posição ‘digna’. Este suicídio era muitas vezes usado para preservar a honra, evitar estupro depois da perda de uma batalha, por exemplo


Mishima no dia do suicídio
Leila Silva - Cadernos da Bélgica

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segunda-feira, setembro 04, 2006

O feitiço da ilha do Pavão

O feitiço da ilha do Pavão
João Ubaldo Ribeiro


Editora Nova Fronteira


“De noite, se os ventos invernais estão açulando as ondas, as estrelas se extinguem, a Lua deixa de existir e o horizonte se encafua para sempre no ventre do negrume, as escarpas da ilha do Pavão por vezes assomam à proa das embarcações como uma aparição formidável, da qual não se conhece navegante que não haja fugido dela, passando a abrigar a mais acovardada das memórias. Logo que deparadas, essas falésias abrem redemoinhos por seus entrefolhos, a que nada é capaz de resistir. Mas, antes, lá do alto, um pavão colossal acende sua cauda em cores indizíveis e acredita-se que é imperioso sair dali enquanto ela chameja, porque depois de ela se apagar e transformar-se num ponto negro tão espesso que nem mesmo em torno se vê coisa alguma, já não haverá como.”

Quando li “Sargento Getúlio” já gostei, “Já podeis da pátria filhos” também. Uns anos depois li o “Sorriso do lagarto”. Gostei mais ainda. “O feitiço da ilha do pavão” me deixou apaixonada, mas “A casa dos budas ditosos” não me agradou. Achei pobre demais. O do farol então nem se fala. Detestei.
Mas por esses acasos da vida descobri aqui o “Vencecavalo e outro povo” Não havia lido. E`um livro divertido, leve e irônico. Tive uma recaída em J Ubaldo e resolvi começar a reler. O primeiro foi a “ O feitiço da ilha do pavão”. Que maravilha!
João Ubaldo Ribeiro diz que escreveu o Feitiço da ilha do Pavão pensando fazer um livro engraçado. Conseguiu. É um livro que se lê rindo. Nele o escritor usa e abusa da ironia, cria um universo de tipos característicos, quase arquétipos, de uma sociedade ilhoa, ainda sob o domínio da coroa portuguesa, onde mesclam-se índios, negros e portugueses castiços em uma comédia de costumes de rara felicidade. Mas o que mais me impressionou, fazendo com que parasse várias vezes a leitura para voltar a página e reler é a maravilha do vocabulário do autor. João Ubaldo Ribeiro usa a língua portuguesa com uma intimidade e maestria única. Palavras inesperadas, uma infinidade de neologismos preciosos, uma força de expressão que raramente se encontra por aí. O autor desliza pelos personagens, vai de um ao outro usando as palavras quase como se dançasse e tudo isso enriquecido por um magistral uso da sintaxe. O narrador nos leva pela mão, e , interessantíssimo, ele altera seu vocabulário conforme o núcleo da historia do momento. Ou seja, o narrador adapta-se ao linguajar do personagem. Isso dá agilidade e ritmo ímpar na história.

“Não se deve rir da desgraça alheia, nem fazer pouco dos desventurados, até porque aquilo que a um vitima sói muitas vezes sobrevir a outro, não raro piormente. Sabe toda a consciência cristã que bem pouco caridosa é a ausência de compaixão e carece de desculpas aquele que vê motivo de mofa no sofrimento do próximo. São tantas as penas inventariadas nos infernos, obrigatoriamente pagas por pecados e más ações deste defeito derivados, que livros com mais de cem vezes as páginas deste cá, o qual tão desutilmente vos ocupa, não seriam bastantes para conter-lhes os resumos.... O mundo é perfeito, já diziam os antigos, e com eles nos vemos obrigados a concordar, eis que, se tudo se passasse como quer cada um de nós, não duraria esse mesmo mundo mais do que três peidos de mula, louvado seja Deus, para sempre seja louvado.”

Tem de tudo. Tem quilombo, tem ex pirata convertido, tem a Santa Inquisição, tem feiticeira, tem político safado, militar cabotino, índio esperto, enfim um caldeirão de personagens todos fascinantes. Para quem não leu é uma ótima pedida. Que seja, no mínimo, para enriquecer o vocabulário.
Vale a pena.

Vera do Val Rose Rose Rosebud

sábado, setembro 02, 2006

As Metamorfoses do Jeca Tatu

As Metamorfoses do Jeca Tatu - a questão da identidade nacional do Brasileiro em Monteiro Lobato.
Aluizio Alves Filho

Ed. Inverta, Rio de Janeiro, 2003


O livro “As Metamorfoses do Jeca Tatu – a questão da identidade nacional em Monteiro Lobato”, destaca-se pelas originais interpretações que contém. Na orelha, Gisálio Cerqueira Filho, caracteriza que em tempos de tantos questionamentos acerca da nacionalidade, em tempos de desmonte da nação, o autor ousa labutar nestas terras tão pouco cultivadas na contemporaneidade.
A busca incessante pela gênese e transformações do personagem “Jeca Tatu”, criado por Monteiro Lobato, exigiram muita perícia por parte de Alves Filho. A leitura do livro permite compreender que houve pesquisa esmerada e em diversos tipos de fontes, o que acabou permitindo ao autor revelar dados até então desconhecidos, mesmo pelos mais sagazes estudiosos lobatianos.
A última frase do livro delimita com precisão o esforço do autor: “estudar a obra de Monteiro Lobato é como abrir uma janela para o infinito”. É neste sentido, que um dos elementos produzidos pelas “Metamorfoses do Jeca Tatu” implicou em lançar um foco de luz em áreas um tanto quanto nebulosas no entendimento da obra do escritor taubateano.
São muitos os aspectos positivos e inovadores do livro que podem ser destacados, como por exemplo, a interessante relação entre Nietzsche e Lobato, presenteada ao leitor em forma de anexo da publicação. Também é prenhe de originalidade a análise empreendida na busca pelas origens dos nomes dados a alguns personagens de Lobato, como Emília, Chico Pirambóia e o próprio Jeca Tatu. Prenhe de originalidade ainda é a maneira como o autor indica as metamorfoses sofridas pelo “personagem”, não apenas na obra lobatiana, mas fora dela, como identidade nacional. Contudo, o que mais importa destacar na presente resenha, é uma descoberta feita por Alves Filho que permite retificar, mostrando a falsidade, de uma versão encontrável em incontáveis livros sobre história da literatura e sobre Lobato. A versão de que ele se tornou escritor ao sabor de uma circunstância casual, a de ter sido convidado a assinar uma coluna no Estado de São Paulo, em 1914, após o envio de uma simples carta de leitor para a redação do jornal. Essa descoberta do autor das “Metamorfoses do Jeca Tatu”, ainda não ganhou a devida amplitude entre aqueles que voltam as suas atenções para o estudo da literatura, do pensamento social brasileiro e mormente da obra de Monteiro Lobato. Vejamos como, concretamente, as coisas ocorreram, e o autor do livro resenhado, pela via da pesquisa, deu uma nova dimensão de entendimento a elas.
Monteiro Lobato, como é bem sabido, estreou como autor literário em 1918, com um livro de contos intitulado “Urupês”. O livro esgotou os mil exemplares da 1ª edição em dias. Lobato escreveu um rápido prefácio para a segunda edição, saída pouco depois do sucesso retumbante da primeira. Neste, construiu a versão de que ele, em 1914, era apenas um “humilde lavrador incrustado na Serra da Mantiqueira” que revoltado com caboclos que teriam provocado uma queimada em sua propriedade rural, em Taubaté, ocasionando grandes prejuízos em sua lavoura cafeeira, escreveu uma carta de leitor para o Estadão, apenas para lavrar o seu protesto e mostrar a impossibilidade de fazer alguma coisa para ser ressarcido por “jecas”.
No citado prefácio, para explicar o seu súbito e triunfal ingresso no mundo das letras, tendo em vista o rápido esgotamento da 1ª edição de “Urupês”, constrói a versão que vem sendo repetida inúmeras vezes e de forma acrítica por comentadores da sua obra, ou seja: que sendo um “humilde lavrador” nunca lhe passara pela cabeça ser escritor, produzir algum livro e que só o fizera incentivado pelo sucesso que a carta obtivera, uma vez que foi publicada como matéria em o Estadão e ele convidado a assinar coluna naquele jornal – a época, o de maior circulação no país.
Ao invés de simplesmente repetir a versão romanceada construída pelo próprio Lobato como tantos tem feito, Alves Filho foi à luta para examinar a questão. Entre os elementos que despertaram inicialmente suas dúvidas em relação à propalada versão estava a grande extensão (cerca de 10 páginas) da tal “missiva”. Será que o Estadão publicava cartas de tal tamanho em suas páginas na década de 10 do século passado? Para matar a charada foi à Biblioteca Nacional, onde ao levantar as respectivas edições do jornal “O Estadão” no ano de 1914 se deparou com um fato concreto: o jornal não publicava cartas de leitores, que dirá daquele tamanho. O que vez ou outra publicava eram reclamações que, entretanto, não ocupavam mais de 2 linhas. Reclamações do tipo: “Fulalo de tal, assinante do jornal e morador a rua tal, reclama que o lixo não está sendo recolhido”. Somadas às considerações expostas, encontra-se ainda o fato de que Monteiro Lobato, dentre outras incursões na imprensa – inclusive como caricaturista da revista “Fon-Fon” – ao escrever a “tal carta” já era colaborador remunerado do “Estadão”, desde o ano de 1909.
Acrescente-se ainda que ao peneirar a correspondência de Monteiro Lobato com Godofredo Rangel (cartas que compões os dois tomos de “A Braça de Gleyre), Alves Filho destaca que em sua versão pública, Lobato costumava se referir à “Velha Praga”, como uma “carta” enviada a seção de reclamações do Estadão; contudo, ao amigo confidente, observou a respeito: “publiquei a semana passada um artigo no Estado”.
Com a leitura do livro “As Metamorfoses do Jeca Tatu” muito aprendi, tendo me aberto uma “janela para o infinito”, como pode ser entendido o pensamento de Lobato, conforme a citada metáfora utilizada pelo autor.
Márcio Malta ( Nico)
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