terça-feira, janeiro 15, 2008

A catedral de Fernando Pessoa


Hoje, dia 15 de janeiro, Tabacaria faz 80 anos de criação. Há quem considere Fernando Pessoa o maior poeta do século 20 e Tabacaria seu maior poema. Logo, Tabacaria seria o maior poema do século 20. Pode ser e pouca diferença faz. O título - e quem o atribua - precisa mais do poema do que o poema do título. A mim encanta ter descoberto depois de tantos anos que o poema, escrito às vésperas de Pessoa completar 40 anos, é também um 'balanço da vida' típico de alguém que chega à meia-idade.

Falhei em tudo.
(...)
Vivi, estudei, amei, e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
(...)
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)

A grandeza do poema reside exatamente na maestria de Pessoa em entrelaçar o cósmico, o singular e o mundano ao longo de todo poema, passando de um plano para o outro em cortes, ao mesmo tempo, bruscos e precisos, de efeito devastador.
Esse "projeto estético-filosófico", digamos assim, se define logo na primeira estrofe do poema:

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
A parte isso tenho em mim todos os sonhos do mundo.


"Não sou nada/ Nunca serei nada" é uma constatação de ordem cósmica. No entanto, "Não posso querer ser nada" expõe uma enigmática interdição que repentinamente atira o poeta das alturas cósmicas às profundezas mais íntimas do plano individual: por que Fernando Pessoa/ Álvaro de Campos está proibido de querer ser algo? No verso seguinte, nova surpresa: o poeta emerge ao plano intermediário e mundano: "A parte isso tenho em mim todos os sonhos do mundo", numa espécie de frágil reconciliação.
É como se uma operação alquímica se realizasse: a interdição de ser - que faz com o que o poeta não ceda à ilusão mundana de "querer ser" e se identifique com a insignificância de todas as coisas em face do Infinito - abre o espaço necessário para abrigar em seu interior "todos os sonhos do mundo", o que identifica o poeta com a humanidade inteira. Por isso, ele pode dizer:

Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Porque realizou o sacrifício de si para ser todos os homens. E também:
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.

Porque ousou ir além de pensar o que para Kant seria impensável: os conceitos de Deus, alma e mundo. Mas isso não se dá sem dor: o aniquilamento tem um preço alto.

Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda

A tensão entre alma (consciência de mim), Deus (consciência cósmica) e mundo (consciência da humanidade em mim) é dolorosa e aparentemente insolúvel, ao menos no plano mundano:

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

O entrelaçamento desses planos seguirá assim, monumental, patético e terrível, até o final quando, depois dessa espécie de “iluminação precária”, o universo retomará sua aparência habitual "sem ideal nem esperança".
Enfim, se Joyce teve um dia inteiro, 16 de junho de 1904, e uma cidade inteira, Dublin, para construir sua catedral, a Fernando Pessoa bastou apenas a tarde de 15 de janeiro de 1928 e o exíguo espaço de um quarto entre a mesa e a janela para erguer a sua.

Antonio Caetano Café impresso

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domingo, janeiro 06, 2008

Fun Home
Uma Tragicomédia em Família

Alison Bechdel
Editora: Conrad
Fun Home foi lançada no Brasil no final de 2007, pela Conrad, eu tinha lido em algum lugar que seria em 2008. Será que adiantaram? Pode ser, a HQ já estava a toda nos Estados Unidos, onde foi lançada em 2006, e também na Europa. Trata-se da biografia de Alison Bechdel, uma moça corajosa e honesta, pelo menos é isso que ela passa através da história, a sua história e a do seu pai, principalmente. A mãe também está bastante presente, mas a prioridade é dada à figura do pai, um homossexual que nunca teve coragem de sair do armário, que mantinha relações com o baby-sitter dos filhos ou seus próprios alunos. Alison conta tudo, é a impressão que temos. A história não é linear, num momento ela trata da infância, no quadrinho seguinte já está na universidade lendo uma carta do pai com quem a autora tinha muitas afinidades intelectuais. Ela e o pai são leitores compulsivos, a história está repleta de referências literárias: Proust, Wilde, Joyce, Colette e uma longa lista. Referências são sempre um risco, pode resvalar certo pedantismo. Não é o caso aqui, são bem colocadas, são irônicas e verdadeiras e todo mundo que gosta de literatura se diverte encontrando ali os autores, citações, capas de livros.
O título é também bastante interessante, o FUN remete primeiramente à idéia de uma casa divertida, mas é também uma alusão à casa funerária que era propriedade de sua família e que eles costumavam chamar de Fun Home. Quem já viu a série Six feet under, não vai deixar de perceber uma relação. Sobretudo que Alison é gay, assim como um dos personagens de Six feet under. Ela, ao contrário do pai, sai logo do armário, antes de ter a sua primeira relação já foi abrindo o jogo com a família e colegas de universidade.
Alison Bechdel nasceu em 1960, na Pensilvânia, é também autora de Dykes To Watch Out For, já recebeu um prêmio Eisner.Não é pouco.

Aqui você pode ler uma parte da história.

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