O Refúgio do Príncipe - Histórias Sopradas pelo Vento Despertem, mestres da universidade, estudiosos, críticos, periodistas, senhoras e senhores. A crônica brasileira não acabou no grande Rubem Braga. Isto, sabiam? A crônica, como todas as formas de vida, resiste, e mais que resiste, ela vem servida em prato sujo, em prato limpo, em prato quebrado, em prato nunca visto, em todos os pratos das mais diversas cores imagináveis e inimagináveis. Pero não só. A crônica brasileira está viva e com um acento e gosto poético a quem o próprio Rubem Braga pediria a bênção. Pensam que exageramos? Se assim pensam, mas ao mesmo tempo nos concedem o generoso benefício da dúvida, leiam por favor estas linhas:
“É de trem que eu preciso para chegar ao tempo que me absolve... E talvez o trem atrase outra vez, já que ele não existe mais, mas teima em ficar parado algum tempo embaixo da Lua cheia, enquanto ficamos aflitos à espera do reinício do impulso que nos carrega. Nunca vamos aprender que andar é o caminho e que os destinos, no começo ou no final da jornada, são mais precários do que qualquer sonho despertado no meio da noite, quando vemos o teto do vagão sumir para que possamos ver as estrelas. Isso tem me acontecido ultimamente. Deito e olho para cima, e vejo novamente o céu que deixei há poucos instantes. Com todas as estrelas e fiapos de nuvens, o que torna a visão ainda mais verossímil. É como acampar sem barraca, contar estrelas cadentes, seguir o risco de satélites que usam as constelações como parada. No fundo da madrugada, o trem pára novamente. Olhamos pela janela, que também dorme. Uma luz cercada pelo fogo fátuo das mariposas nos diz que ali é um ponto conhecido, por onde passaremos mais uma vez em direção ao que não nos consola. Crianças se agitam, senhores do povo conversam baixo sobre pescarias e negócios. Há um cheiro de cabelos engomados, de chapéu de feltro, de xales de lã. Onde estou? me pergunto.
Estou no meio do meu ofício, que é tentar entender a passagem obscura pela terra envolta em mistério. Estou só, como a criança que adormece no crepúsculo, e acordo na boca da escuridão com um solavanco. Ela vê o homem fardado passar com seu boné de autoridade máxima da viagem. O homem recolhia passagens, quando todos se aboletaram pelos bancos. Agora ele vigia o sono de quem escolheu esse momento para percorrer a trilha insana de uma vida. A criança fecha novamente os olhos, e o embalo da serpente emplumada o leva para longe. Para lá, onde a poesia dorme e as palavras soltas como um rebanho pastam no esplendor de uma revelação. Nada nos salvará desse enigma. Por isso agradecemos a Deus quando o dia firma e alguém oferece um café recém-feito, uma bolacha dormida ou um jornal comprado na corrida numa parada qualquer. Entre um gole e a mordida do trigo providencial, vemos estampada na primeira página nosso rosto adulto, a nos olhar com ar sagrado da santidade. Para esse rosto rumamos, carregando a infância como um talismã. Ela está dentro de uma pequena caixa, que guardamos no sobretudo. Da tampa aberta, salta a bailarina, ao som de uma valsa tocada por cristais e acompanhada pelo brilho de diamantes de um filme que vimos no cinema lotado, quando havia cinema e quando éramos a alegria da criação em desencanto”.
Saibam que as linhas acima não pertencem a qualquer autor morto, esse magnífico que sempre julgamos melhor quando não mais se encontra entre nós. Elas foram escritas por um autor vivo. Mais precisamente por Nei Duclós, que acaba de publicar o livro "O Refúgio do Príncipe - Histórias Sopradas pelo Vento". Por enquanto é difícil encontrar referências ao trabalho de Nei na chamada grande imprensa, a grande em números de circulação, devemos dizer. Mas pelo trecho que acabamos de citar, de uma crônica do livro, os leitores do mundo, a que chegamos pelas asas e alas de La Insígnia, bem podem ver o nível do autor que a imprensa de São Paulo-Rio, esse universo onde todos os fenômenos de valor acontecem, ainda não percebe. Dizemos isto agora, e neste exato instante somos atingidos por uma dúvida. Aliás, por três. Melhor dizendo, por muitas. Primeira: Como falar de um renovador da crônica ainda não reconhecido? Segunda: Seria melhor indicar caminhos, links, como se diz na web, para que o leitor por si mesmo tirasse as conclusões? Terceira: Seria melhor o caminho mais complicado, escrever como julgamos o trabalho de Nei Duclós, um texto cheio de forçados insights, e de tal maneira que os leitores dissessem ao fim, “está aí, este crítico não é um preguiçoso” ? Quarta: Como ressaltar o que percebemos, o que a chamada boa crítica não percebe, e, ao mesmo tempo, não recebermos o doce epíteto de louco? Quinta: Como explicar – quase dissemos demonstrar, mas recuamos – as razões desses ... deficientes visuais, que não vêem o que vemos? Sexta: E como com isto esclarecer que não temos visões particulares, particularíssimas, de um estranho entendimento? Sétima, e oitava, e nona... O leitor já vê que mais fácil é perguntar que responder. Tentaremos então um caminho alternativo, que na falta de melhor termo chamaremos de resposta.
Misturemos a segunda e terceira questão em uma só “resposta”. A quinta deixaremos para o fim.
Quando pegamos o livro, fomos anotando, escrevendo nas páginas do exemplar, à margem: “Ei, leitor, você aí, acorde: você pensa que a crônica brasileira parou em Rubem Braga? Ei, desperte, você precisa conhecer crônicas de Nei Duclós”. E com isto, na escrita rápida de uma anotação, que é sempre síntese e linguagem cifrada, desejávamos expressar em frases longas e com mais linhas: há no sentimento de admiração pelos grandes escritores do passado um culto, melhor, menos que um culto, uma espécie de mumificação, algo assim como um congelamento do tempo, como se tudo que houvesse antes fosse por natureza melhor e maior e insuperável, por força de ter ocorrido antes. Ora, expressar a nossa admiração por um grande não pode ser um pano a encobrir o que vemos todos os dias. Porque se um indivíduo não consegue ver nada de valor à sua volta, é melhor começar a pôr em dúvida o que ele diz admirar no passado. Pois que sensibilidade é esta que só se dirige para o que é consenso firmado? Tal sensibilidade mais se confunde com o sacudir de cabeças de lagartixas em concerto.
E aqui vem outra idéia a murmurar nos ouvidos: como a crônica é um gênero “menor”, porque confundem sempre tamanho com profundidade – e atenção, gostaríamos muito de um conceito preciso para o gênero -, tratou-se, na literatura brasileira, de adaptar a estatura dos mestres a esse gênero que não poderia ter o status das tragédias, dos romances. Assegurou-se então um lugar de Shakespeare Menor para o Sabiá escritor, mais conhecido pelo nome de Rubem Braga. Está claro? – Está não. Bem... Como explicar o “Chiquita bacana lá da Martinica”, que se veste numa casca de banana nanica, para um ilustre e encasacado compositor de ópera? Para nada dizer, digamos que a crônica brasileira é fruto de uma nova civilização, ou, se quiserem, que a crônica está para a literatura assim como o samba de Noel Rosa está para a música. Mas para que não caiamos, com essa conjugação feia, em um exclusivismo estúpido, é preciso ver que o gênero praticado no Brasil descende por todas as razões do “Pequenos poemas em prosa” de Baudelaire. Textos densos, prenhes de realização em breve espaço, poéticos a ponto de preencherem todos os sentidos de beleza. Esse gênero abriga ainda, em uma outra direção, o texto leve, passageiro, como se fosse uma audição de música de elevador, mas ainda assim agradável. É um gênero nascido e crescido nas folhas dos periódicos, ora com a urgência de fechar a página, ora sob encomenda, quando de um famoso. Está explicado? – Cremos que não, porque de repente, não mais que de repente, somos surpreendidos por linhas de um texto como na crônica Aquele cinema oculto:
“A arte da luz entra no buraco negro do tempo. Aos cinco anos, me levam para um lugar escuro, onde apareciam rostos gigantescos, que tomavam conta de uma parede. Fui informado antes: "vais te assustar!" Cumpri a advertência, e tiveram que me tirar no meio da sessão. Aconteceu no Cine-Theatro Carlos Gomes, que me ofereceu, na placa comemorativa, o primeiro desafio da linguagem: "a Carlos Gomes", dizia a homenagem. Como aquele bigode todo do maestro poderia ter um substantivo feminino na frente? A estranha preposição, que vestia a roupa da primeira letra do alfabeto, assim como os filmes que sumiram no espaço, permaneceram misteriosos por muito tempo....
Aquele cinema oculto é o Mundo Perdido. Usávamos calças curtas, cabelo escovinha, revólveres e cavalos de madeira. Falávamos uma língua intrincada, adaptada dos ruídos que ouvíamos nas falas dos filmes.
"Chamuchalei", por exemplo, era mãos-ao-alto. Não me perguntem por quê. Também o Mundo Perdido era difícil de entender”.
Para essa crônica, anotamos na margem, sempre a pensar em um leitor, chamado para estas linhas que escreveríamos e escrevemos agora: “Leia e conclua com a sua própria percepção, leia, por exemplo, Aquele cinema oculto, e passeie pelas descobertas, por algumas iluminações”, e quando anotamos isso, talvez pensássemos neste outro parágrafo de Aquele cinema oculto:
“Os filmes eram divididos em gêneros bem específicos. Existiam os filmes dos lenhadores canadenses, sempre de camisas quadriculadas - de flanela ou lã - não estou brincando. Havia uma série de filmes ingleses em preto e branco em que o Alec Guiness era o anti-herói permanente. Vi todos e só lembro o ator maravilhoso tropicando pelas ruas londrinas, mais nada. Nos faroestes, havia um gênero em que aparecia sempre o mesmo herói (interpretado por um jovem Jim Davis, o do sorriso maroto), que usava uma farda toda cheia de botão, dividido em duas histórias completamente diferentes uma da outra. Chamávamos esse gênero de ‘o abotoado dos dois filmes’. Para quem, como nós, não dispunha de nenhuma informação sobre o que víamos, adaptávamos a indústria do cinema ao nosso vasto mundo da cidade isolada do pampa. O pior é que até hoje nada sei sobre a maioria do que vi na época”.
E a vontade que nos deu foi de escrever na margem: “Olha, Nei Duclós, talvez a infância dos meninos em Água Fria fosse mais pobre. Nós dividíamos os filmes em filme de caubói e filme de amor. Com vantagem absoluta para os de caubói, porque os de amor não tinham ação – imagine só como aqueles meninos eram carentes. Por isso gostávamos muito daqueles filmes com Randolph Scott, cheios de tiros, lutas e de um inglês que entendíamos como Rale-rale-iú”. Mas isto não escrevemos, porque fomos para outra descoberta, quase à margem de O Refúgio do Príncipe.
A novidade, a surpresa, um quase milagre, digamos assim, foi descobrir que os textos publicados em livro, físico, portátil, que podemos conduzir para onde mandar o nosso desejo, são melhores que os publicados na web, mesmo quando são os mesmíssimos textos. Mesmíssimos? – Sim e não. Na aparência, sim, porque a crônica “É de trem que eu preciso”, por exemplo, é composta das mesmas palavras, parágrafos e pontuação que a publicada na internet . No entanto, a percepção, a leitura é outra, quando a vemos em papel, bem diagramada, assim, com letras pretas no branco da folha, entendem? É como se uma obra estética ganhasse um corpo físico, palpável, como se pudéssemos tocar na réstia do filme no escuro do cinema, e pudéssemos dizer, toquei no cinema, é de carne e osso. O ano passado em Mariembad é uma pessoa. Ou rodamos com Chaplin Luzes da Cidade, pegamos nos pães do balé que ele faz. E no entanto, mirem, no livro físico que conduzimos não há espaço para entrar em contato com o escritor, não há um retângulo onde possamos pôr um comentário e entrar em linha direta com o autor, na hora, on line, como dizemos. O que não é bem uma desvantagem, porque há um outro diálogo, aquele mais íntimo, que nos faz anotar, enquanto olhamos o rio Capibaribe no Recife pela janela do ônibus: como é que a beleza resiste? Isto quer dizer, a estética sai do virtual para a paisagem física por onde caminhamos. Ela se senta conosco à mesa, bebe café, vinho, cerveja, como se fosse uma companhia do que somos.
No entanto, por compensação, digamos, o mundo virtual nos possibilita o que jamais possuiremos nos periódicos impressos. Se pudéssemos fazer dele o concreto palpável de um livro físico, nós nem precisaríamos responder à quinta pergunta escrita parágrafos atrás, quando perguntamos, “como explicar que os deficientes visuais da grande imprensa não vejam o que vemos?”. - Porque não têm o que a web nos dá, respondemos agora. Ou seja, liberdade, liberdade, a condição absoluta do pensamento. Por isso podemos escrever sem medo e somente com a percepção do que lemos: algumas crônicas de Nei Duclós têm uma poesia a que e a quem o próprio Rubem Braga pediria a bênção. E mais. Um texto como “É de trem que eu preciso” paga todo o livro agora impresso. As suas linhas sobreviverão a este 2007 por muitos e muitos anos. Onde mais poderíamos escrever assim? Onde mais poderíamos pensar na ponta dos dedos e da sensibilidade como nestas linhas? A isto responderia por fim Billy Wilder: Viva a Internet! Ninguém é perfeito.