domingo, abril 29, 2007

Quixote - Portinari - Ventura de ser louco














– A ventura vai guiando as nossas coisas melhor do que pudéramos desejar; pois vê lá, amigo Sancho Pança, aqueles trinta ou pouco mais desaforados gigantes, com os quais penso travar batalha e tirar de todos a vida, com cujos despojos começaremos a enriquecer, pois esta é a boa guerra, e é grande serviço de Deus varrer tão má semente da face da terra..

– Que gigantes? – disse Sancho Pança.

– Aqueles que ali vês – respondeu seu amo –, de longos braços, que alguns chegam a tê-los de quase duas léguas.

– Veja vossa mercê – respondeu Sancho – que aqueles que ali aparecem não são gigantes, e sim moinhos de vento, e o que neles parecem braços são as asas que, empurradas pelo vento, fazem rodar a pedra do moinho.

– Logo se vê – respondeu D. Quixote – que não és versado em coisas de aventuras: são gigantes, sim; e se tens medo aparta-te daqui. E põe-te a rezar no espaço em que vou com eles me bater em fera e desigual batalha.


É essa ventura de ser louco que fez com que Antonio Cândido Portinari deixasse Brodowski, aos 15 anos, para estudar no Rio de Janeiro, no Liceu de Artes e Ofícios. O Candinho filho de imigrantes italianos, que nasceu no dia 29 de dezembro de 1903 em uma fazenda de café. O pintor premiado que foi estudar em Paris para mostrar ao mundo os lavradores, os meninos empinando pipa, o azul de seu céu.Como D. Quixote, Candinho ensinou o direito de tornar os sonhos reais. Construiu uma capela no quintal de sua casa só para a sua avó, dona Pelegrina, poder rezar. Como ela não podia andar, o pintor fez a Capela da Nona (recém-restaurada, fica junto do Museu Casa de Portinari, em Brodowski). Decorou as paredes com afrescos de Santa Isabel, Nossa Senhora, João Batista e a Sagrada Família com os rostos de sua esposa Maria, sua irmã Olga e o irmão Lói. Como D. Quixote, o pintor deu vez ao povo. Na série Retirantes, documentou a dor e buscou a esperança. Quando estava na França, desabafou nas cartas para a família: “Palaninho só tem um dente, usa calças brancas de saco de farinha de trigo, cheias de remendos escuros de pano listrado; ainda se nota o carimbo da marca da farinha. Palaninho é beira-córrego e dono de um sítio. Eu uso sapatos de verniz, calça larga, colarinho baixo e discuto Wilde, mas no fundo eu ando vestido como Palaninho e não compreendo Wilde. Tenho saudades de Brodowski, pequenininha, duzentas casas brancas de um andar só, no alto de um morro espiando para todos os lugares”


Leila K Moreno – Jornal da USP

segunda-feira, abril 23, 2007

O amante de lady Chatterley

Ilustração da edição ED Dialogues 2004 - França

O amante de lady Chatterley
D. H. Lawrence
Várias edições em Português

Interessante reler O Amante de Lady Chatterley nos dias atuais, livro de David Herbert Lawrence que durante décadas provocou o maior qüiproquó, fazendo parte da galeria dos livros malditos. O autor nasceu em 1885 na aldeia de Eastwood, no Reino Unido, e faleceu em 1930 não tendo visto o seu polêmico livro publicado em sua terra natal. Rotulado de imoral e pornográfico este romance de Lawrence levou 32 anos para vir a lume, sem cortes, numa Inglaterra tipificada pelo tradicionalismo e o conservadorismo, coisas que os geniais Beatles tiveram a coragem de, nos anos 60, dar um pontapé na bunda.
O polêmico livro foi gestado por Lawrence em Toscana, em 1926, quando lá residia. Cidade próxima da Florença de Maquiavel que, como ele, durante muito tempo foi um autor proscrito. O sexo domina os escritos de Lawrence que abandonou a sala de aula, a profissão de professor, para se dedicar inteiramente à literatura, deixando como herança intelectual, além do citado romance, entre outros, O Pavão Branco, Arco Íris e Mulheres Apaixonadas.
Censurada na Inglaterra, a primeira edição do Amante de Lady Chatterley – expurgada das cenas mais picantes – foi publicada na França em 1928, mas pouco tempo depois retirado das livrarias debaixo do jargão da imoralidade, do absurdo, do atentado a moral e aos bons costumes. Mas afinal de contas, o que esse livro tem para provocar tanta ira dos Torquemadas da primeira metade do último século do milênio passado? Para responder a questão é bom situá-lo no contexto de sua época e examinar a natureza da temática que trata.
O romance, escrito uma década depois, passa - se entre 1917 e 1918. O cenário histórico que serve como pano de fundo tem três acontecimentos centrais e marcantes: estava em curso a 1ª guerra mundial (1914-1914), em 1917 ocorreu a revolução bolchevista na Rússia, virando o mundo de ponta-cabeça e, em 1918, depois de longa e às vezes sangrenta luta, as heróicas suffragettes (ou sufragistas) conseguiram uma grande vitória, marcando um verdadeiro gol de placa em defesa dos direitos humanos, ou seja: a aprovação da Representation of the People Act que estabelecia o voto feminino no Reino Unido.
O enredo do romance se organiza em torno de um triângulo amoroso, envolvendo Constance Reid, Clifford Chatterley e Oliver Mellors.
Logo após casar-se com Contance o poderoso, rico, frio, calculista e conservador Sir Clifford é convocado para a guerra e dela volta numa cadeira de rodas, inválido e impotente, indo viver com a esposa em sua mansão de Wragby Hall, nas proximidades de suas minas de carvão. Contance, ou seja, Lady Chatterley é um azougue. Ela é o que viria a se chamar de uma mulher de vanguarda, cheia de vida e tesão. A lady perdeu a virgindade com um namoradinho antes do casamento e sempre deixa implícito ter simpatias pelo movimento dos trabalhadores, torcendo pelo sucesso de suas greves e escutando os ecos do que se passava na Rússia. Completa o triângulo Mellors, guarda-caça de Clifford. Ele é um chato-de-galocha que entra na estória como “Ricardão”. Mellors está separada da mulher e tem uma filha de seus 6 a 8 anos de idade. Ele é um tipo amargurado e solitário até a Lady dar em cima dele. Adora mexer em pintos e porcos e pregar pregos em coisas que estão desabando. Embora tenha instrução fala de forma escrachada, cheia de maneirismos, gírias e palavrões. Não é bonito nem feio, nem ele e nem a Lady.
Como dinheiro não traz felicidade e a Lady não tem o que fazer naquele monótono fim de mundo e com um marido que não pode satisfazê-la, resta-lhe andar pelo campo, colhendo flores, admirando animais e tomando um chazinho aqui e ali sendo elogiada por puxa-sacos e alcoviteiras. É fatal que em suas andanças, vez por outra, dê de cara com o taciturno guarda-costas, com quem não simpatizou a início. Bola vai, bola vem, acabam se tornando amantes com encontros fortuitos numa cabana que é um horror. Mas a Lady prefere transar com o pobretão e grosseiro Mellors ouvindo-o – na cama - gritar “fuck” e “fucking”, que transar com os almofadinhas que de quando em vez vistam o seu marido, tendo descoberto o prazer com o primeiro. Com a gravidez de Constance o caso entre ela e o guarda-caça atinge o clímax. Que fazer? Acabam abrindo o jogo. O negócio fica zero a zero. Nem Clifford aceita dar a separação nem registrar como seu o filho do empregado, fosse de um graúdo, verbaliza, até que toparia. A mulher de Mellors cozinha em banho-maria a idéia de conceder-lhe o divórcio. Ele não faz por menos, desentende-se com o patrão, vai parar no olho da rua e arranja emprego numa propriedade agrícola para cuidar de pôneis, cavalos, vacas e outros bichos. O salário é um tiquinho, negócio que só dá para ver olhando num microscópio. É de seu novo emprego que Mellors escreve para sua amada amante: “Quando estou a tirar leite, sinto-me consolado. Temos seis vacas Herefords muito lindas”.
O romance-pesadelo engendrado pela astúcia e a picardia de D. H. Lawrence termina num impasse: enquanto o bucho da Lady vai crescendo resta a ela e a Mellors rogarem aos céus para que ocorra algum milagre e que o drama vivido por eles venha a ter um improvável happy end.
Claro que com um enredo bombástico como este o hoje clássico O Amante de Lady Chatterley só poderia desagradar tanto aos gregos como aos troianos, ou seja: aos conservadores e aos reacionários janotas europeus do início do século. Com seu romance, o professor que largou as aulas para embrenhar-se no mundo das letras, metia a mão em muitas chagas ao mesmo tempo: o sexo como fio condutor, a paixão entre pessoas de classes sociais distintas, a guerra como instrumento de destruição de projetos de vida e a situação da mulher e a dos trabalhadores e as suas respectivas lutas por liberdade.

Aluizio Alves Filho - Revista Achegas

sábado, abril 21, 2007

Sebastião Salgado - Trabalhador

Ferro velho - Bangladesh - 1989

Linha de montagem - Índia - 1990

Pescador - Itália - 1991

segunda-feira, abril 16, 2007

Moby Dick



Moby Dick
Herman Melville

A única e definitiva obsessão na vida do Capitão Acab é encontrar e acabar de uma vez com a grande baleia branca que arrancou uma de suas pernas. Não se deterá diante de nada; sacrificará sua vida e a dos outros; não dormirá; não descansará. A saga de Acab transforma seu navio e seus tripulantes em uma cruzada contra o que ele considera o Mal. Mas, quem poderá dizer onde está o verdadeiro Mal? Até onde se pode determinar quando termina o desejo de vingança de um ser humano contra as poderosas forças da natureza e onde começa a insanidade de um louco suicida? Participar da jornada de Acab é tornar-se também um herói contra uma besta irracional assassina ou ser tão louco quanto ele? Com o agravante de que, provavelmente, o final desta jornada só pode ser a morte? Com cenários exóticos e definitivamente estranhos, uma narrativa barroca e densamente trabalhada, um senso de suspense e eterna suspensão das expectativas, MOBY DICK é um dos mais perfeitos romances de aventura de todos os tempos e lança ao mesmo tempo uma profunda, sombria e angustiada reflexão sobre o próprio ser humano. Quem poderá saber sobre os abismos internos sob os quais nos escondemos?
Dessa forma, Moby Dick é mais, muito mais, do que uma simples baleia mesmo que enorme: é a própria representação de todos os nossos medos, dos horrores que receamos encarar frente a frente; e Acab personifica a resistência cega que se recusa a ser humilhada e castigada pelo Destino, pela Sorte ou por Deus. Ou, então, a baleia é uma vitima que luta (e mata) para sobreviver, perseguida pelos homens que, como Acab, jogam suas próprias imperfeições e ressentimentos em forças externas e abstratas em vez de encontrar suas culpas em si mesmos; Acab seria, assim, não um mensageiro de uma decidida força
humana, mas exatamente o contrario: um fraco, frustrado e cego; um fanático louco. Um dos tripulantes, Starbuck, a dado momento, grita para Acab: “Vingar-se de um animal estúpido! É o mais cego instinto que te inflama! Loucura! Enfurecer-se contra uma criatura irracional, capitão Acab, parece blasfêmia”.
Referências bíblicas não faltam. A famosíssima primeira frase do livro “Chamai-me Ismael” é quase praticamente uma das únicas informações que teremos sobre o narrador, um marinheiro que consegue emprego na tripulação do navio baleeiro comandado pelo taciturno Capitão Acab para uma tarefa específica: capturar a maior baleia que já existiu. Lembremos que Ismael,
na Bíblia, é o filho renegado de Abraão. Lembremos também que Acab é um dos mais desagradáveis reis de Israel. Logo antes de embarcar no navio, Ismael é avisado do grande perigo que vai correr por um mendigo no porto cujo nome é... Elias. Moby Dick é, lógico, a grande besta apocalíptica. E, para animar ainda mais esta salada religiosa, o melhor amigo de Ismael é um gigante índio polinésio pagão e antropófago chamado Quiqueg que, na primeira refeição da manhã não come pão nem toma café, só come pequenos pedaços de carne mal-passada.
Nesta mistura de aventura, reflexões filosóficas e religiosas, recheadas de descrições minuciosas da caça às baleias na época (tão
minuciosas, na verdade, que o livro é um verdadeiro compêndio cientifico do assunto), ainda há espaço para humor (para Quiqueg poder ser admitido no navio, Ismael tem que provar que ele é protestante!) e uma fina ironia. Tudo embalado com altas doses de emoção.
Hoje em dia, é quase inacreditável saber que MOBY DICK foi um fracasso quando lançado em 1851. Herman Melville já havia escrito alguns livros de sucesso, todos baseados em fatos reais tirados de sua própria vida aventureira. Nascido em 1819, e tendo perdido o pai muito cedo, decidiu se alistar num barco pesqueiro com vinte anos. Percorreu o mundo, abandonou o
navio, foi perseguido por credores, conheceu os Mares do Sul, passou a maior parte de sua vida no mar. Em certa ocasião ficou prisioneiro de uma tribo de canibais durante meses, até conseguir escapar. Desta experiência resultou seu primeiro livro “Taipi – Paraíso dos Canibais” que faz grande sucesso. Seu grande livro, “Omu”, narra suas andanças como marinheiro. Até parecia que poderia se dedicar exclusivamente como escritor. Recebeu incentivos de um amigo, Nathaniel Hawthorne, outro grande escritor dos primórdios da literatura norte-americana, autor de “A Letra Escarlate”.
No entanto, apesar de continuar escrevendo ininterruptamente, sua fama foi decrescendo, seus livros não vendiam e ele foi obrigado a arranjar outros serviços para poder sustentar a família. MOBY DICK é simplesmente ignorado, apesar de ter recebido algumas críticas boas. Quando morreu, em 1891, recebia rendimentos de sua aposentadoria como inspetor de alfândegas.
Somente muitos anos depois de sua morte, Melville é redescoberto, o seu verdadeiro valor reconhecido e MOBY DICK ocupa o lugar de uma das obras-primas da humanidade. Como de direito.


ClaudineiVieira - Desconcertos

domingo, abril 15, 2007

De Ernest a Marlene




Ele a chamava de "Kraut" e ela o chamava de (que mais?) "Papa".
Ernest Hemingway e Marlene Dietrich se conheceram em uma viagem pelo Atlântico, na Ile de France, em 1934. Sua amizade durou até a morte do autor vencedor do Nobel, em 1961.
Hemingway descreveu sua relação com a Marlene Dietrich como 'uma paixão assíncrona'

Na quinta-feira (29/3), a Biblioteca John F. Kennedy lança 30 cartas que Hemingway escreveu para a lendária atriz e cantora entre 1949 e 1959. Em 2003, Maria Riva, filha de Dietrich, doou à biblioteca as cartas, assim como duas histórias batidas à máquina, dois poemas e uma versão anterior do romance "Do Outro Lado do Rio e Entre as Árvores".
A viúva de Hemingway, Mary, doou seus documentos à biblioteca em 1968. "Quando combinada com a coleção da biblioteca da correspondência de Dietrich para Hemingway, essas novas cartas ajudam a completar a história de uma amizade notável, entre dois indivíduos excepcionais", disse em declaração Tom Putnam, diretor da biblioteca.
O neto de Dietrich, Peter Riva, disse em entrevista telefônica que quando sua mãe vendeu os bens de Dietrich para o governo alemão, em 1993, ela fez questão de excluir os materiais de Hemingway da venda. "Ela os considerava tesouros americanos", disse Riva, descrevendo a opinião de sua mãe, "e queria que ficassem guardados para a nação. Francamente, ela foi aconselhada pelos amigos a vendê-los." Riva disse que uma avaliação tinha estimado o valor da doação em US$ 6 milhões (em torno de R$ 12 milhões).
A correspondência consiste de 25 cartas (sete escritas à mão), quatro telegramas e um cartão de Natal. Nelas, Hemingway apresenta seu lado mais despojado: profano e menino, algumas vezes brincalhão, algumas vezes filosófico, e sempre profundamente afetuoso.
Uma noção da amizade epistolar (e intimidade) de Hemingway com Dietrich fica aparente em uma carta de 1º de fevereiro de 1950, enviada de Veneza. "Mary está bem e envia seu amor", escreveu.
"Estou cumprindo um grande programa de ficar com Miss Mary, e não importa quem. É um programa fácil de manter, por um sistema simples de fazer amor toda noite e, portanto, estar automaticamente praticamente inútil para o consumo de qualquer outra mulher."
Fica claro pelos dois lados da correspondência (a Biblioteca JFK já tinha 31 cartas e telegramas de Dietrich para Hemingway, enviadas entre 1950 e 1961) que o forte elo emocional entre eles foi correspondido por uma atração física similar. Afirmações intensas de amor apimentam a correspondência.
Ainda assim, Dietrich e Hemingway nunca foram amantes. Eles eram, como observou Hemingway para seu amigo e futuro biógrafo A.E. Hotchner, "vítimas de uma paixão assíncrona". Toda vez que uma parte estava livre, a outra não estava.
A falta de consumação física pode ter contribuído para os sentimentos muitas vezes calorosos expressados por Hemingway. "O que você realmente quer para o trabalho de uma vida?" escreveu no dia 19 de junho de 1950. "Quebrar o coração de todos por dez centavos? Você sempre pode quebrar o meu por cinco, e eu trarei a moeda." No final dessa carta, ele refere-se ao seu novo romance como "Under the Arm-Pits and Into the Trees" (sob as axilas e para as árvores).
A conexão Hemingway-Kennedy começou quando o senador John F. Kennedy invocou o autor no lançamento de seu livro "Profiles in Courage" (Perfis de coragem). Mais tarde, Kennedy convidou Hemingway a sua posse. Depois da morte do romancista, JFK ajudou Mary Hemingway a recuperar seus documentos e posses de Cuba, onde o casal morava.


"A vida em geral é a parte difícil"

Trechos da correspondência de Ernest Hemingway com Marlene Dietrich:

"Sei de muitas fofocas, algumas até verdadeiras."
Dia 26 de setembro de 1949
"Eles deviam ter uma lei confinando autores a Ellis Island, ou algum lugar, por ao menos seis meses depois que terminam um livro."
1º de fevereiro de 1950
"Mary ainda é a melhor mulher na cama que jamais conheci. É claro que não rodei muito e sou basicamente tímido."
Dia 23 de maio de 1950
"Você e eu vivemos as piores épocas de todos os tempos. Não quero dizer só as guerras. Guerras são espinafre. A vida em geral é a parte difícil."
27 de junho de 1950
"Estava quente demais para fazer amor se você puder imaginar, exceto debaixo da água, e eu nunca fui muito bom nisso."
21 de novembro de 1951
"Também, se não houver problema, não gosto muito do Prêmio Nobel. Eles dão a você aquele dinheiro; mas o dinheiro se perde nos dados e o resto é dor de cabeça e milhares de cartas."
24 de março de 1955

Mark Feeney - The Boston Globe
Tradução - Deborah Weinberg

sexta-feira, abril 13, 2007

Cátia, Simone e outras Marvadas

"Cátia, Simone e outras Marvadas", o primeiro livro do ex-morador de rua Sebastião Nicomedes
As angústias e contradições da vida na rua, pelo olhar de quem foi sem-teto, agora podem ser lidas em versos. Depois de estrear no teatro com as peças "Bonifácil Preguiça" e "Diário dum carroceiro", esta última encenada no Teatro Fábrica São Paulo, Sebastião Nicomedes, 39 anos, lança seu primeiro livro de poemas."Cátia, Simone e outras Marvadas" é publicado por "Dulcinéia Catadora".
Nicomedes mostra os descaminhos de quem tem o asfalto ou o albergue como morada. Seus textos pisam no registro referencial e poético, apontam para o lugar de construção do próprio narrador. Um lugar em que sua identidade pode ser edificada e reconhecida, pela palavra.
Para os desavisados: nem tudo é autobiografia. "Sou um escritor. Não é porque escrevi algo que isso de fato aconteceu comigo". Igualar sua obra a tão-somente retratação do real é o caminho mais fácil. Mas embreada a escrita - que é experiência e imaginação - o narrador expõe o difícil percurso de um rosto sem nome:
"O cobertor é meu escudo
esconde-me o rosto de todos".

Com exceção de duas personagens que dão título à obra, todas as outras são anônimas.
Em "Ao luar" e "3 anos: a vida", em especial, a passagem entre o exílio no nada e o ingresso no mundo se dá pelo olhar poético. Ele é quem inaugura a experiência de ser. A noite, por sua vez, metaforiza a estréia desse mistério.
Algumas vezes o humor divide espaço com o trágico, para logo depois abandoná-lo. Em "Cumplicidade" os versos andam e dançam como um bêbado equilibrista que cai, mas não deixa a garrafa despencar. E, ao final:
"e se reerguer o mendigo
a indústria da miséria entra em falência
(...)
porque o corpo que bebe
caindo ao chão não incomoda".
Marana Borges Terra Magazine

Cátia, Simone e outras Marvadas

Tião escreve prosas e poesias que misturam fragmentos autobiográficos e histórias inspiradas no que vê na rua. Escreve à noite, num bloco de papel, sentado na laje
Só não afundou de vez porque tinha um prazer de se comunicar pela arte, escrevendo poesias e peças. Sabia que um dia seria escritor
Um pedaço da história de vida de Sebastião Nicodemes está na capa do livro que ele vai lançar na próxima sexta-feira. A capa é feita de papelão encontrado na rua, ilustrada por filhos de catadores de papel. "É meu primeiro livro", orgulha-se o ex-catador de papel. Os textos foram escritos em cima de uma laje, onde Tião alugou um pequeno quarto. "Fico olhando o céu, e a inspiração vai aparecendo. É como se eu ainda morasse na rua." Ex-morador de rua, ele já consegue pagar o aluguel daquele quarto porque faz bicos artísticos.
Tião produz bonecos com papel reciclado, com os quais conta histórias para crianças, ajuda em roteiros de filmes e documentários, e já escreveu o texto de uma peça, intitulada "Diário de um Carroceiro", apresentada no ano passado no Teatro Fábrica. Está conseguindo, agora, lançar "Cátia, Simone e outras Marvadas", por causa de uma experiência produzida na última Bienal.
Um grupo de artistas resolveu apoiar a edição de livros produzidos por filhos de catadores de papel e seus filhos - assim surgiu a Edições Dulcinéia Catadora. São sempre cem exemplares, todos artesanais e com desenhos diferentes. "O que queremos é estimular o prazer de criar", diz Lúcia Rosa, uma das artistas envolvidas no projeto.
Tião escreve prosas e poesias que misturam fragmentos autobiográficos e histórias inspiradas no que vê na rua. Escreve à noite, num bloco de papel, sentado na laje acoplada ao cubículo, no Brás. "Eu me sinto maior sentindo o Universo". A sensação de grandeza também tem um motivo concreto: há três meses está conseguindo pagar o aluguel daquele quarto. Até dormia em abrigos públicos, depois de sair da rua. "Não gostava de viver de favor." Tal sensação de grandeza ajudou-o a recordar e colocar no papel suas decepções, inclusive amorosas.
Migrante, Tião tinha emprego em São Paulo. Mas adoeceu e, quando voltou do hospital, nem sequer tinha lugar onde morar. A frustração chamou a bebida e, assim, instalou-se um círculo vicioso. Para sobreviver, viveu nas ruas que cercavam o Mercado Municipal. A dor que manteve guardada foi não ter recebido, no hospital, a visita de amigos. Nem da mulher - uma das "marvadas" - com quem estava noivo e com quem pensava que iria casar. "Parece que tudo desabou em segundos." Tião só não afundou de vez porque tinha um prazer de se comunicar pela arte, escrevendo poesias e peças. Sabia que -mas não sabia quando- um dia seria um escritor. "Só o que não imaginei é que, todas as noites, teria o prazer de adormecer ao ar livre."

Gilberto Dimenstein- Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano em 28/3/2007

Sobre o projeto “Dulcinéia Catadora” informações aqui

segunda-feira, abril 09, 2007

Sebastião Salgado - Outras Américas

Mãe e filhos - Equador - 1982

Oração de agradecimento ao deus Mixe Kioga pela boa colheita - México - 1980

quinta-feira, abril 05, 2007

Balzac - A mulher de trinta anos

A mulher de trinta anos
H de Balzac

O ego de Honoré de Balzac era enorme e suas pretensões também. Começando pelo próprio nome: o "de" indica nobreza e foi colocado por ele mesmo. Filho de família modesta, no interior da França, era uma posição a qual nunca teve direito e nunca conseguiu alcança-la, apesar de todos os seus esforços, mas nunca renunciou ao "de".
Era teimoso, também, de convicções obstinadas. Desde cedo, decidiu que seria um escritor tão poderoso escritor e faria tanto sucesso que tomaria a França da mesma forma como Napoleão. A única diferença seria pelas armas utilizadas: Napoleão, pelo exercito; Balzac, pela pena.
Sua família ficou perplexa. Não era para menos: ele nunca havia se destacado na escola, nunca escrevera algo reconhecido, seus maiores estudos tinham se limitado ao Direito, a qual lhe daria um trabalho decente e uma boa remuneração. Do que precisava mais? Fizeram um acordo: durante um ano, lhe mandariam uma mesada para sobreviver em Paris para escrever. Pelo resultado, decidiriam se ele realmente tinha razão.
Este resultado foi uma peça, uma tragédia histórica chamada "Cromwell". Não existem resquícios desse texto. Foi rasgada e esquecida. Foi um fracasso para todos que a leram e convenceu sua família de que ele deveria desistir de uma vez com essa loucura.
Balzac reconheceu a derrota nesta batalha. Percebeu que o teatro não fora sua melhor escolha e ainda precisava se aperfeiçoar muito para chegar ao nível de excelência que almejava. Continuou em Paris, agora sem a ajuda paterna, e para se manter começou a escrever novelas fantásticas para jornais. Era uma subliteratura, descartável e esquecível; serviu somente para que Balzac construísse uma disciplina própria, treinasse a escrita e não morresse de fome. Para não se manchar com esses escritos, assinou com vários pseudônimos. Mesmo nessa época, algumas características do futuro clássico já estavam presentes: um ritmo de trabalho alucinado, verdadeira produção industrial, e uma imaginação fértil.
Quando sentiu que estava pronto, abandonou essa subliteratura, começou a assinar com seu próprio nome. E não parou mais de escrever clássicos.
A diferença destas duas fases é estonteante. De um lado, um escrevinhador que vomitava textos ínfimos, de uma nulidade absoluta, puramente por dinheiro. Do outro, um autor com uma densidade e uma pureza artística que nunca foi maculada pela sua aspiração à nobreza, por reconhecimento ou dinheiro. A ascensão do "novo" Balzac foi fulminante. Está certo que no começo foi devido ao escândalo: ele conseguia causar sensação. Seu primeiro livro "sério" ("Chouans") era uma tentativa de imitação do grande sucesso editorial da época, Walter Scott e o seguinte, "Fisiologia do Casamento" primava pelo cinismo, a sátira pesada e a discussão de temas tabus. No entanto, nada que lembre sua antiga produção. Mesmo que estes livros não tenham a mesma qualidade de obras posteriores, até hoje possuem uma frescura e uma densidade ímpar. Sua tentativa de imitação de Scott não deu certo simplesmente porque Balzac já possuía uma identidade e uma escrita própria e personalista que não foi mais abandonada e cujo correr do tempo só fez aumentar e destacar a importância.
O ritmo, a dedicação e a seriedade para com sua literatura eram impressionantes. Escrevia e reescrevia vários rascunhos. Oito, nove, dez, doze vezes. O livro inteiro. Seu desespero pelo melhor fazia com que paralisasse as máquinas de impressão enquanto o livro estava sendo impresso. Isso para a primeira edição. Toda reedição merecia ser reescrita outras duas, três, cinco, dez vezes. Se pensarmos que, quando Balzac morreu, deixou uma obra que abrangia 95 romances, fora as peças de teatro, ensaios e artigos de jornal e lembrarmos que para todos eles o tratamento era o mesmo, podemos ficar espantados com toda a justeza. E ainda precisamos lembrar que ele possuía uma imensa atividade social, teve várias amantes, tentou carreira política, viajou por vários países ... A racionalidade é pouca para entender tal gênio.
Ele conseguiu o seu intento. Tomou a França e a conquistou. Montou um painel desta sociedade que estonteia pela amplidão. Em um determinado momento, percebeu que estava, na prática, refletindo a realidade de todo um momento histórico. Mais do que um romancista, decidiu ser um Historiador, um Cientista Social. Todos os seus livros fariam parte de uma mesma e única obra. Haveria um fluxo de personagens de um livro para o outro, uma hora mostrando sua velhice, outra hora o início de sua vida e carreira. Seria a França em sua totalidade, com todas as suas idiossincrasias, seus tipos particulares, sua História, Economia, ambições, maldades, etc. Já estava superando Napoleão; superaria agora o próprio Registro Civil.
Esta obra é a Comédia Humana, constituída por dezessete volumes, mais de oitenta obras entre romances e contos. Personagens que cativam e marcam nossa memória: o jovem estudante Rastignac que deixa de lado seus escrúpulos morais para ascender socialmente (que serviu, mais tarde, como modelo para Dostoievski criar o seu Raskólhnikov, em "Crime e Castigo"); o grande Papai Goriot que sacrifica sua vida pela felicidade das filhas; o judeu Gobsek; a infeliz menina Pierrete e etc, etc. Não cabem nesta resenha. Entre tantos estudos sobre a vida e obra de Balzac, existe um dicionário somente para os personagens da Comédia Humana.
“A Mulher de Trinta Anos”. Esta é, sem dúvida, sua obra mais famosa. Impregnou tanto o imaginário ocidental que muitas pessoas que nunca sequer ouviram falar do escritor francês e nem tem idéia de sua procedência, conhecem a expressão "mulher balzaquiana". O choque provocado em sua primeira publicação foi bem considerável. Pela primeira vez, um escritor valorizava os pensamentos e desejos de mulheres maduras, prestava atenção em suas angústias, reinvidicava o direito delas serem felizes, bonitas e sensuais e discutia de maneira franca e objetiva os problemas íntimos de casamentos fracassados. Foi um sucesso mesclado com escândalo e comoção social, cujos reflexos chegam até os dias de hoje.
No entanto, literariamente, "A Mulher de Trinta Anos" é uma de suas obras mais fracas, com péssimo desenvolvimento narrativo, personagens frágeis cujas personalidades se contradizem em várias cenas, uma escrita frouxa e mal acabada. Quem começar a conhecer Balzac através deste livro por causa de sua fama, provavelmente se decepcionará e não terá uma idéia precisa do brilho do restante de sua obra.
Na verdade, o livro é a junção de vários contos independentes e escritos em separado que sofreram algumas modificações mínimas, como a troca dos nomes dos personagens, por exemplo, no esforço para constituir um romance único que coubesse dentro da saga maior da “Comédia Humana”. Por isso, momentos brilhantes alternam com outros, baixos, quase constrangedores e personagens agem em contraste absoluto com atitudes anteriores. Sem dúvida, Balzac apararia estas arestas e as ligações ficariam melhor combinadas, mas morreu com apenas 51 anos, completamente esgotado, e com a arquitetura de sua "Comédia", incompleta.
Muito melhor é conhecer Balzac pelo seus picos: "Ilusões Perdidas". Ou "Eugenie Grandet". Ou "Pai Goriot". Ou até mesmo outros não tão conhecidos (injustamente), muito melhores (muito melhores!) do que "A Mulher de Trinta Anos", como "Gobsek", "Pierret", "Coronel Chabert", "A Prima Bete", "A Casa Nucingen"... Alternativas realmente não faltam.

Claudinei Vieira -
Desconcertos

quarta-feira, abril 04, 2007

Sebastião Salgado


Outras Américas - Músico - México - 1980

Outras Américas - Primeira Comunhão - Juazeiro do Norte - 1981

Natural de Aimorés, Minas Gerais, onde nasceu em 1944, Sebastião Ribeiro Salgado é o sexto e o único filho homem de uma família com oito crianças. Filho de um pecuarista, estudou economia no Brasil entre 1964 e 67. Fez mestrado na mesma área na Universidade de São Paulo e na Vanderbilt University (EUA). Após completar seus estudos para o doutorado em economia pela Universidade de Paris, em 1971, trabalhou para a Organização Internacional do Café até 1973.
Depois de levar emprestada a câmera de sua mulher, Lélia, para uma viagem à África, Salgado decidiu, em 1973, trocar a economia pela fotografia. Trabalhou para as agências Sygma (1974-1975) e Gamma (1975-1979). Eleito membro da Magnum Photos, uma cooperativa internacional de fotógrafos, permaneceu na organização de 1979 a 1994. De Paris, onde vivia, Salgado viajou para cobrir acontecimentos como as guerras na Angola e no Saara espanhol, o seqüestro de israelitas em Entebbe e o atentado contra o presidente norte-americano Ronald Reagan. Paralelamente, passou a se dedicar a projetos de documentários mais elaborados e pessoais.
Viajando pela América Latina durante sete anos (1977-1984), Salgado foi a pé a povoados remotos. Neles capturou as imagens para o livro e a exposição Outras Américas (1986), um estudo das diferentes culturas da população rural e da resistência cultural dos índios e de seus descendentes no México e no Brasil. Nos anos 80, trabalhou 15 meses com o grupo francês Médicos Sem Fronteiras durante a seca na região do Sahel, na África. Na viagem produziu Sahel: O Homem em Pânico (1986), um documento sobre a dignidade e a perseverança de pessoas nas mais extremas condições. Entre 1986 e 1992, fez Trabalhadores (1993), um documentário fotográfico sobre o fim do trabalho manual em grande escala em 26 países. Em seguida, produziu Terra: Luta dos Sem-Terra (1997), sobre a luta pela terra no Brasil, e Êxodos e Crianças (2000), retratando a vida de retirantes, refugiados e migrantes de 41 países.
Fotógrafo reconhecido internacionalmente e adepto da tradição da "fotografia engajada", Sebastião Salgado recebeu praticamente todos os principais prêmios de fotografia do mundo como reconhecimento por seu trabalho. Em 1994 fundou sua própria agência de notícias, a Imagens da Amazônia, que representa o fotógrafo e seu trabalho. Salgado mora atualmente em Paris com sua esposa e colaboradora, Lélia Wanick Salgado, autora do projeto gráfico da maioria de seus livros. O casal tem dois filhos.

Mais sobre Sebastião Salgado aqui
Vera do Val - Rose Rose Rosebud

domingo, abril 01, 2007

Nei Duclós - O poeta da crônica

O Refúgio do Príncipe - Histórias Sopradas pelo Vento

Despertem, mestres da universidade, estudiosos, críticos, periodistas, senhoras e senhores. A crônica brasileira não acabou no grande Rubem Braga. Isto, sabiam? A crônica, como todas as formas de vida, resiste, e mais que resiste, ela vem servida em prato sujo, em prato limpo, em prato quebrado, em prato nunca visto, em todos os pratos das mais diversas cores imagináveis e inimagináveis. Pero não só. A crônica brasileira está viva e com um acento e gosto poético a quem o próprio Rubem Braga pediria a bênção. Pensam que exageramos? Se assim pensam, mas ao mesmo tempo nos concedem o generoso benefício da dúvida, leiam por favor estas linhas:

“É de trem que eu preciso para chegar ao tempo que me absolve... E talvez o trem atrase outra vez, já que ele não existe mais, mas teima em ficar parado algum tempo embaixo da Lua cheia, enquanto ficamos aflitos à espera do reinício do impulso que nos carrega. Nunca vamos aprender que andar é o caminho e que os destinos, no começo ou no final da jornada, são mais precários do que qualquer sonho despertado no meio da noite, quando vemos o teto do vagão sumir para que possamos ver as estrelas. Isso tem me acontecido ultimamente. Deito e olho para cima, e vejo novamente o céu que deixei há poucos instantes. Com todas as estrelas e fiapos de nuvens, o que torna a visão ainda mais verossímil. É como acampar sem barraca, contar estrelas cadentes, seguir o risco de satélites que usam as constelações como parada. No fundo da madrugada, o trem pára novamente. Olhamos pela janela, que também dorme. Uma luz cercada pelo fogo fátuo das mariposas nos diz que ali é um ponto conhecido, por onde passaremos mais uma vez em direção ao que não nos consola. Crianças se agitam, senhores do povo conversam baixo sobre pescarias e negócios. Há um cheiro de cabelos engomados, de chapéu de feltro, de xales de lã. Onde estou? me pergunto.
Estou no meio do meu ofício, que é tentar entender a passagem obscura pela terra envolta em mistério. Estou só, como a criança que adormece no crepúsculo, e acordo na boca da escuridão com um solavanco. Ela vê o homem fardado passar com seu boné de autoridade máxima da viagem. O homem recolhia passagens, quando todos se aboletaram pelos bancos. Agora ele vigia o sono de quem escolheu esse momento para percorrer a trilha insana de uma vida. A criança fecha novamente os olhos, e o embalo da serpente emplumada o leva para longe. Para lá, onde a poesia dorme e as palavras soltas como um rebanho pastam no esplendor de uma revelação. Nada nos salvará desse enigma. Por isso agradecemos a Deus quando o dia firma e alguém oferece um café recém-feito, uma bolacha dormida ou um jornal comprado na corrida numa parada qualquer. Entre um gole e a mordida do trigo providencial, vemos estampada na primeira página nosso rosto adulto, a nos olhar com ar sagrado da santidade. Para esse rosto rumamos, carregando a infância como um talismã. Ela está dentro de uma pequena caixa, que guardamos no sobretudo. Da tampa aberta, salta a bailarina, ao som de uma valsa tocada por cristais e acompanhada pelo brilho de diamantes de um filme que vimos no cinema lotado, quando havia cinema e quando éramos a alegria da criação em desencanto”.

Saibam que as linhas acima não pertencem a qualquer autor morto, esse magnífico que sempre julgamos melhor quando não mais se encontra entre nós. Elas foram escritas por um autor vivo. Mais precisamente por Nei Duclós, que acaba de publicar o livro "O Refúgio do Príncipe - Histórias Sopradas pelo Vento". Por enquanto é difícil encontrar referências ao trabalho de Nei na chamada grande imprensa, a grande em números de circulação, devemos dizer. Mas pelo trecho que acabamos de citar, de uma crônica do livro, os leitores do mundo, a que chegamos pelas asas e alas de La Insígnia, bem podem ver o nível do autor que a imprensa de São Paulo-Rio, esse universo onde todos os fenômenos de valor acontecem, ainda não percebe. Dizemos isto agora, e neste exato instante somos atingidos por uma dúvida. Aliás, por três. Melhor dizendo, por muitas. Primeira: Como falar de um renovador da crônica ainda não reconhecido? Segunda: Seria melhor indicar caminhos, links, como se diz na web, para que o leitor por si mesmo tirasse as conclusões? Terceira: Seria melhor o caminho mais complicado, escrever como julgamos o trabalho de Nei Duclós, um texto cheio de forçados insights, e de tal maneira que os leitores dissessem ao fim, “está aí, este crítico não é um preguiçoso” ? Quarta: Como ressaltar o que percebemos, o que a chamada boa crítica não percebe, e, ao mesmo tempo, não recebermos o doce epíteto de louco? Quinta: Como explicar – quase dissemos demonstrar, mas recuamos – as razões desses ... deficientes visuais, que não vêem o que vemos? Sexta: E como com isto esclarecer que não temos visões particulares, particularíssimas, de um estranho entendimento? Sétima, e oitava, e nona... O leitor já vê que mais fácil é perguntar que responder. Tentaremos então um caminho alternativo, que na falta de melhor termo chamaremos de resposta.
Misturemos a segunda e terceira questão em uma só “resposta”. A quinta deixaremos para o fim.
Quando pegamos o livro, fomos anotando, escrevendo nas páginas do exemplar, à margem: “Ei, leitor, você aí, acorde: você pensa que a crônica brasileira parou em Rubem Braga? Ei, desperte, você precisa conhecer crônicas de Nei Duclós”. E com isto, na escrita rápida de uma anotação, que é sempre síntese e linguagem cifrada, desejávamos expressar em frases longas e com mais linhas: há no sentimento de admiração pelos grandes escritores do passado um culto, melhor, menos que um culto, uma espécie de mumificação, algo assim como um congelamento do tempo, como se tudo que houvesse antes fosse por natureza melhor e maior e insuperável, por força de ter ocorrido antes. Ora, expressar a nossa admiração por um grande não pode ser um pano a encobrir o que vemos todos os dias. Porque se um indivíduo não consegue ver nada de valor à sua volta, é melhor começar a pôr em dúvida o que ele diz admirar no passado. Pois que sensibilidade é esta que só se dirige para o que é consenso firmado? Tal sensibilidade mais se confunde com o sacudir de cabeças de lagartixas em concerto.
E aqui vem outra idéia a murmurar nos ouvidos: como a crônica é um gênero “menor”, porque confundem sempre tamanho com profundidade – e atenção, gostaríamos muito de um conceito preciso para o gênero -, tratou-se, na literatura brasileira, de adaptar a estatura dos mestres a esse gênero que não poderia ter o status das tragédias, dos romances. Assegurou-se então um lugar de Shakespeare Menor para o Sabiá escritor, mais conhecido pelo nome de Rubem Braga. Está claro? – Está não. Bem... Como explicar o “Chiquita bacana lá da Martinica”, que se veste numa casca de banana nanica, para um ilustre e encasacado compositor de ópera? Para nada dizer, digamos que a crônica brasileira é fruto de uma nova civilização, ou, se quiserem, que a crônica está para a literatura assim como o samba de Noel Rosa está para a música. Mas para que não caiamos, com essa conjugação feia, em um exclusivismo estúpido, é preciso ver que o gênero praticado no Brasil descende por todas as razões do “Pequenos poemas em prosa” de Baudelaire. Textos densos, prenhes de realização em breve espaço, poéticos a ponto de preencherem todos os sentidos de beleza. Esse gênero abriga ainda, em uma outra direção, o texto leve, passageiro, como se fosse uma audição de música de elevador, mas ainda assim agradável. É um gênero nascido e crescido nas folhas dos periódicos, ora com a urgência de fechar a página, ora sob encomenda, quando de um famoso. Está explicado? – Cremos que não, porque de repente, não mais que de repente, somos surpreendidos por linhas de um texto como na crônica Aquele cinema oculto:

“A arte da luz entra no buraco negro do tempo. Aos cinco anos, me levam para um lugar escuro, onde apareciam rostos gigantescos, que tomavam conta de uma parede. Fui informado antes: "vais te assustar!" Cumpri a advertência, e tiveram que me tirar no meio da sessão. Aconteceu no Cine-Theatro Carlos Gomes, que me ofereceu, na placa comemorativa, o primeiro desafio da linguagem: "a Carlos Gomes", dizia a homenagem. Como aquele bigode todo do maestro poderia ter um substantivo feminino na frente? A estranha preposição, que vestia a roupa da primeira letra do alfabeto, assim como os filmes que sumiram no espaço, permaneceram misteriosos por muito tempo....
Aquele cinema oculto é o Mundo Perdido. Usávamos calças curtas, cabelo escovinha, revólveres e cavalos de madeira. Falávamos uma língua intrincada, adaptada dos ruídos que ouvíamos nas falas dos filmes.
"Chamuchalei", por exemplo, era mãos-ao-alto. Não me perguntem por quê. Também o Mundo Perdido era difícil de entender”.

Para essa crônica, anotamos na margem, sempre a pensar em um leitor, chamado para estas linhas que escreveríamos e escrevemos agora: “Leia e conclua com a sua própria percepção, leia, por exemplo, Aquele cinema oculto, e passeie pelas descobertas, por algumas iluminações”, e quando anotamos isso, talvez pensássemos neste outro parágrafo de Aquele cinema oculto:

“Os filmes eram divididos em gêneros bem específicos. Existiam os filmes dos lenhadores canadenses, sempre de camisas quadriculadas - de flanela ou lã - não estou brincando. Havia uma série de filmes ingleses em preto e branco em que o Alec Guiness era o anti-herói permanente. Vi todos e só lembro o ator maravilhoso tropicando pelas ruas londrinas, mais nada. Nos faroestes, havia um gênero em que aparecia sempre o mesmo herói (interpretado por um jovem Jim Davis, o do sorriso maroto), que usava uma farda toda cheia de botão, dividido em duas histórias completamente diferentes uma da outra. Chamávamos esse gênero de ‘o abotoado dos dois filmes’. Para quem, como nós, não dispunha de nenhuma informação sobre o que víamos, adaptávamos a indústria do cinema ao nosso vasto mundo da cidade isolada do pampa. O pior é que até hoje nada sei sobre a maioria do que vi na época”.

E a vontade que nos deu foi de escrever na margem: “Olha, Nei Duclós, talvez a infância dos meninos em Água Fria fosse mais pobre. Nós dividíamos os filmes em filme de caubói e filme de amor. Com vantagem absoluta para os de caubói, porque os de amor não tinham ação – imagine só como aqueles meninos eram carentes. Por isso gostávamos muito daqueles filmes com Randolph Scott, cheios de tiros, lutas e de um inglês que entendíamos como Rale-rale-iú”. Mas isto não escrevemos, porque fomos para outra descoberta, quase à margem de O Refúgio do Príncipe.
A novidade, a surpresa, um quase milagre, digamos assim, foi descobrir que os textos publicados em livro, físico, portátil, que podemos conduzir para onde mandar o nosso desejo, são melhores que os publicados na web, mesmo quando são os mesmíssimos textos. Mesmíssimos? – Sim e não. Na aparência, sim, porque a crônica “É de trem que eu preciso”, por exemplo, é composta das mesmas palavras, parágrafos e pontuação que a publicada na internet . No entanto, a percepção, a leitura é outra, quando a vemos em papel, bem diagramada, assim, com letras pretas no branco da folha, entendem? É como se uma obra estética ganhasse um corpo físico, palpável, como se pudéssemos tocar na réstia do filme no escuro do cinema, e pudéssemos dizer, toquei no cinema, é de carne e osso. O ano passado em Mariembad é uma pessoa. Ou rodamos com Chaplin Luzes da Cidade, pegamos nos pães do balé que ele faz. E no entanto, mirem, no livro físico que conduzimos não há espaço para entrar em contato com o escritor, não há um retângulo onde possamos pôr um comentário e entrar em linha direta com o autor, na hora, on line, como dizemos. O que não é bem uma desvantagem, porque há um outro diálogo, aquele mais íntimo, que nos faz anotar, enquanto olhamos o rio Capibaribe no Recife pela janela do ônibus: como é que a beleza resiste? Isto quer dizer, a estética sai do virtual para a paisagem física por onde caminhamos. Ela se senta conosco à mesa, bebe café, vinho, cerveja, como se fosse uma companhia do que somos.
No entanto, por compensação, digamos, o mundo virtual nos possibilita o que jamais possuiremos nos periódicos impressos. Se pudéssemos fazer dele o concreto palpável de um livro físico, nós nem precisaríamos responder à quinta pergunta escrita parágrafos atrás, quando perguntamos, “como explicar que os deficientes visuais da grande imprensa não vejam o que vemos?”. - Porque não têm o que a web nos dá, respondemos agora. Ou seja, liberdade, liberdade, a condição absoluta do pensamento. Por isso podemos escrever sem medo e somente com a percepção do que lemos: algumas crônicas de Nei Duclós têm uma poesia a que e a quem o próprio Rubem Braga pediria a bênção. E mais. Um texto como “É de trem que eu preciso” paga todo o livro agora impresso. As suas linhas sobreviverão a este 2007 por muitos e muitos anos. Onde mais poderíamos escrever assim? Onde mais poderíamos pensar na ponta dos dedos e da sensibilidade como nestas linhas? A isto responderia por fim Billy Wilder: Viva a Internet! Ninguém é perfeito.
Urariano Mota – Sapoti de Japaranduba
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